Fátima
- EU VOU TE MATAR! ESTÁ ME OUVINDO? VOU
TE MATAR, SEU FILHO DA PUTA!
Foi basicamente isso. Atendi ao
telefone, falei alô e o cara gritou sem parar, logo depois desligando na minha
cara. No início me assustei, até porque era de madrugada. Telefonemas de
madrugada são sempre assustadores, mesmo quando você não é médico, mas
matemático. Quando o pai da minha mãe beirava os 95 anos, cada ligação de
madrugada era uma ida urgente ao hospital. Hoje, ele não é mais vivo, mas o pai
do meu pai sim, e ele anda em um estado que a qualquer momento teremos ligações
de madrugada. Passado então o susto da ligação, me acalmei e voltei a dormir.
- Como assim, doido? – Perguntou o Cadu
assim que contei para ele no dia seguinte. – Te ligam dizendo que vão te matar
e não está preocupado?
Não tinha motivos para me preocupar.
Apenas um pequeno grupo de pessoas tinha o telefone lá de casa: minha mãe, avó,
duas amigas e o zelador do prédio que me ligava constantemente pelas manhãs
para se certificar que não tinha morrido por alguma estupidez etílica. Imagino
que isso não tinha nenhuma relação com preocupação direta comigo, mas apenas
prevenir que os vizinhos não reclamassem primeiro do cheiro de cadáver pelo
prédio. De qualquer forma, tinha certeza que era engano.
- Que engano, que nada – exclamou Cadu.
– Ninguém liga para a casa dos outros de madrugada por engano e fala que vai
matar a pessoa. Um cara que quer matar o outro, primeiro pega todas as
informações para ter certeza e depois liga.
De fato, essa teoria fazia sentido. Mas
como sabia bem, poucas pessoas tinham o meu número, então era impossível ser
comigo. Talvez não fosse alguém querendo de fato matar outra pessoa, que nesse
caso era o inofensivo eu. É possível que fosse apenas um trote. Eu mesmo
adorava passar trotes de madrugada. Ligava para um número aleatório e deixava
tocar. Às vezes, tocava tanto que a ligação caía. Daí ligava de novo até o
infeliz atender. Quando finalmente atendiam, fazia a mesma pergunta: “Bom dia,
eu acordei para beber água e o senhor?”. Na maioria das vezes, sempre recebia
como resposta algo parecido como a ligação daquela madrugada. Aliás, uma bela
coincidência, não?
- É, pode ter sido trote mesmo. – Cadu
concordara com a minha segunda teoria.
No outro dia, assim que nos encontramos,
a primeira coisa que Cadu perguntou foi se alguém ligou novamente. Disse que
não. Ninguém ligou mesmo. Concluímos que era apenas uma situação pitoresca que
passei e seguimos com as banalidades de sempre.
- EU VOU TE MATAR! ESTÁ ME OUVINDO? VOU
TE MATAR, SEU FILHO DA PUTA!
Passados três dias o cara ligou
novamente. Mais uma vez de madrugada. Levantei assustado esperando o pior como
já disse antes. Quando vi que não era algo sério, relaxei. A voz era mesma.
Aparentemente de um homem por volta de quarenta e poucos anos. Dessa vez ele
não desligou. Assim que terminou de gritar a mesma mensagem, ficou mudo por
alguns segundos calado ou recuperando o fôlego, dando assim brecha para que eu
pudesse falar. Calmamente perguntei quem era.
- É O MARIDO DA MULHER QUE VOCÊ ANDOU
COMENDO, SEU FILHO DA PUTA!
Já tinha perdido o sono mesmo e a
certeza que era trote ou engano me levou a dar corda na irritação do traído.
Continuei falando calmamente. Dessa vez, disse que como comia muitas esposas
por aí, ficaria difícil saber de quem estava falando. Então perguntei se
poderia pelo menos dizer o nome dela.
- NÃO VOU FALAR PORRA NENHUMA. EU VOU É
TE MATAR! E QUANDO TE MATAR, FALAREI O NOME DELA NO SEU OUVIDO, SEU MERDA!
Realmente consegui irritar mais ainda o
cara. Se ele estivesse na Tijuca, seria possível ouvir pela janela ele
gritando, seja qual fosse a rua que ele morava. Decidi então meter o dedo na
ferida e dar aquela giradinha para a dor ficar insuportável. Disse que, como
não iria falar o nome dela, ficaria difícil saber de quem se tratava para
poder, pelo menos, pedir sinceras desculpas. Essa fala das desculpas é um
truque velho para o cara dar uma pequena acalmada e te conceder mais uns
segundos para prosseguir com o golpe final sem te interromper. Como funcionou,
logo em seguida pedi que desse uma pista sobre a esposa. Foi então que sugeri
que ele falasse se, quando ela goza, ela geme, grita, mia ou fala o nome de
quem está com ela.
- DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! EU VOU TE
DESGRAÇADO!
Ele ficou tão irritado que não conseguiu
mais construir frases. Começou a enrolar as palavras, me chamar de matar e
dizer que iria me desgraçado. Virou uma sequência de gritos sem sentido e
ameaças tão confusas que chegaram a ficar engraçadas. Eu ri, ele ouviu e logo
depois desligou. Nem deu tempo de perguntar se ela estava por perto.
- Maluco, você tem merda na cabeça –
Cadu constatou o óbvio assim que disse o episódio daquela madrugada. – É claro
que não é trote! E você ainda fica dando corda!
Ele tinha razão, devíamos abandonar a
hipótese de ser trote. O cara respondeu de forma passional às minhas
provocações. Voltei a cogitar ser engano.
- Sim, pode ser engano mesmo – concordou
Cadu. – Mas quem não garante que era para você? Você sai enfiando esse pau em
tudo que é buraco pela frente.
Exageros à parte, mesmo que tivesse,
como o próprio Cadu disse, enfiado o pau no buraco de uma mulher casada, era
impossível que o marido tivesse o meu telefone. Portanto, a teoria do engano
era irrefutável. Provavelmente o marido descobriu a traição, pressionou a
esposa que, com medo, deu um telefone aleatório para ele. Nesse caso, o
aleatório coincidiu de ser o meu. Sendo matemático, sei muito bem que as
chances são raras disto acontecer, mas, ainda assim, sempre acontecem comigo.
Nas madrugadas seguintes não soube se
meu telefone tocou. Foram algumas viradas de noite na rua chegando pela manhã.
Como não tinha secretária eletrônica, nem um telefone que registrasse as
ligações perdidas, ficava apenas na curiosidade. Um pouco de frustração passava
por mim também, pois já estava com algumas ideias para irritar ainda mais o
cara.
- VOCÊ ACHA QUE ME ESQUECI DE VOCÊ, SEU
FILHO DE UMA PUTA? NÃO ESQUECI DO QUE FEZ E QUE AINDA DEBOCHOU DE MIM. VOCÊ
ESTÁ FUDIDO! FUDIDO! FUDIDO!
Lá estava o meu colérico amigo das
madrugas silenciosas me ligando novamente. Não sei se ele estava me testando,
se era sádico ou outra coisa qualquer, mas, novamente, ele deu tempo para que
eu falasse bobagem. Obviamente não desperdicei. Perguntei se ele não teria medo
de vir me matar na Pavuna. Assim, estaria testando se ele de fato sabe onde
moro e, ao mesmo, tempo debochando dele com o meu bairro favorito para todas as
ocasiões.
- PAVUNA É O CARALHO, SEU MERDA! EU SEI
QUE VOCÊ MORA NA TIJUCA!
Não vou mentir. Por alguns segundos meu
sangue congelou e tive aquela péssima sensação que temos na barriga quando algo
dá muito errado. Como ainda estava consideravelmente no controle da situação,
consegui reorganizar a cabeça e pensar de forma clara. Respondi que era fácil
saber onde eu morava, pois bastava fazer uma rápida pesquisa na internet com o telefone
da minha casa e o endereço seria descoberto. Não tinha pensado nisso antes. A
brincadeira tinha ficado séria, mesmo sabendo que não existia a possibilidade
de que eu fosse o cara. Estava agora provocando a ira de uma pessoa com motivos
suficientes para querer matar alguém. Uma pessoa que tinha o endereço da minha
casa. Logo, por mais que eu não fosse o cara, descontar toda a raiva em mim
seria, no mínimo, satisfatório para ele. Estava na hora de contornar as coisas.
Falei então para ele que provavelmente era um engano, eu não era de fato a
pessoa com quem a esposa dele o traiu. Prossegui dizendo que ainda assim queria
pedir desculpas pela provocação, mas que entendesse que era de madrugada e cada
pessoa reage de uma forma diferente.
- DESCULPA É O CARALHO! NÃO TEM ENGANO
NESSA MERDA, SEU FILHO DA PUTA! É VOCÊ MESMO!
Na brecha seguinte, prossegui com o
discurso de engano, que ele estava perdendo o tempo dele. Mas ele novamente me
interrompeu afirmando que era eu mesmo. Para provar, ele disse meu nome e
sobrenome. Deveria me assustar com aquilo, mas a parte do endereço foi
suficientemente surpreendente para uma única noite. Depois daquilo, fiquei de
prontidão para o rebate rápido. Falei que, se ele conseguiu meu endereço na
internet usando meu telefone, era óbvio que conseguiria o meu nome também. Ele
então rebateu descrevendo uma tatuagem que tenho no corpo que dificilmente
outra pessoa teria. Outra resposta que deveria me assustar, mas a sequência de
movimentos deles já estava bem previsível.
- Cara, na boa. Você recebeu meu
telefone achando que era do tal cara que quer matar. Pegou o meu nome e
endereço na internet, fuçou minha conta no Facebook que não é bloqueada e viu
as fotos das minhas tatuagens. Ainda assim, pode ficar tranquilo, não fui eu. Você
está seguindo por pistas indicadas por uma primeira informação errada.
Ele se calou. O silêncio durou quase um
minuto, mas a sensação foi de uma eternidade. Nem uma palavra. Sequer o som de
respiração ofegante que ele soltava enquanto eu falava dava para escutar.
Provavelmente ele parou para ouvir o que tinha dito e estava repensando tudo
naquele momento. Até que ele quebrou o silêncio falando com uma calma que
assustava mais que a gritaria a qual estava acostumado.
- Aqui no meu apartamento tem um livro
seu com uma dedicatória para a minha esposa com seu telefone ao final com os
dizeres me liga. Não me faça de idiota. Eu vou te matar. – Ele desligou.
Merda!
- Você é um imbecil mesmo – Cadu tentava
falar entre uma crise de risos e uma sequência de gargalhadas. – Não era
engano, nem trote. Era com você mesmo! E ainda ficou provocando o cara que já
estava possesso. Foi bom te conhecer, doido.
Odeio quando o Cadu tem razão. E fica
mais difícil ter contra-argumentos com uma pessoa emitindo risadas tão honestas
de chegar a chorar. Acabei rindo algums vezes também e boa parte delas, preciso
confessar, era de nervosismo. Nunca omiti que não tenho talento algum para
briga ou qualquer tipo de confronto. Mesmo que a minha vida esteja em jogo.
Para ser totalmente honesto, no que se refere à briga, meu maior talento é
apanhar. Sei levar sequências de murros e pontapés e não cair como ninguém. Sem
querer soar prepotente ou exibicionista, é claro.
- Doido, sei que vou me arrepender
disso, mas tenho uma arma guardada lá em casa desde quando entrei para a
polícia. Quer emprestada? Não para andar na rua, porque você vai ser preso.
Para ficar em casa mesmo, caso o cara apareça por lá.
Respondi que pelo menos naquela noite
não seria preciso, pois tinha um programa e voltaria apenas no dia seguinte
mesmo. Seria um encontro com a Fátima, ela era uma raridade na minha vida. Por
volta de dez anos mais velha do que eu, ela me atraía pela capacidade de
acompanhar meu raciocínio quando eu desandava a falar besteira, sabia discernir
quando estava sendo sarcástico e tinha aqueles impressionantes peitos nunca
retocados. Já ela dizia que o meu melhor era fazê-la rir e ser um pervertido
ambulante. Estranhamente nunca elogiou os meus peitos também nunca retocados. Era
difícil encontrar alguém na idade dela tão bem resolvida com um relacionamento
aberto. Nossos encontros eram uma vez por semana, quando dava. Falávamos muito
por email e mensagem de celular. De manhã, de tarde, de noite, não tinha hora.
Metade era bobagem gratuita e a outra era putaria igualmente gratuita. Os
encontros não fugiam muito de um padrão, restaurante para comer algo, depois um
pub para encher a cara e terminava na minha ou na casa dela. Quando era na zona
norte, íamos para a minha casa, quando era zona sul, o destino final era a casa
dela. Apesar de parecer algo rotineiro, sempre acontecia uma loucura que fazia
a noite ser diferente. Foi o que também aconteceu naquele tal encontro que
comentei com o Cadu.
Jantamos em um restaurante na Tijuca.
Nossos horários sempre foram ruins e, por isso, quando chegamos, o restaurante
já estava bem vazio. Por ser cliente habitual da casa, o garçom não se
incomodou e nos atendeu como sempre. Tivemos entrada, janta, sobremesa e
algumas garrafas de vinho. Tudo feito na maior calma. Foi possível conversar,
colocar as notícias em dia, incomodar os poucos clientes com nossas gargalhadas
e comentários inapropriados. Esvaziada a última taça de vinho, pedi a conta um
pouco constrangido, pois éramos os dois únicos clientes na casa. Fátima se
levantou, disse que iria ao banheiro e me aguardaria lá fora. O garçom voltou
com a conta, paguei e avisei que se por algum motivo ela procurasse por mim, eu
teria ido ao banheiro, mas que iria de fato encontrar com ela lá fora. O garçom
pegou o comprovante do cartão, disse que daria o recado, me desejou uma boa
noite e se retirou. Por ser em uma casa muito antiga, aquele restaurante tinha
um desenho interno um pouco incomum. Muitas colunas, paredes cortando os salões
e, para chegar até os banheiros, era obrigado a encarar um pequeno labirinto em
um corredor estreito. Chegando finalmente na parte onde tem as duas opções de
portas (banheiro masculino e banheiro feminino), lá estava Fátima com a cara de
cínica de sempre:
- Pensei que não entenderia o recado.
Essa era uma das nossas vantagens,
sempre entendíamos muito bem as entrelinhas. Respondi com um sorriso tão cínico
quanto e nos agarramos ali mesmo. Ela começou a me conduzir para o banheiro
masculino. Disse que era melhor o feminino, pois algum garçom poderia precisar
ir ao banheiro. Ela fez um elogio cretino envolvendo raciocínio, sangue no
cérebro e pau duro e em seguida entramos no banheiro nos agarrando e rindo um
pouco.
Sem dúvidas, Fátima era uma mulher
impressionante, mesmo que pelos parâmetros mais distorcidos. Ela sempre topava,
quando não sugeria antes, essas aventuras de adolescentes. Tal fato já é
suficiente, mas ela também era capaz de depois sair com a maior naturalidade do
mundo, como se nada tivesse acontecido. Jamais conheci alguém que fosse tão
merecedora do título de cretina, seja qual for a aplicação deste.
Passados uns vinte minutos, estávamos
pronto para sair do banheiro. Sugeri que saíssemos de mãos dadas. Ela fez uma
piada sobre ter nojo de tocar na minha mão suja de sexo e foi na frente. Alguns
segundos depois escutei uma gargalhada dela. Imaginei que, ao sair do tal
labirinto, ela deu de cara com todos os garçons e não aguentou, transbordando numa
gargalhada. Era a minha vez. Segui pelo labirinto imaginando toda a equipe à
minha espera. Na verdade só estava o nosso garçom encostado na parede:
- Parece que vocês se encontraram, né?
- Parece que terei de caprichar na
gorjeta na semana que vem – respondi.
Ele ficou rindo, eu saí rindo e lá fora
estava Fátima rindo e balançando a cabeça como quem discordava de algo. Subi na
moto e entreguei o capacete para ela que me perguntou se tinha condições de
dirigir. Respondi que sim porque o pau tinha abaixado. Ela deu um tapa na minha
cabeça me chamando de doente e disse para irmos para um bar ali perto beber
umas cervejas, onde ficamos até a metade da madrugada bebendo e falando
besteira. De lá, seguimos para a minha casa. De manhã cedo, mesmo sabendo que
odeio estar vivo antes das dez, ela me acorda. Era oito e alguma coisa.
Resmunguei, ela debochou do meu resmungo e pediu que a levasse ao trabalho.
Resmunguei mais ainda, mas acabei topando, pois assim aproveitaria que ela
trabalhava em Ipanema para caminhar na praia. Na verdade, não sei dizer não a
pedidos feitos por alguém de calcinha e camiseta preta, minha no caso. A
camiseta, não a calcinha. Enquanto descíamos no elevador, notei que ela estava
inquieta. Perguntei o motivo e ela respondeu que estava nervosa. Perguntei
novamente o motivo e ela respondeu:
- Sei lá. Vai que meu marido está na sua
portaria à nossa espera e mata nós dois.
- Marido? Você tem marido?
- Sim! Claro que tenho! Quem você acha
que quer te matar?
- Mas você me disse que era solteira!
- Eu nunca disse que era solteira, tão
pouco falei que era casada para você.
Era verdade. Nunca tinha falado sobre o
estado civil dela. Nosso relacionamento era tão aberto e prático que não
precisava desse tipo de detalhe. Tinha também o fato de trocarmos mensagem a
qualquer hora do dia e a parte que algumas vezes dormi na casa dela. Isso
provavelmente me levou a concluir que ela era solteira. Nunca reparei se tinha
fotos do casal pelo apartamento. Chegávamos bêbados, íamos direto para o
quarto, de lá só saíamos pela manhã de ressaca. A última coisa que repararia
seria em fotos. Se me perguntassem, jamais saberia responder a cor do sofá da
casa dela.
- E ainda com essa caralha toda você
continua saindo comigo? Você tem merda na cabeça?
- Disse o cara que provocou o homem que
queria matá-lo.
Mas que merda, todos usavam o mesmo
argumento contra as minhas tentativas de dizer algo recriminador. Não que
estivessem sem razão. Só achava que era a hora de mudar o disco. Ou pelo menos
deixar as coisas se acalmarem um pouco na minha cabeça. Todavia, aparentemente,
não existia essa opção. Restava apenas levá-la ao trabalho olhando para todos
os lados possíveis. A ideia de colocar uns dez retrovisores extras na moto
parecia ser genial naquele momento.
- Merda – falei enquanto nos
aproximávamos da moto. – Aquele guarda babaca multou a minha moto.
- Mas quando chegamos de madrugada você
fez questão de parar na vaga de motos, mesmo que com isso tivéssemos que nos
arrastar bêbados por alguns metros até seu prédio.
- Eu sei. Mas olhe lá o adesivo de
autuado no tanque.
- Não parece ser um adesivo de autuado.
Parece um bilhete.
De fato era um bilhete colado no tanque
da minha moto. Nele estava escrito: “Você tem uma moto muito bonita, adoraria
desmontá-la. Mas prefiro fazer isso com você!”. Merda ao quadrado!
-
Doido, esquece a arma – disse Cadu com seu tom de desesperado de sempre. – Você
precisa de escolta. Quer que eu fale com uns caras do CORE?
Não
era necessário. Naquele dia, tinha ido até a zona sul, rodei por lá, voltei e
ninguém me abordou. E nem tenho como dizer que era algo difícil de acontecer,
pois depois de conhecer a minha moto, não tem como não enxergá-la no meio do
trânsito. Estava na cara que ele iria me procurar quando fosse conveniente. Só
me restava esperar.
Esta
não era a primeira vez que alguém me ameaçava. Claro que as anteriores não eram
com tamanha dimensão ou níveis de psicopatia explícitos. Era sempre um menino
da rua que ficou zangado por algo, um colega do colégio que recebeu cola errada
e por aí em diante. Algumas caíam no esquecimento, outras não. E com meu
talento para apanhar, é possível prever como terminavam as que não caíam no
esquecimento.
A
primeira ameaça que recebi foi no meio da minha adolescência. Naquela época
morava em um prédio onde tinha uma quadra poliesportiva que permitia jogar
futebol de salão, vôlei, basquete, taco etc. A molecada da rua ia com
frequência para lá aos sábado e domingos. Basicamente era a rapaziada do meu
prédio, uma galera de um prédio que ficava do outro lado da rua e um grupo de
pessoas da rua de trás. Todo sábado, tínhamos futebol e depois basquete. Aos
domingos era apenas futebol. Certo sábado, bem antes do habitual horário do
futebol, João Carlos ligou me chamando para bater uma bolinha de basquete.
Disse que podia vir que encontraria com ele na quadra. João Carlos era um dos
que morava no prédio da frente, em uma cobertura que ficava de frente para a
quadra. Ainda assim, era uma grande distância, pois estávamos falando de um
prédio de dez andares mais a cobertura. Cheguei à quadra e fiquei batendo bola
sozinho. Arremessos, bandejas, corridas, algumas enterradas com ridículos
centímetros de dedo, até que cansei. Dei uma diminuída no ritmo e resolvi olhar
para o alto. Eis que lá estava na janela da cobertura o João Carlos. Acenei com
o braço como quem pergunta “e aí, como é?”. Ele respondeu com o mesmo gesto.
Repeti o gesto e ele idem. Como ele parecia estar de palhaçada, resolvi com os
dedos indicadores de cada mão desenhar um enorme coração para ele no ar, sendo
que o coração terminava bem no meu pau. Ele gesticulou como quem pergunta “está
maluco?”. Resolvi fazer o mesmo gesto. Ao terminar escutei uma voz:
-
Que porra é essa, cara? – Era o João Carlos entrando na quadra.
Fiquei
sem entender. Como era possível gesticular para uma pessoa na cobertura no
décimo primeiro andar de um prédio do outro lado da rua e, ao terminar o gesto,
essa mesma pessoa estava entrando no mesmo local onde eu estava? Repeti a
pergunta que João Carlos fez assim que chegou, só que dessa vez eu fiz para ele,
e, me certificando que não estava louco, olhei para ele na porta da quadra e
para ele também na cobertura. Não, não estava. João Carlos acabara de entrar na
quadra e estava ao mesmo tempo na cobertura gesticulando que ia me enfiar a
porrada.
-
É meu irmão mais velho, cara – explicou João Carlos rindo.
Tinha
mais de dois anos que jogava bola com ele e nunca soube de um irmão mais velho,
tão pouco de um irmão mais velho idêntico. Que merda! Mexi com quem estava
quieto e arrumei um problema. Tanto que no domingo, quando voltou para jogar
futebol, João Carlos disse que seu irmão estava puto da vida comigo e queria
matar o moleque abusado que debochou da cara dele. Foram estas exatas palavras
que ele me passou. Por sorte, este foi um dos vários casos que caíram no
esquecimento.
Voltando
ao presente, no dia seguinte Fátima me ligou. Contou que tentou conversar com o
marido, explicar que eu não sabia de coisa alguma, que era apenas culpa dela e
outras coisas para tentar livrar a minha barra. Agradeci o seu esforço, pois,
afinal, eu não sabia mesmo que ela era casada. Toda minha culpa nesta história
era ter provocado um cara que queria de fato me matar, ou pelo menos fazia
menção a isso, mas que achava que era um trote. O mote inicial da ameaça era
desconhecido para mim, portanto, naquela circunstância, eu tecnicamente não
tinha culpa. Perguntei o que ele fez. Ela contou que ele disse que deveria dar
uma surra nela, mas que não era bobo, nem burro, por isso não iria encostar em
um fio de cabelo dela, apenas falar algumas verdades e, ao final, acabou
fazendo algo muito pior, mandou que passasse o resto da semana na casa da mãe
em Miguel Pereira.
Dias
depois, eu estava dando aula. Na instituição onde lecionava, existem alguns
blocos nos quais a frequência de pessoas pelas salas e corredores era bastante
pequena, inclusive professores e funcionários em geral. Neles, quando era de
noite, a frequência ficava menor ainda. Era em um deles que eu estava e, como a
aula não era somente de noite, mas também uma sexta-feira, é óbvio que o bloco
estava um mausoléu. Sim, não preciso dizer que era um corno por marcar aula
sexta de noite, mas isso fica para outros parágrafos.
Alguns
anos atrás, os alunos possuíam um hábito que era bastante curioso. Eles não se
preocupavam em antecipadamente se informar em qual sala a aula deles seria
ministrada. Eles apenas iam de sala em sala, abriam a porta, olhavam quem
estava dentro e iam embora até achar a correta. Esse hábito eu costumava chamar
de Síndrome da Geladeira, remetendo à mania que, particularmente, eu tenho de
ir à geladeira, abrir a porta, apenas olhar o seu interior e sair. Passado um
tempo, imagino que motivado por esta síndrome e, ao mesmo tempo, pela certeza
que os alunos nunca irão ganhar o desprezível hábito de se informar com antecedência
sobre as aulas, colocaram pequenas janelas de vidro nas portas das salas. Daí,
extinguiu-se a Síndrome da Geladeira, mas surgiu uma nova síndrome, a Síndrome
do Serial Killer. Os mesmos alunos, que tinham coragem de abrir uma porta no
meio de uma aula, olhar o que tem dentro e ir embora, agora ficavam com
vergonha de parar por míseros cinco segundos na janela para ver qual era o
professor ou se reconhecia algum colega dentre a classe. A cena que agora
surgia era de alunos andando pelo corredor, fingindo que seguiam o caminho
deles, mas em passos lentíssimos, com o pescoço virado para a janela da porta e
rosto rente ao vidro encarando quem estivesse lá dentro. Eles passavam uma,
duas, três, até dez vezes, todas bem devagar até conseguir identificar algo.
Jamais paravam, era sempre em movimento. Pareciam de fato psicopatas cercando a
vítima e mostrando para ela: “Estou aqui fora! Estou à sua espera!”. Por conta
dessa síndrome, era bastante comum ver alunos dentro de sala olhando para a tal
janela da porta. Afinal, como sabemos, eles têm naturalmente a concentração de
uma criança hiperativa após duas colheres de açúcar puro. Isto nunca me
incomodou, aliás, achava divertido. Contudo, naquele dia, as atenções para a
janela estavam especialmente frequentes. Lembro que em certo momento brinquei
com eles: “Senhores, não acredito que lá fora tenha algo que consiga ser mais
interessante do eu.”. Mesmo com um sinal gritante desse tipo, não me toquei no
fato de que o bloco estava deserto e ainda assim tinha alguém lá fora constantemente na
janela.
Terminada
a aula, é comum que fiquem alguns alunos em sala. Sempre são dois para tirar
uma dúvida ou comentar algo sobre o conteúdo, um ou outro para falar de eventos
profanos tribais que acontecerão no final de semana, fora os que ficam para
falar besteira mesmo. Por ser uma sexta-feira de noite, saíram todos em manada.
Não ficou um aluno sequer para que me mandasse à merda pelo menos. Assim que
saíram os últimos, entrou um homem aparentando ter mais de quarenta anos. Logo
que bati os olhos nele, já sabia quem era. A presença dele ali não me
surpreendeu. Ele já tinha meu nome completo, endereço, telefone e mais outras
informações provavelmente. Achar onde dava aula era absolutamente fácil. Apenas
com meu nome, ele conseguiria achar meu site em que mantenho relação acadêmica
com os alunos, lá constam todas as instituições, disciplinas, dias, horários e
salas de aula. Eu estava acabando de arrumar meu material quando ele entrou.
Ficamos de frente um para o outro a uma distância de menos de um metro. Sequer
tivemos dois segundos de silêncio, pois assim que parou, ele me perguntou:
-
Você é o professor de lógica?
-
Não, é a gordinha de blusa listrada que acabou de sair.
Mal
tive tempo de armar o sorriso de deboche, ele me deu um soco no rosto.
Tecnicamente não foi um bom soco. Pegou na bochecha, quase na costeleta. Ele
conseguiu errar o meu enorme e erótico nariz. Ainda assim foi um soco forte o
suficiente para que me virasse e caísse sobre a mesa. Papéis, canetas e
apagador caíram no chão. O computador ficou preso sob meu peito. Poderia me
levantar já partindo para cima dele. Ou poderia ao menos me levantar para me
proteger de possíveis novos golpes. Não fiz um, nem outro. Permaneci parado na
mesma posição que caí sobre a mesa. Fiquei esperando qual seria o próximo
movimento dele. Ele disse:
-
Venha! Levante-se!
Levantei-me
devagar com uma das mãos sobre o rosto que latejava com a pancada. Sem pressa,
disse para que ele fizesse logo o que pretendia, pois não iria revidar. Assumi
que errei ao provocá-lo quando achava que as ameaças não eram comigo, mas
afirmei que não iria me desculpar pelo resto. Não tinha culpa daquilo. Sequer
sabia que ela era casada.
-
Você deve se desculpar, sim – disse ele enfaticamente com o dedo em riste. –
Você comeu minha esposa!
-
Cara, se for por isso, eu precisarei pedir desculpas várias vezes para você.
Era
fato que ele não sabia bater muito bem, entretanto preciso admitir que o
desgraçado era bem rápido. Mal terminei a frase e ele me acertou um chute que pegou
no joelho esquerdo. Caí nas carteiras e fui parar no chão sobre os papéis que
ali já estavam. Acredito que por conta do barulho de carteiras sendo reviradas
com a minha queda, dois alunos apareceram na porta da sala. Não eram da minha
turma, deveriam estar perdidos por lá, ou simplesmente estavam aproveitando o
bloco deserto para fazer uma tradicional saliência nas salas escuras. Ao se
depararem com a cena daquele homem de pé e eu no chão, eles perguntaram se
estava tudo bem.
-
Não, relaxem – eu disse ainda caído no chão e gesticulando com as mãos tentando
passar um ar de controle total da situação. – É apenas um aluno pedindo revisão
de prova final que não concorda com a nota que dei.
Não
tenho certeza se eles entenderam o meu sarcasmo, mas o fato é que eles foram
embora e voltei a ficar a sós com o homem que queria me matar. Levantei-me,
pela segunda vez, calmamente e me prostrei à sua frente com uma postura de quem
diz que nada vai fazer.
-
VAMOS! – Ele gritou. – FAÇA ALGO! CADÊ SUA VALENTIA?
-
Eu nunca disse que sou valente.
-
E suas respostas espertinhas para mim são o quê?
-
Isso é uma deficiência que tenho. Minha boca não costuma obedecer muito ao meu
cérebro. Ela faz o que quer.
-
MENTIRA! Isso é você querendo esfregar na minha cara que não tem medo de mim!
-
Eu? – Apontei para o meu próprio peito, parecendo ser um pouco mais dramático
do que a situação pedia. – Claro que tenho!
-
MENTIRA!
-
Como mentira? Você descobriu tudo sobre a minha pessoa. Achou meu endereço.
Deixou bilhete na minha moto. Aliás, podia ter sabotado meu freio. Você a
qualquer momento poderia me surpreender e me matar. Sequer sabia como era a sua
cara, logo nem teria como prever. Como não ter medo disso?
-
E ainda assim não se preocupou. Não foi cauteloso. Ficou dando bobeira por aí.
Não, você não pode ser tão burro assim.
-
Não, não sou burro mesmo.
-
Então por que insistia em provocar?
-
Acredito que seja algo relacionado à demência, ser inconsequente ou instinto
auto-destrutivo.
Terminada
a minha frase, franzi o rosto esperando mais alguma porrada. Ele nem se mexeu.
Foram breves segundos de silêncio até que resolvi pedir desculpas novamente.
Falei que não era pessoal, que foi uma coisa sobre a qual não tinha controle e
sequer sabia dos detalhes conjugais. Comentei ainda que se ele quisesse uma
chance de salvar o casamento dele, não era ali o local dele, era ao lado da
esposa que estava provavelmente procurando comigo algo que não tinha com ele.
Mas se ele estivesse ali apenas para tentar curar o ego ferido, me matar talvez
resolveria momentaneamente o problema, só que com o tempo, ele olharia para ela
e continuaria a me ver. Aliás, a traição só passou a ter um rosto porque ele
procurou e correu atrás de mim, disse também. Voltamos ao silêncio. Fiquei
esperando uma resposta dele, mas não tive. Ele ficou calado olhando para o
chão. Sua expressão era péssima. Provocava em mim uma sensação de pena
misturada com constrangimento. Era necessária coragem demais para chegar até
aquele ponto que ele estava e não encontrar o que procurava. Tenho quase
certeza que tudo que ele queria era que eu revidasse. Ele iria brigar como se
estivesse defendendo a própria vida e, independentemente de sair vitorioso, ao
final teria a sensação de purgar aquilo que tanto doía por dentro.
-
Pois bem – quebrei novamente o silêncio colocando meus pertences na mochila. –
Caso não tenha mais o que falar ou fazer, eu preciso ir. Uma gatinha espera por
mim em um bar aqui perto.
-
Espere – ele disse enquanto passava ao seu lado a caminho da porta. – Ela está
na casa da mãe.
-
Eu sei. Em Miguel Pereira.
-
Vocês se falaram?
-
Sim, ela me ligou para pedir desculpas.
-
Vai encontrar com ela novamente?
-
Você pretende salvar seu casamento?
-
Sim, gostaria muito.
-
Então não – respondi e caminhei até a porta quando parei e perguntei. – Você
trouxe uma arma?
-
Não – ele respondeu ensaiando um riso. – Seria uma cena patética te matar. Logo
após eu desmaiaria já que não posso ver sangue.
-
Deveria vencer esse medo. Passe a fazer sexo com ela menstruada. Pessoas com nojo disso era algo que
ela reclamava bastante.
-
Isso foi cruel. Não precisava comentar.
-
Desculpe, não foi intencional. Foi com boas intenções.
-
É – ele falou apontando para mim. – Você é bastante inconsequente mesmo, devia
se tratar.
Não
respondi. Fui embora em seguida e não sei o que ele fez em seguida. Alguns
meses depois Fátima entrou em contato agradecendo por não ter piorado a
situação quando ele foi ao meu encontro. Falei que não foi pensado, apenas fui
covarde mesmo.
-
Não – ela retrucou. – Você foi sensato!
-
Baby, eu nunca sou sensato.
Ela
riu e fez um silêncio para ouvir a voz masculina ao fundo que falava com ela.
Em seguida, disse que o marido pedia para avisar que ainda tinha o meu endereço
e que iria me fazer uma visita. Respondi que dissesse a ele que seria tão
bem-vindo, que iria servir de almoço uma picanha bem sangrenta. Em seguida
desliguei e mudei na minha agenda o nome Fátima para Risco de Morte.
Outro conto da coleção? Leia Mariana