terça-feira, 12 de agosto de 2014

Historias Reais Inventadas por Mim


Orgias químicas
Para variar ele chegou atrasado, coisa de vinte a vinte cinco minutos. Parece pouca coisa, mas o tempo era curto e todo esquematizado, um minuto atrasado implicava diretamente em comprometer toda a sequência dos planos. Não bastante, ele surge com uma mochila nas costas, mesmo eu avisando com antecedência para não levar coisa alguma, ou seríamos barrados. Ele era um imbecil e não sei por que insistia em manter contato com ele.
- Saca só o que eu trouxe – ele diz se aproximando e abrindo a mochila para mostrar o seu interior.
Ele fedia a éter. Não confundam éter puro com Cheirinho da Loló, que além do éter leva clorofórmio. A Loló, como chamávamos intimamente, tem toda uma relação romântica com nossa juventude por ser uma das primeiras drogas que experimentamos. Já o éter é coisa de preguiçoso, sem a menor relação com a droga, com a aventura e com o resultado final. O infeliz apenas subtrai um pouco de éter do frasco do avô que usa isso constantemente para tratar uma unha podre e, pronto, já está doidão.
Enfim, eram menos de dez da manhã e o desgraçado já estava fedendo a éter. Para dizer a verdade, como já notaram, eu implico com éter a qualquer hora do dia. Aquilo para mim é o nível mais baixo que uma pessoa pode chegar para ficar chapada. Ele aparentemente não tinha limite e pudores quando se tratava de ficar doido. Certa vez, em um ato desesperado para ficar bêbado, ele virou duas garrafas de Biotômico Fontoura só porque tinha álcool na composição. Além de não ter conseguido ficar um pouco alto sequer, ainda ficou com uma larica de dar inveja a uma comunidade de rastafáris.
- Porra – falei empurrando ele para se afastar. – Você está cheirando a armário velho de remédio, seu imbecil.
Ele riu debilmente e voltou a se aproximar para tentar mostrar novamente o interior da sua mochila. Quando conseguiu, fiquei hipnotizado com aquela cena. Era um mar de bolinhas, comprimidos, adesivos e papeizinhos de todas as cores possíveis. O que via naquele momento era um caleidoscópio de drogas, um mosaico de entorpecentes, uma colorida fábrica de alucinações. Ali tinha coisas que sequer sabia o que era. Não tinha a menor ideia por onde começar, estava estupefato, quase uma criança perdida dentro de uma loja da M&M’s. Sim, a analogia foi fraca e óbvia, mas é tudo que consigo pensar enquanto decido o que escolher.
- Ah seu verme – ele falava balançando a mochila. – Enfia a mão aí dentro e faz um sorteio. O que vier, veio.
Claro, era o que fazia mais sentido naquele momento. Não importava a ordem, seria tudo mandado para dentro mesmo. Meti a mão com tudo na mochila, mexi como se fosse sortear o último número da loteria de final de ano e tirei. PUTA QUE PARIU! Foi exatamente o que os dois disseram ao mesmo tempo. Era um pequeno papel marrom: ácido! Eu só costumava usar esse tipo de ácido para prolongar o efeito de outras merdas vagabundas que comprava por aí, mas nunca para começar o dia. Muito menos de barriga vazia. Colocava debaixo da língua quando ele saca, sabe-se lá de onde, uma pequena garrafa e me oferece para beber. Não pergunto o que é e mando para dentro.
- Caralho – falei cuspindo um pouco do líquido para fora. – Que merda é essa?
- É uma batida de pimenta que meu avô faz.
Aquilo desceu queimando a alma. A língua que estaria dormente pelo ácido, ficou áspera, irritada, virou tudo uma confusão na minha boca. Mal conseguia xingar aquele imbecil que ria da minha situação. Pedi então alguma coisa com sabor para ajudar a disfarçar o sofrimento. Ele me deu uma cápsula azulada que desmontei e despejei o pozinho do seu interior na minha boca. Aliviou um pouco a sensação de ardência. E, antes que pudesse fazer algum efeito, o alto-falante anunciou que o ônibus das dez e quinze que partia para o Rio de Janeiro estava fechando as portas. Era o nosso. Corremos para pegá-lo.
Três horas de viagem, o ônibus alcançava o topo da serra e estávamos completamente alucinados. Os comprimidos eram colocados na boca e mastigados como se fossem Tic Tac. Minhas mãos tremiam, não sentia as pernas e a paisagem se movia em câmera lenta em tons de sépia. Precisávamos de água com urgência. A boca estava seca e, quando desidratado, essas desgraças químicas fazem um efeito que é uma porrada no crânio. Enquanto tentava identificar em que ponto da serra estávamos para pedir ao motorista que parasse para comprarmos água, levo um susto com o imbecil gritando do nada ao meu lado:
- AI, PORRA! ME ATACARAM!
- QUE FOI, CARA?
- ME ATACARAM! FUI ATACADO!
- TE ATACARAM? – Perguntei a ele para depois me levantar e gritar com os outros passageiros. – ATACARAM MEU AMIGO!
- ME ATACARAM!
- ONDE?
- ONDE O QUÊ?
- ONDE TE ATACARAM?
- AQUI NO ÔNIBUS!
- AQUI NO ÔNIBUS? – Novamente, após gritar com ele, pois era a única maneira que os dois enlouquecidos conseguiam se comunicar, gritei com o resto do ônibus. – ATACARAM MEU AMIGO AQUI NO ÔNIBUS!
- ME ATACARAM AQUI NO ÔNIBUS!
- ONDE?
- NO ÔNIBUS!
- EU SEI! ONDE TE ATACARAM?
- NO PESCOÇO!
- NO PESCOÇO?
- NO PESCOÇO!
- CADÊ?
- CADÊ O QUÊ?
- O PESCOÇO!
- MEU PESCOÇO? – Daí, completamente alucinado, ele se levanta e começa a gritar com todos e jogar as malas que estavam no compartimento de cima no chão. – ROUBARAM MEU PESCOÇO! MEU PESCOÇO! FORAM ESSAS CAPIVARAS MALDITAS!
Meio instintivamente e meio seduzido pelo surto dele, também me levantei e participei daquela loucura descontrolada provocada pela orgia química que fizemos durante todo o trajeto. Eram malas jogadas ao chão com gritos sobre procurar o pescoço desaparecido, as pessoas estavam estarrecidas, não sabiam sequer como reagir a tal cena. Tinham também os gritos pelas capivaras que, mesmo tão alucinado quanto ele, não conseguia entender o motivo e ainda assim repetia. Em pouco menos de dois minutos o ônibus ficou um caos, sendo impossível andar pelo corredor, até que dois homens se cansaram da cena e se levantaram lá dos fundos. Eles estavam sentados um ao lado do outro e eram enormes. Enormes mais no sentido do tecido adiposo que musculatura, mas ainda assim enormes. Tanto que ao se aproximarem, me abaixei esperando uma surra. Já o sachê de éter pulou na direção de um deles e ficou pendurado como uma pochete. Em meio segundo, o gordo o jogou no chão, deu uns dois cascudos nele e o arrastou para a poltrona de onde se levantou.
- FICA SENTADO AÍ! Senta do lado dele – diz o gordo para seu amigo macio e depois se vira para mim no meio do corredor. – E VOCÊ VOLTA PARA A SUA POLTRONA QUE VOU SENTAR DO SEU LADO!
Agora estava fudido de todas as formas inimagináveis. A doideira tinha alcançado o seu ápice, que somada à adrenalina da agitação da confusão virou um gás extra, como se tivessem dado uma carga elétrica em mim. Eu precisava me mexer, gritar, balançar o corpo, tentar matar aquelas malditas capivaras que agora conseguia enxergar com clareza, era necessário fazer algo. Só que ao meu lado tinha uma montanha de carne e gordura me espremendo contra a janela. Ele era branquinho, cabeça raspada e redonda. Fiquei olhando por um tempo e comecei a enxerga-lo como uma grande Nha Benta reversa. Eu precisava morder aquela cabeça.
- Açúcar!
- O que foi, garoto?
- Açúcar! Eu preciso! Preciso de açúcar!
Foi o máximo que consegui falar para tentar me manter no controle e não enfiar os dentes naquele delicioso crânio de gordura hidrogenada com creme de baunilha. Não tenho certeza se consegui pronunciar muito as palavras ou se balbuciei como se tivessem arrancado o meu maxilar, mas o que importa é que ele entendeu e perguntou se estava tudo bem. Claro que as coisas não estavam nada bem. E se para mim estava complicado, imagina para aquele imbecil que parecia um suricato epilético quando conseguiu ser contido. Precisava saber como ele estava, então tentei me virar para olhar para o fundo do ônibus.
- Onde vai, garoto?
- Imbecil. Não! Você não! Você gostoso! Digo... Cremoso e crocante... Nham! Nham! Amigo... Meu amigo imbecil...
Enquanto meu novo vizinho de poltrona tentava entender o que tinha acabado de falar, me virei completamente para os fundos do ônibus. Não acreditei no que vi. O imbecil pegou aquela espécie de fronha usada como proteção de encosto de poltrona, colocou na cabeça e ficou imitando sons de fantasma para o fofo que estava ao seu lado. Por sorte, o outro cara era bem humorado e estava se divertindo com aquilo. Resolvi interagir com eles fazendo sons de fantasmas e os dois retribuíram. O cara ao meu lado ficou puto da vida e foi tirar satisfações com o colega que ao invés de colaborar com o sossego, estava piorando ao dar corda.
Fiquei quieto na minha poltrona esperando pelo pior. Estávamos prestes a presenciar um duelo de sobremesas. Seria um Flan versus Nhá Benta. Por sorte, o Flan apenas ria e nada fez contra a Nha Benta que lhe dava seguidos esporros e sacudidas na cabeça. Meu amigo imbecil permanecia imitando fantasma ao redor dos dois e as capivaras não paravam de correr pelo ônibus. O ápice ficou por conta da hora em que o zangado percebeu que seu amigo não ria dele, mas ria por rir, porque tinha aceitado dois papéis de ácido e estava doido também. Agora eram três alucinados e um colérico. Potencialmente, tínhamos material em mãos para fazer uma versão alucinógena e alternativa de O Mágico de Oz. Entretanto, o motorista resolve parar o ônibus e nos expulsa, os quatro, no meio da descida da serra.
Agora estamos aqui no meio do nada. O zangado parado na beira da estrada tentando pedir carona, mas nunca vai conseguir, pois xingava tudo e todos ao mesmo tempo. Meu amigo imbecil e o amigo do zangado estão correndo entre as moitas tentando pegar as capivaras imaginárias. Eu estou montando uma grande armadilha para capturar o zangado e poder comer aquela deliciosa cabeça de Nhá Benta. Já juntei três gravetos e duas folhas grandes, não devo demorar muito para terminar. Aparentemente não está sendo como planejamos originalmente, mas acho que podemos deixar para uma próxima vez a tentativa de ir à capital visitar o avô dele e sua unha bizarra na clínica de idosos para tentarmos pegar mais batida de pimenta.