domingo, 28 de agosto de 2016

Volúvel

Fátima
- EU VOU TE MATAR! ESTÁ ME OUVINDO? VOU TE MATAR, SEU FILHO DA PUTA!
Foi basicamente isso. Atendi ao telefone, falei alô e o cara gritou sem parar, logo depois desligando na minha cara. No início me assustei, até porque era de madrugada. Telefonemas de madrugada são sempre assustadores, mesmo quando você não é médico, mas matemático. Quando o pai da minha mãe beirava os 95 anos, cada ligação de madrugada era uma ida urgente ao hospital. Hoje, ele não é mais vivo, mas o pai do meu pai sim, e ele anda em um estado que a qualquer momento teremos ligações de madrugada. Passado então o susto da ligação, me acalmei e voltei a dormir.
- Como assim, doido? – Perguntou o Cadu assim que contei para ele no dia seguinte. – Te ligam dizendo que vão te matar e não está preocupado?
Não tinha motivos para me preocupar. Apenas um pequeno grupo de pessoas tinha o telefone lá de casa: minha mãe, avó, duas amigas e o zelador do prédio que me ligava constantemente pelas manhãs para se certificar que não tinha morrido por alguma estupidez etílica. Imagino que isso não tinha nenhuma relação com preocupação direta comigo, mas apenas prevenir que os vizinhos não reclamassem primeiro do cheiro de cadáver pelo prédio. De qualquer forma, tinha certeza que era engano.
- Que engano, que nada – exclamou Cadu. – Ninguém liga para a casa dos outros de madrugada por engano e fala que vai matar a pessoa. Um cara que quer matar o outro, primeiro pega todas as informações para ter certeza e depois liga.
De fato, essa teoria fazia sentido. Mas como sabia bem, poucas pessoas tinham o meu número, então era impossível ser comigo. Talvez não fosse alguém querendo de fato matar outra pessoa, que nesse caso era o inofensivo eu. É possível que fosse apenas um trote. Eu mesmo adorava passar trotes de madrugada. Ligava para um número aleatório e deixava tocar. Às vezes, tocava tanto que a ligação caía. Daí ligava de novo até o infeliz atender. Quando finalmente atendiam, fazia a mesma pergunta: “Bom dia, eu acordei para beber água e o senhor?”. Na maioria das vezes, sempre recebia como resposta algo parecido como a ligação daquela madrugada. Aliás, uma bela coincidência, não?
- É, pode ter sido trote mesmo. – Cadu concordara com a minha segunda teoria.
No outro dia, assim que nos encontramos, a primeira coisa que Cadu perguntou foi se alguém ligou novamente. Disse que não. Ninguém ligou mesmo. Concluímos que era apenas uma situação pitoresca que passei e seguimos com as banalidades de sempre.
- EU VOU TE MATAR! ESTÁ ME OUVINDO? VOU TE MATAR, SEU FILHO DA PUTA!
Passados três dias o cara ligou novamente. Mais uma vez de madrugada. Levantei assustado esperando o pior como já disse antes. Quando vi que não era algo sério, relaxei. A voz era mesma. Aparentemente de um homem por volta de quarenta e poucos anos. Dessa vez ele não desligou. Assim que terminou de gritar a mesma mensagem, ficou mudo por alguns segundos calado ou recuperando o fôlego, dando assim brecha para que eu pudesse falar. Calmamente perguntei quem era.
- É O MARIDO DA MULHER QUE VOCÊ ANDOU COMENDO, SEU FILHO DA PUTA!
Já tinha perdido o sono mesmo e a certeza que era trote ou engano me levou a dar corda na irritação do traído. Continuei falando calmamente. Dessa vez, disse que como comia muitas esposas por aí, ficaria difícil saber de quem estava falando. Então perguntei se poderia pelo menos dizer o nome dela.
- NÃO VOU FALAR PORRA NENHUMA. EU VOU É TE MATAR! E QUANDO TE MATAR, FALAREI O NOME DELA NO SEU OUVIDO, SEU MERDA!
Realmente consegui irritar mais ainda o cara. Se ele estivesse na Tijuca, seria possível ouvir pela janela ele gritando, seja qual fosse a rua que ele morava. Decidi então meter o dedo na ferida e dar aquela giradinha para a dor ficar insuportável. Disse que, como não iria falar o nome dela, ficaria difícil saber de quem se tratava para poder, pelo menos, pedir sinceras desculpas. Essa fala das desculpas é um truque velho para o cara dar uma pequena acalmada e te conceder mais uns segundos para prosseguir com o golpe final sem te interromper. Como funcionou, logo em seguida pedi que desse uma pista sobre a esposa. Foi então que sugeri que ele falasse se, quando ela goza, ela geme, grita, mia ou fala o nome de quem está com ela.
- DESGRAÇADO! DESGRAÇADO! EU VOU TE DESGRAÇADO!
Ele ficou tão irritado que não conseguiu mais construir frases. Começou a enrolar as palavras, me chamar de matar e dizer que iria me desgraçado. Virou uma sequência de gritos sem sentido e ameaças tão confusas que chegaram a ficar engraçadas. Eu ri, ele ouviu e logo depois desligou. Nem deu tempo de perguntar se ela estava por perto.
- Maluco, você tem merda na cabeça – Cadu constatou o óbvio assim que disse o episódio daquela madrugada. – É claro que não é trote! E você ainda fica dando corda!
Ele tinha razão, devíamos abandonar a hipótese de ser trote. O cara respondeu de forma passional às minhas provocações. Voltei a cogitar ser engano.
- Sim, pode ser engano mesmo – concordou Cadu. – Mas quem não garante que era para você? Você sai enfiando esse pau em tudo que é buraco pela frente.
Exageros à parte, mesmo que tivesse, como o próprio Cadu disse, enfiado o pau no buraco de uma mulher casada, era impossível que o marido tivesse o meu telefone. Portanto, a teoria do engano era irrefutável. Provavelmente o marido descobriu a traição, pressionou a esposa que, com medo, deu um telefone aleatório para ele. Nesse caso, o aleatório coincidiu de ser o meu. Sendo matemático, sei muito bem que as chances são raras disto acontecer, mas, ainda assim, sempre acontecem comigo.
Nas madrugadas seguintes não soube se meu telefone tocou. Foram algumas viradas de noite na rua chegando pela manhã. Como não tinha secretária eletrônica, nem um telefone que registrasse as ligações perdidas, ficava apenas na curiosidade. Um pouco de frustração passava por mim também, pois já estava com algumas ideias para irritar ainda mais o cara.
- VOCÊ ACHA QUE ME ESQUECI DE VOCÊ, SEU FILHO DE UMA PUTA? NÃO ESQUECI DO QUE FEZ E QUE AINDA DEBOCHOU DE MIM. VOCÊ ESTÁ FUDIDO! FUDIDO! FUDIDO!
Lá estava o meu colérico amigo das madrugas silenciosas me ligando novamente. Não sei se ele estava me testando, se era sádico ou outra coisa qualquer, mas, novamente, ele deu tempo para que eu falasse bobagem. Obviamente não desperdicei. Perguntei se ele não teria medo de vir me matar na Pavuna. Assim, estaria testando se ele de fato sabe onde moro e, ao mesmo, tempo debochando dele com o meu bairro favorito para todas as ocasiões.
- PAVUNA É O CARALHO, SEU MERDA! EU SEI QUE VOCÊ MORA NA TIJUCA!
Não vou mentir. Por alguns segundos meu sangue congelou e tive aquela péssima sensação que temos na barriga quando algo dá muito errado. Como ainda estava consideravelmente no controle da situação, consegui reorganizar a cabeça e pensar de forma clara. Respondi que era fácil saber onde eu morava, pois bastava fazer uma rápida pesquisa na internet com o telefone da minha casa e o endereço seria descoberto. Não tinha pensado nisso antes. A brincadeira tinha ficado séria, mesmo sabendo que não existia a possibilidade de que eu fosse o cara. Estava agora provocando a ira de uma pessoa com motivos suficientes para querer matar alguém. Uma pessoa que tinha o endereço da minha casa. Logo, por mais que eu não fosse o cara, descontar toda a raiva em mim seria, no mínimo, satisfatório para ele. Estava na hora de contornar as coisas. Falei então para ele que provavelmente era um engano, eu não era de fato a pessoa com quem a esposa dele o traiu. Prossegui dizendo que ainda assim queria pedir desculpas pela provocação, mas que entendesse que era de madrugada e cada pessoa reage de uma forma diferente.
- DESCULPA É O CARALHO! NÃO TEM ENGANO NESSA MERDA, SEU FILHO DA PUTA! É VOCÊ MESMO!
Na brecha seguinte, prossegui com o discurso de engano, que ele estava perdendo o tempo dele. Mas ele novamente me interrompeu afirmando que era eu mesmo. Para provar, ele disse meu nome e sobrenome. Deveria me assustar com aquilo, mas a parte do endereço foi suficientemente surpreendente para uma única noite. Depois daquilo, fiquei de prontidão para o rebate rápido. Falei que, se ele conseguiu meu endereço na internet usando meu telefone, era óbvio que conseguiria o meu nome também. Ele então rebateu descrevendo uma tatuagem que tenho no corpo que dificilmente outra pessoa teria. Outra resposta que deveria me assustar, mas a sequência de movimentos deles já estava bem previsível.
- Cara, na boa. Você recebeu meu telefone achando que era do tal cara que quer matar. Pegou o meu nome e endereço na internet, fuçou minha conta no Facebook que não é bloqueada e viu as fotos das minhas tatuagens. Ainda assim, pode ficar tranquilo, não fui eu. Você está seguindo por pistas indicadas por uma primeira informação errada.
Ele se calou. O silêncio durou quase um minuto, mas a sensação foi de uma eternidade. Nem uma palavra. Sequer o som de respiração ofegante que ele soltava enquanto eu falava dava para escutar. Provavelmente ele parou para ouvir o que tinha dito e estava repensando tudo naquele momento. Até que ele quebrou o silêncio falando com uma calma que assustava mais que a gritaria a qual estava acostumado.
- Aqui no meu apartamento tem um livro seu com uma dedicatória para a minha esposa com seu telefone ao final com os dizeres me liga. Não me faça de idiota. Eu vou te matar. – Ele desligou.
Merda!
- Você é um imbecil mesmo – Cadu tentava falar entre uma crise de risos e uma sequência de gargalhadas. – Não era engano, nem trote. Era com você mesmo! E ainda ficou provocando o cara que já estava possesso. Foi bom te conhecer, doido.
Odeio quando o Cadu tem razão. E fica mais difícil ter contra-argumentos com uma pessoa emitindo risadas tão honestas de chegar a chorar. Acabei rindo algums vezes também e boa parte delas, preciso confessar, era de nervosismo. Nunca omiti que não tenho talento algum para briga ou qualquer tipo de confronto. Mesmo que a minha vida esteja em jogo. Para ser totalmente honesto, no que se refere à briga, meu maior talento é apanhar. Sei levar sequências de murros e pontapés e não cair como ninguém. Sem querer soar prepotente ou exibicionista, é claro.
- Doido, sei que vou me arrepender disso, mas tenho uma arma guardada lá em casa desde quando entrei para a polícia. Quer emprestada? Não para andar na rua, porque você vai ser preso. Para ficar em casa mesmo, caso o cara apareça por lá.
Respondi que pelo menos naquela noite não seria preciso, pois tinha um programa e voltaria apenas no dia seguinte mesmo. Seria um encontro com a Fátima, ela era uma raridade na minha vida. Por volta de dez anos mais velha do que eu, ela me atraía pela capacidade de acompanhar meu raciocínio quando eu desandava a falar besteira, sabia discernir quando estava sendo sarcástico e tinha aqueles impressionantes peitos nunca retocados. Já ela dizia que o meu melhor era fazê-la rir e ser um pervertido ambulante. Estranhamente nunca elogiou os meus peitos também nunca retocados. Era difícil encontrar alguém na idade dela tão bem resolvida com um relacionamento aberto. Nossos encontros eram uma vez por semana, quando dava. Falávamos muito por email e mensagem de celular. De manhã, de tarde, de noite, não tinha hora. Metade era bobagem gratuita e a outra era putaria igualmente gratuita. Os encontros não fugiam muito de um padrão, restaurante para comer algo, depois um pub para encher a cara e terminava na minha ou na casa dela. Quando era na zona norte, íamos para a minha casa, quando era zona sul, o destino final era a casa dela. Apesar de parecer algo rotineiro, sempre acontecia uma loucura que fazia a noite ser diferente. Foi o que também aconteceu naquele tal encontro que comentei com o Cadu.
Jantamos em um restaurante na Tijuca. Nossos horários sempre foram ruins e, por isso, quando chegamos, o restaurante já estava bem vazio. Por ser cliente habitual da casa, o garçom não se incomodou e nos atendeu como sempre. Tivemos entrada, janta, sobremesa e algumas garrafas de vinho. Tudo feito na maior calma. Foi possível conversar, colocar as notícias em dia, incomodar os poucos clientes com nossas gargalhadas e comentários inapropriados. Esvaziada a última taça de vinho, pedi a conta um pouco constrangido, pois éramos os dois únicos clientes na casa. Fátima se levantou, disse que iria ao banheiro e me aguardaria lá fora. O garçom voltou com a conta, paguei e avisei que se por algum motivo ela procurasse por mim, eu teria ido ao banheiro, mas que iria de fato encontrar com ela lá fora. O garçom pegou o comprovante do cartão, disse que daria o recado, me desejou uma boa noite e se retirou. Por ser em uma casa muito antiga, aquele restaurante tinha um desenho interno um pouco incomum. Muitas colunas, paredes cortando os salões e, para chegar até os banheiros, era obrigado a encarar um pequeno labirinto em um corredor estreito. Chegando finalmente na parte onde tem as duas opções de portas (banheiro masculino e banheiro feminino), lá estava Fátima com a cara de cínica de sempre:
- Pensei que não entenderia o recado.
Essa era uma das nossas vantagens, sempre entendíamos muito bem as entrelinhas. Respondi com um sorriso tão cínico quanto e nos agarramos ali mesmo. Ela começou a me conduzir para o banheiro masculino. Disse que era melhor o feminino, pois algum garçom poderia precisar ir ao banheiro. Ela fez um elogio cretino envolvendo raciocínio, sangue no cérebro e pau duro e em seguida entramos no banheiro nos agarrando e rindo um pouco.
Sem dúvidas, Fátima era uma mulher impressionante, mesmo que pelos parâmetros mais distorcidos. Ela sempre topava, quando não sugeria antes, essas aventuras de adolescentes. Tal fato já é suficiente, mas ela também era capaz de depois sair com a maior naturalidade do mundo, como se nada tivesse acontecido. Jamais conheci alguém que fosse tão merecedora do título de cretina, seja qual for a aplicação deste.
Passados uns vinte minutos, estávamos pronto para sair do banheiro. Sugeri que saíssemos de mãos dadas. Ela fez uma piada sobre ter nojo de tocar na minha mão suja de sexo e foi na frente. Alguns segundos depois escutei uma gargalhada dela. Imaginei que, ao sair do tal labirinto, ela deu de cara com todos os garçons e não aguentou, transbordando numa gargalhada. Era a minha vez. Segui pelo labirinto imaginando toda a equipe à minha espera. Na verdade só estava o nosso garçom encostado na parede:
- Parece que vocês se encontraram, né?
- Parece que terei de caprichar na gorjeta na semana que vem – respondi.
Ele ficou rindo, eu saí rindo e lá fora estava Fátima rindo e balançando a cabeça como quem discordava de algo. Subi na moto e entreguei o capacete para ela que me perguntou se tinha condições de dirigir. Respondi que sim porque o pau tinha abaixado. Ela deu um tapa na minha cabeça me chamando de doente e disse para irmos para um bar ali perto beber umas cervejas, onde ficamos até a metade da madrugada bebendo e falando besteira. De lá, seguimos para a minha casa. De manhã cedo, mesmo sabendo que odeio estar vivo antes das dez, ela me acorda. Era oito e alguma coisa. Resmunguei, ela debochou do meu resmungo e pediu que a levasse ao trabalho. Resmunguei mais ainda, mas acabei topando, pois assim aproveitaria que ela trabalhava em Ipanema para caminhar na praia. Na verdade, não sei dizer não a pedidos feitos por alguém de calcinha e camiseta preta, minha no caso. A camiseta, não a calcinha. Enquanto descíamos no elevador, notei que ela estava inquieta. Perguntei o motivo e ela respondeu que estava nervosa. Perguntei novamente o motivo e ela respondeu:
- Sei lá. Vai que meu marido está na sua portaria à nossa espera e mata nós dois.
- Marido? Você tem marido?
- Sim! Claro que tenho! Quem você acha que quer te matar?
- Mas você me disse que era solteira!
- Eu nunca disse que era solteira, tão pouco falei que era casada para você.
Era verdade. Nunca tinha falado sobre o estado civil dela. Nosso relacionamento era tão aberto e prático que não precisava desse tipo de detalhe. Tinha também o fato de trocarmos mensagem a qualquer hora do dia e a parte que algumas vezes dormi na casa dela. Isso provavelmente me levou a concluir que ela era solteira. Nunca reparei se tinha fotos do casal pelo apartamento. Chegávamos bêbados, íamos direto para o quarto, de lá só saíamos pela manhã de ressaca. A última coisa que repararia seria em fotos. Se me perguntassem, jamais saberia responder a cor do sofá da casa dela.
- E ainda com essa caralha toda você continua saindo comigo? Você tem merda na cabeça?
- Disse o cara que provocou o homem que queria matá-lo.
Mas que merda, todos usavam o mesmo argumento contra as minhas tentativas de dizer algo recriminador. Não que estivessem sem razão. Só achava que era a hora de mudar o disco. Ou pelo menos deixar as coisas se acalmarem um pouco na minha cabeça. Todavia, aparentemente, não existia essa opção. Restava apenas levá-la ao trabalho olhando para todos os lados possíveis. A ideia de colocar uns dez retrovisores extras na moto parecia ser genial naquele momento.
- Merda – falei enquanto nos aproximávamos da moto. – Aquele guarda babaca multou a minha moto.
- Mas quando chegamos de madrugada você fez questão de parar na vaga de motos, mesmo que com isso tivéssemos que nos arrastar bêbados por alguns metros até seu prédio.
- Eu sei. Mas olhe lá o adesivo de autuado no tanque.
- Não parece ser um adesivo de autuado. Parece um bilhete.
De fato era um bilhete colado no tanque da minha moto. Nele estava escrito: “Você tem uma moto muito bonita, adoraria desmontá-la. Mas prefiro fazer isso com você!”. Merda ao quadrado!
- Doido, esquece a arma – disse Cadu com seu tom de desesperado de sempre. – Você precisa de escolta. Quer que eu fale com uns caras do CORE?
Não era necessário. Naquele dia, tinha ido até a zona sul, rodei por lá, voltei e ninguém me abordou. E nem tenho como dizer que era algo difícil de acontecer, pois depois de conhecer a minha moto, não tem como não enxergá-la no meio do trânsito. Estava na cara que ele iria me procurar quando fosse conveniente. Só me restava esperar.
Esta não era a primeira vez que alguém me ameaçava. Claro que as anteriores não eram com tamanha dimensão ou níveis de psicopatia explícitos. Era sempre um menino da rua que ficou zangado por algo, um colega do colégio que recebeu cola errada e por aí em diante. Algumas caíam no esquecimento, outras não. E com meu talento para apanhar, é possível prever como terminavam as que não caíam no esquecimento.
A primeira ameaça que recebi foi no meio da minha adolescência. Naquela época morava em um prédio onde tinha uma quadra poliesportiva que permitia jogar futebol de salão, vôlei, basquete, taco etc. A molecada da rua ia com frequência para lá aos sábado e domingos. Basicamente era a rapaziada do meu prédio, uma galera de um prédio que ficava do outro lado da rua e um grupo de pessoas da rua de trás. Todo sábado, tínhamos futebol e depois basquete. Aos domingos era apenas futebol. Certo sábado, bem antes do habitual horário do futebol, João Carlos ligou me chamando para bater uma bolinha de basquete. Disse que podia vir que encontraria com ele na quadra. João Carlos era um dos que morava no prédio da frente, em uma cobertura que ficava de frente para a quadra. Ainda assim, era uma grande distância, pois estávamos falando de um prédio de dez andares mais a cobertura. Cheguei à quadra e fiquei batendo bola sozinho. Arremessos, bandejas, corridas, algumas enterradas com ridículos centímetros de dedo, até que cansei. Dei uma diminuída no ritmo e resolvi olhar para o alto. Eis que lá estava na janela da cobertura o João Carlos. Acenei com o braço como quem pergunta “e aí, como é?”. Ele respondeu com o mesmo gesto. Repeti o gesto e ele idem. Como ele parecia estar de palhaçada, resolvi com os dedos indicadores de cada mão desenhar um enorme coração para ele no ar, sendo que o coração terminava bem no meu pau. Ele gesticulou como quem pergunta “está maluco?”. Resolvi fazer o mesmo gesto. Ao terminar escutei uma voz:
- Que porra é essa, cara? – Era o João Carlos entrando na quadra.
Fiquei sem entender. Como era possível gesticular para uma pessoa na cobertura no décimo primeiro andar de um prédio do outro lado da rua e, ao terminar o gesto, essa mesma pessoa estava entrando no mesmo local onde eu estava? Repeti a pergunta que João Carlos fez assim que chegou, só que dessa vez eu fiz para ele, e, me certificando que não estava louco, olhei para ele na porta da quadra e para ele também na cobertura. Não, não estava. João Carlos acabara de entrar na quadra e estava ao mesmo tempo na cobertura gesticulando que ia me enfiar a porrada.
- É meu irmão mais velho, cara – explicou João Carlos rindo.
Tinha mais de dois anos que jogava bola com ele e nunca soube de um irmão mais velho, tão pouco de um irmão mais velho idêntico. Que merda! Mexi com quem estava quieto e arrumei um problema. Tanto que no domingo, quando voltou para jogar futebol, João Carlos disse que seu irmão estava puto da vida comigo e queria matar o moleque abusado que debochou da cara dele. Foram estas exatas palavras que ele me passou. Por sorte, este foi um dos vários casos que caíram no esquecimento.
Voltando ao presente, no dia seguinte Fátima me ligou. Contou que tentou conversar com o marido, explicar que eu não sabia de coisa alguma, que era apenas culpa dela e outras coisas para tentar livrar a minha barra. Agradeci o seu esforço, pois, afinal, eu não sabia mesmo que ela era casada. Toda minha culpa nesta história era ter provocado um cara que queria de fato me matar, ou pelo menos fazia menção a isso, mas que achava que era um trote. O mote inicial da ameaça era desconhecido para mim, portanto, naquela circunstância, eu tecnicamente não tinha culpa. Perguntei o que ele fez. Ela contou que ele disse que deveria dar uma surra nela, mas que não era bobo, nem burro, por isso não iria encostar em um fio de cabelo dela, apenas falar algumas verdades e, ao final, acabou fazendo algo muito pior, mandou que passasse o resto da semana na casa da mãe em Miguel Pereira.
Dias depois, eu estava dando aula. Na instituição onde lecionava, existem alguns blocos nos quais a frequência de pessoas pelas salas e corredores era bastante pequena, inclusive professores e funcionários em geral. Neles, quando era de noite, a frequência ficava menor ainda. Era em um deles que eu estava e, como a aula não era somente de noite, mas também uma sexta-feira, é óbvio que o bloco estava um mausoléu. Sim, não preciso dizer que era um corno por marcar aula sexta de noite, mas isso fica para outros parágrafos.
Alguns anos atrás, os alunos possuíam um hábito que era bastante curioso. Eles não se preocupavam em antecipadamente se informar em qual sala a aula deles seria ministrada. Eles apenas iam de sala em sala, abriam a porta, olhavam quem estava dentro e iam embora até achar a correta. Esse hábito eu costumava chamar de Síndrome da Geladeira, remetendo à mania que, particularmente, eu tenho de ir à geladeira, abrir a porta, apenas olhar o seu interior e sair. Passado um tempo, imagino que motivado por esta síndrome e, ao mesmo tempo, pela certeza que os alunos nunca irão ganhar o desprezível hábito de se informar com antecedência sobre as aulas, colocaram pequenas janelas de vidro nas portas das salas. Daí, extinguiu-se a Síndrome da Geladeira, mas surgiu uma nova síndrome, a Síndrome do Serial Killer. Os mesmos alunos, que tinham coragem de abrir uma porta no meio de uma aula, olhar o que tem dentro e ir embora, agora ficavam com vergonha de parar por míseros cinco segundos na janela para ver qual era o professor ou se reconhecia algum colega dentre a classe. A cena que agora surgia era de alunos andando pelo corredor, fingindo que seguiam o caminho deles, mas em passos lentíssimos, com o pescoço virado para a janela da porta e rosto rente ao vidro encarando quem estivesse lá dentro. Eles passavam uma, duas, três, até dez vezes, todas bem devagar até conseguir identificar algo. Jamais paravam, era sempre em movimento. Pareciam de fato psicopatas cercando a vítima e mostrando para ela: “Estou aqui fora! Estou à sua espera!”. Por conta dessa síndrome, era bastante comum ver alunos dentro de sala olhando para a tal janela da porta. Afinal, como sabemos, eles têm naturalmente a concentração de uma criança hiperativa após duas colheres de açúcar puro. Isto nunca me incomodou, aliás, achava divertido. Contudo, naquele dia, as atenções para a janela estavam especialmente frequentes. Lembro que em certo momento brinquei com eles: “Senhores, não acredito que lá fora tenha algo que consiga ser mais interessante do eu.”. Mesmo com um sinal gritante desse tipo, não me toquei no fato de que o bloco estava deserto e ainda assim tinha alguém lá fora constantemente na janela.
Terminada a aula, é comum que fiquem alguns alunos em sala. Sempre são dois para tirar uma dúvida ou comentar algo sobre o conteúdo, um ou outro para falar de eventos profanos tribais que acontecerão no final de semana, fora os que ficam para falar besteira mesmo. Por ser uma sexta-feira de noite, saíram todos em manada. Não ficou um aluno sequer para que me mandasse à merda pelo menos. Assim que saíram os últimos, entrou um homem aparentando ter mais de quarenta anos. Logo que bati os olhos nele, já sabia quem era. A presença dele ali não me surpreendeu. Ele já tinha meu nome completo, endereço, telefone e mais outras informações provavelmente. Achar onde dava aula era absolutamente fácil. Apenas com meu nome, ele conseguiria achar meu site em que mantenho relação acadêmica com os alunos, lá constam todas as instituições, disciplinas, dias, horários e salas de aula. Eu estava acabando de arrumar meu material quando ele entrou. Ficamos de frente um para o outro a uma distância de menos de um metro. Sequer tivemos dois segundos de silêncio, pois assim que parou, ele me perguntou:
- Você é o professor de lógica?
- Não, é a gordinha de blusa listrada que acabou de sair.
Mal tive tempo de armar o sorriso de deboche, ele me deu um soco no rosto. Tecnicamente não foi um bom soco. Pegou na bochecha, quase na costeleta. Ele conseguiu errar o meu enorme e erótico nariz. Ainda assim foi um soco forte o suficiente para que me virasse e caísse sobre a mesa. Papéis, canetas e apagador caíram no chão. O computador ficou preso sob meu peito. Poderia me levantar já partindo para cima dele. Ou poderia ao menos me levantar para me proteger de possíveis novos golpes. Não fiz um, nem outro. Permaneci parado na mesma posição que caí sobre a mesa. Fiquei esperando qual seria o próximo movimento dele. Ele disse:
- Venha! Levante-se!
Levantei-me devagar com uma das mãos sobre o rosto que latejava com a pancada. Sem pressa, disse para que ele fizesse logo o que pretendia, pois não iria revidar. Assumi que errei ao provocá-lo quando achava que as ameaças não eram comigo, mas afirmei que não iria me desculpar pelo resto. Não tinha culpa daquilo. Sequer sabia que ela era casada.
- Você deve se desculpar, sim – disse ele enfaticamente com o dedo em riste. – Você comeu minha esposa!
- Cara, se for por isso, eu precisarei pedir desculpas várias vezes para você.
Era fato que ele não sabia bater muito bem, entretanto preciso admitir que o desgraçado era bem rápido. Mal terminei a frase e ele me acertou um chute que pegou no joelho esquerdo. Caí nas carteiras e fui parar no chão sobre os papéis que ali já estavam. Acredito que por conta do barulho de carteiras sendo reviradas com a minha queda, dois alunos apareceram na porta da sala. Não eram da minha turma, deveriam estar perdidos por lá, ou simplesmente estavam aproveitando o bloco deserto para fazer uma tradicional saliência nas salas escuras. Ao se depararem com a cena daquele homem de pé e eu no chão, eles perguntaram se estava tudo bem.
- Não, relaxem – eu disse ainda caído no chão e gesticulando com as mãos tentando passar um ar de controle total da situação. – É apenas um aluno pedindo revisão de prova final que não concorda com a nota que dei.
Não tenho certeza se eles entenderam o meu sarcasmo, mas o fato é que eles foram embora e voltei a ficar a sós com o homem que queria me matar. Levantei-me, pela segunda vez, calmamente e me prostrei à sua frente com uma postura de quem diz que nada vai fazer.
- VAMOS! – Ele gritou. – FAÇA ALGO! CADÊ SUA VALENTIA?
- Eu nunca disse que sou valente.
- E suas respostas espertinhas para mim são o quê?
- Isso é uma deficiência que tenho. Minha boca não costuma obedecer muito ao meu cérebro. Ela faz o que quer.
- MENTIRA! Isso é você querendo esfregar na minha cara que não tem medo de mim!
- Eu? – Apontei para o meu próprio peito, parecendo ser um pouco mais dramático do que a situação pedia. – Claro que tenho!
- MENTIRA!
- Como mentira? Você descobriu tudo sobre a minha pessoa. Achou meu endereço. Deixou bilhete na minha moto. Aliás, podia ter sabotado meu freio. Você a qualquer momento poderia me surpreender e me matar. Sequer sabia como era a sua cara, logo nem teria como prever. Como não ter medo disso?
- E ainda assim não se preocupou. Não foi cauteloso. Ficou dando bobeira por aí. Não, você não pode ser tão burro assim.
- Não, não sou burro mesmo.
- Então por que insistia em provocar?
- Acredito que seja algo relacionado à demência, ser inconsequente ou instinto auto-destrutivo.
Terminada a minha frase, franzi o rosto esperando mais alguma porrada. Ele nem se mexeu. Foram breves segundos de silêncio até que resolvi pedir desculpas novamente. Falei que não era pessoal, que foi uma coisa sobre a qual não tinha controle e sequer sabia dos detalhes conjugais. Comentei ainda que se ele quisesse uma chance de salvar o casamento dele, não era ali o local dele, era ao lado da esposa que estava provavelmente procurando comigo algo que não tinha com ele. Mas se ele estivesse ali apenas para tentar curar o ego ferido, me matar talvez resolveria momentaneamente o problema, só que com o tempo, ele olharia para ela e continuaria a me ver. Aliás, a traição só passou a ter um rosto porque ele procurou e correu atrás de mim, disse também. Voltamos ao silêncio. Fiquei esperando uma resposta dele, mas não tive. Ele ficou calado olhando para o chão. Sua expressão era péssima. Provocava em mim uma sensação de pena misturada com constrangimento. Era necessária coragem demais para chegar até aquele ponto que ele estava e não encontrar o que procurava. Tenho quase certeza que tudo que ele queria era que eu revidasse. Ele iria brigar como se estivesse defendendo a própria vida e, independentemente de sair vitorioso, ao final teria a sensação de purgar aquilo que tanto doía por dentro.
- Pois bem – quebrei novamente o silêncio colocando meus pertences na mochila. – Caso não tenha mais o que falar ou fazer, eu preciso ir. Uma gatinha espera por mim em um bar aqui perto.
- Espere – ele disse enquanto passava ao seu lado a caminho da porta. – Ela está na casa da mãe.
- Eu sei. Em Miguel Pereira.
- Vocês se falaram?
- Sim, ela me ligou para pedir desculpas.
- Vai encontrar com ela novamente?
- Você pretende salvar seu casamento?
- Sim, gostaria muito.
- Então não – respondi e caminhei até a porta quando parei e perguntei. – Você trouxe uma arma?
- Não – ele respondeu ensaiando um riso. – Seria uma cena patética te matar. Logo após eu desmaiaria já que não posso ver sangue.
- Deveria vencer esse medo. Passe a fazer sexo com ela menstruada. Pessoas com nojo disso era algo que ela reclamava bastante.
- Isso foi cruel. Não precisava comentar.
- Desculpe, não foi intencional. Foi com boas intenções.
- É – ele falou apontando para mim. – Você é bastante inconsequente mesmo, devia se tratar.
Não respondi. Fui embora em seguida e não sei o que ele fez em seguida. Alguns meses depois Fátima entrou em contato agradecendo por não ter piorado a situação quando ele foi ao meu encontro. Falei que não foi pensado, apenas fui covarde mesmo.
- Não – ela retrucou. – Você foi sensato!
- Baby, eu nunca sou sensato.
Ela riu e fez um silêncio para ouvir a voz masculina ao fundo que falava com ela. Em seguida, disse que o marido pedia para avisar que ainda tinha o meu endereço e que iria me fazer uma visita. Respondi que dissesse a ele que seria tão bem-vindo, que iria servir de almoço uma picanha bem sangrenta. Em seguida desliguei e mudei na minha agenda o nome Fátima para Risco de Morte.


Outro conto da coleção? Leia Mariana

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Pedaços de uma vida encenada

Traições e mortes
[Cena interna no único cenário: um quarto] Um casal nu deitado na cama. O homem [Samuel] fuma um baseado e a mulher [Carla], deitada no ombro dele, faz carícias na barriga de Samuel.
[Samuel] É engraçado.
[Carla] O que é engraçado?
[Samuel] Aqui não tem porta-retratos. Toda casa é cheia de porta-retratos, menos esta.
[Carla] E o que você queria, Samuel? Fotos minhas com meu marido por todos os lados?
[Samuel] Sei lá! É apenas curioso. Faz falta.
[Carla] Ah Samuel, ainda bem que não tem, né? Você sequer consegue transar comigo com as cortinas abertas, pois fica incomodado com a possibilidade de algum vizinho nos ver. Imagine se tivesse fotos do meu marido te encarando. Já pensou? Ia ser uma trabalheira daquelas ter de deitar todos os porta-retratos sempre que você chegasse por aqui.
[Samuel] Não é para tanto também.
[Carla] Não? Então vamos abrir as cortinas, as janelas e ligar a luz. Que tal?
[Samuel] Para! Sabe que gosto de ser discreto.
[Carla] Então não reclama.
[Samuel] Não estou reclamando. Apenas acho estranho estar tanto tempo com você e nada sei da sua vida. Não sei como é o rosto do seu marido...
[Carla] Samuel... Samuel... por qual motivo quer saber como é o rosto do meu marido?
[Samuel] Sei lá. Caso passasse por ele na rua, saberia quem é.
[Carla] Ah tá! Daí pararia para falar com ele, se apresentaria, sentariam para beber um chope e sabe mais o que, né? Me dá esse baseado que você já está ficando doido demais.
[Samuel] Não é isso também. Não precisa exagerar. Apenas nada sei sobre sua vida. Sequer sei o nome dele, por exemplo.
[Carla] Você está muito obcecado por ele, Samuel. O que está acontecendo?
[Samuel] Não, nem estou obcecado por ele. É por você mesmo. Estamos juntos há tanto tempo e nada sei sobre você.
[Carla] Samuel, nós somos amantes. Você não tem de saber muita coisa sobre mim, assim como nada sei sobre você.
[Samuel] Não precisa dizer que somos amantes, Carla. Estou dizendo apenas que são três anos nessa brincadeira e quase não falamos sobre...
[Carla] Samuel, por favor, pare! Somos amantes. Não conversamos. Apenas transamos. Ponto! A única conversa mais longa que tivemos foi quando nos conhecemos e só. Para conversar, tenho meu marido, minha irmã, meu terapeuta e meus dois gatos.
[Samuel] Dois gatos? Aí oh! Sequer sabia que tinha gatos. Três anos com você e nem sabia que tinha gatos. Achava que era uma pessoa que curtia cães assim como eu. Eu tenho dois cães.
[Carla] Dois cães?
[Samuel] Sim, o mais velho se chama...
[Carla] EU NÃO ME IMPORTO! Samuel, pouco me interessa se você tem gatos, cachorros, lambaris ou alienígenas na sua casa. Tudo que quero é que me coma e me faça gozar como um beija-flor. Apenas isso.
[Samuel] Nossa... falando assim, eu me sinto como um objeto.
[Carla] Ok! Está bem! Desculpa. Objeto pode soar muito pejorativo. Vamos colocar desta forma, somos amantes e não temos sentimentos um pelo outro. É apenas sexo. Por qual motivo acha que me envolveria com uma pessoa bem mais nova? É sexo e pronto. Por mais íntimo que seja você enfiar o pau em mim, esse é o máximo de intimidade que quero com você. Não quero saber da sua vida, nem contar da minha para você. Estamos combinados? Consegue manter assim?
[Samuel] Sim, mas é estranho. Eu acho...
[Carla] Samuel, cala a boca e me come novamente, por favor.
Os dois voltam a transar. Algum tempo depois, porta do quarto se abre, entra um homem [Augusto] que acende a luz. Os dois se assustam e param de transar.
[Augusto] QUE PORRA É ESSA?
[Samuel] Ai caceta!
[Carla] Oh meu Deus!
[Augusto] Anda! Que porra é essa, Carla?
[Carla] Calma! Não é nada do que está pensando.
[Augusto] Como não? Vocês estão nus. Você estava montada nele.
[Carla] Eu sei. Eu sei. Calma! Vamos conversar com calma, Augusto.
[Samuel] Augusto? Ah! Olá! Eu sou o Samuel. Estávamos falando sobre você agora mesmo.
[Carla] Samuel, não!
[Augusto] CALA A BOCA E SAI DE PERTO DE MIM.
[Samuel] Ei! Não precisa se exaltar.
[Augusto] Eu não quero papo com você. Fica na tua.
[Carla] Samuel, não piore as coisas.
[Samuel] Piorar? Ele que está exaltado.
[Augusto] Isso é problema meu! Não se meta. Fique no seu canto.
[Samuel] Então não aponte o dedo para mim.
[Augusto] E você não aponte esse pau duro para mim.
[Samuel] Ah, me desculpe. Ele demora um pouco para...
[Carla] Ah Samuel...
[Augusto] Por que você não cala a boca e não sai daqui, seu gigolozinho?
[Samuel] Peraí! Gigolozinho, não!
[Carla] Augusto, talvez não seja um bom momento para chamar ele disso. Ele está um pouco sensível quanto ao papel dele na...
[Augusto] Carla, você ainda vai defender esse gigolozinho?
[Samuel] Gigolozinho, não!
[Augusto] Gigolozinho, sim! Gigolozinho mequetrefe!
[Carla] Augusto, calma. Peraí. Ele não tem culpa.
[Samuel] Segura a onda aí, Augusto.
[Augusto] Não ouse me chamar pelo nome, gigolozinho mequetrefe. Seu... seu gigolozinho mequetrefe de pau pequeno.
[Samuel] Pior você que é corno.
Augusto parte para cima de Samuel. Eles começam a brigar e rolar pelo chão. Carla, de pé sobre a cama, fica gritando para que eles parem. Samuel pega o radio-relógio sobre a mesa de cabeceira e acerta a cabeça de Augusto que fica estatelado no chão.
[Carla] Samuel, meu Deus. O que você fez?
[Samuel] Eu estava me defendendo. Será que ele morreu?
[Carla] Meu Deus! Meu Deus, Samuel! Ele não está respirando! Você o matou!
[Samuel] Ele partiu para cima de mim.
[Carla] Porque você chamou ele de corno.
[Samuel] Ele me chamou de gigolozinho mequetrefe de pau pequeno primeiro.
[Carla] E isso é motivo para matar alguém, Samuel?
[Samuel] Eu não matei por isso.
[Carla] Ainda bem, né? Porque você tem o pau pequeno.
[Samuel] As coisas saíram do controle e... peraí! Você acha meu pau pequeno?
[Carla] Você promete não me matar se disser que sim?
[Samuel] Carla, não é a hora para deboches. Você tem noção que estou com um homem morto no seu apartamento?
[Carla] Este não é meu apartamento, Samuel.
[Samuel] Não, não é? Não é seu apartamento, Carla? Como assim? Estamos por anos vindo para cá.
[Carla] Exatamente, Samuel. Acha mesmo que ficaria tanto tempo te trazendo para o meu apartamento correndo riscos? Este é um apartamento que alugo exatamente para evitar riscos.
[Samuel] AHN! Então está explicada a falta de porta-retratos.
[Carla] Sério, Samuel? Vai voltar ao papo dos porta-retratos?
[Samuel] É que tudo ficou claro agora.
[Carla] Será que pode se levantar então e se vestir? Temos um presunto aqui e precisamos fazer algo.
[Samuel] Não fale assim do... peraí! Se este não é seu apartamento, como seu marido nos descobriu e conseguiu a chave para entrar sorrateiramente?
[Carla] Ele não é o meu marido, Samuel.
[Samuel] Como assim ele não é seu marido, Carla? CARLA! ELE NÃO É O SEU MARIDO? Meu Deus! Pobre Augusto. Eu o chamei de corno. Eu matei um homem inocente. Viu? VIU? É POR ISSO QUE MESMO AMANTES DEVEM CONVERSAR ENTRE SI. Se eu soubesse como era seu marido nada disso teria acontecido. Este homem teria entrado aqui, saberia que não era o seu marido e daí... peraí! Se ele não era seu marido, como tinha a chave daqui? Por que ele ficou tão enciumado com o que viu?
[Carla] Ah Samuel, larga de ser complicado. O Augusto é meu namorado tem tempo. Quero dizer, ERA meu namorado, né?
[Samuel] Namorado? Peraí! Você tinha outro? Você estava saindo com outro além de mim?
[Carla] Sim, Samuel. Qual o problema? Ele namorava comigo há mais de sete anos. As coisas foram ficando meio mornas com o tempo, daí recorri a você.
[Samuel] Nesse caso, chamar de corno foi merecido.
[Carla] Sim, foi. Por isso que ele ficou irritado. Mesmo sendo verdade, ninguém gosta de ser chamado de corno.
[Samuel] ELE ME CHAMOU DE GIGOLOZINHO MEQUETREFE DE PAU PEQUENO PRIMEIRO.
[Carla] O que não deixa de ser verdade.
[Samuel] Assim como ele ser corno.
[Carla] Mas nem por isso é motivo para se matar alguém.
[Samuel] Eu não o matei por isso. Enfim, eu era o amante do amante e...
[Carla] Ah que seja. Temos um cadáver aqui e precisamos fazer algo.
[Samuel] Precisamos? Você me envolve nesse triângulo... peraí! Triângulo, não! Somos quatro. Eu, você, o Augusto e seu marido. Qual o nome dele mesmo?
[Carla] ESQUECE O MEU MARIDO! EU NÃO VOU FALAR O NOME DELE!
[Samuel] Enfim, você me enfiar nesse quadrado, retângulo, sei lá o que amoroso e eu tenho de dar conta do cadáver.
[Carla] Ah, o cara que queria parceria, comprometimento e cumplicidade agora quer fugir da raia e me largar com o pepino na mão. Pois saiba que é um cadáver cheio de impressões digitais suas no pescoço, na mesinha, no rádio-relógio. E, para piorar, cheio de esperma seu no lençol.
[Samuel] Só que o apartamento está no seu nome, logo você é suspeita também.
[Carla] Você acha mesmo que sou burra de alugar um apartamento no meu nome? Meu marido descobriria rapidinho. O aluguel está no nome do Augusto. Alugamos juntos assim que nos conhecemos para ter o nosso canto.
[Samuel] Assim que se conheceram? E nós estamos três anos juntos sem um canto próprio? Sem uma música nossa? Sem...
[Carla] PORRA, SAMUEL! QUE MERDA DE BAD TRIP É ESSA QUE A MACONHA TE DEU?
[Samuel] Eu não sei. Estou tendo uma crise de pânico. Estou me sentindo como um pequeno apêndice nessa complexa relação. Estou me sentindo um lixo.
[Carla] Samuel, meu querido...
[Samuel] NÃO ME CHAME DE QUERIDO!
[Carla] Está bem! Está bem! Samuel, preste atenção, pois só vou falar uma vez. Nós temos um cadáver para dar cabo. Todos os indícios apontam apenas para você. Já imaginou nos jornais? “Homem reclama que o pau pequeno de seu cônjuge não o satisfazia e acaba morto por ele.” Vai vender como água. Eu poderia facilmente pular fora e deixar essa banana na sua mão. Só que não irei. Então vamos pensar juntos?
[Samuel] Dá para falar do meu pau então?
[Carla] Ok, me desculpe.
[Samuel] E pare de usar pepino ou banana como metáforas de referências fálicas.
[Carla] Justo.
[Samuel] Obrigado. Bem, acho que sei quem pode nos ajudar. Conheço uma pessoa que trabalha na polícia e é corrupta. Ela deve ter as artimanhas para situações como esta.
[Carla] Se ela for policial corrupta como diz, resolver isso vai ser pinto.
[Samuel] CARLA! METÁFORAS FÁLICAS!
[Carla] Porra, Samuel! Se veste então que facilita a minha vida.
[Samuel] Vou ligar para ela.
Samuel pega o celular em suas calças que estão no chão. Corte de cena para indicar passagem de tempo. Os dois ainda estão no quarto com o corpo de Augusto no chão quando toca a campainha. Carla sai para atender. Carla volta na companhia de outra mulher [Tânia] que se assusta com a cena.
[Tânia] O QUE É ISSO, SAMUEL? ESTE HOMEM ESTÁ MORTO?
[Samuel] Calma, meu amor.
[Carla] Meu amor?
[Tânia] Quem é essa mulher, Samuel?
[Carla] Ela te chamou de meu amor, Samuel?
[Tânia] Por que você está pelado, Samuel?
[Carla] Ah essa é uma boa pergunta. Também gostaria de saber por que ele ainda está pelado.
[Tânia] Samuel, por que você está pelado em um quarto com um homem morto?
[Carla] Pode parecer estranho, mas existe uma relação aqui. Ele estava pelado, o homem viu o piruzinho do Samuel, chamou ele de pau pequeno e... bem... o resto você já sabe.
[Tânia] Você matou o homem porque ele te chamou de pau pequeno, Samuel?
[Samuel] Não, foi por isso, meu amor.
[Carla] Meu amor?
[Tânia] Por que você tirou a roupa para ele, Samuel?
[Carla] Ele não tirou a roupa para o homem. Ele tirou para mim. Por que vocês estão se chamando de meu amor?
[Tânia] Samuel, quem é essa mulher?
[Carla] Samuel, que tal se vestir primeiro, meu amor?
[Samuel] Não ouse me chamar de meu amor.
[Tânia] Não chame o meu amor de meu amor.
[Carla] Ih, está bem. Não está mais aqui quem falou.
[Tânia] O que está acontecendo, Samuel?
[Samuel] Então... vou explicar. O Augusto entrou e pensei que fosse o marido da Carla porque ela insiste em não me mostrar fotos dele.
[Carla] E nem vou mostrar. Ah, eu sou a Carla.
[Samuel] Daí ele partiu para cima de mim.
[Carla] Porque você chamou ele de corno.
[Samuel] Ele me chamou de gigolozinho mequetrefe de pau pequeno antes.
[Carla] Fato que ele tinha razão. Você tem pau pequeno.
[Tânia] É verdade, meu amor.
[Carla] Viu?
[Samuel] Que seja. Ele também era corno.
[Tânia] É verdade. Seu marido é corno.
[Carla] Ele não é meu marido.
[Tânia] Ele não é seu marido?
[Samuel] Não, ele é o Augusto, o outro.
[Tânia] E quem é seu marido?
[Samuel] Eu não conheço o marido dela.
[Carla] Ninguém conhece o meu marido. Nem você, nem o Augusto.
[Tânia] Peraí! Vamos ver se eu entendi. Você é casada com um homem que não é este caído no chão?
[Carla] Exato!
[Tânia] E o nome dele é?
[Carla] Não importa.
[Samuel] Boa tentativa, meu amor.
[Carla e Tânia juntas] CALA A BOA E VAI SE VESTIR.
[Tânia] Tá, você é casada com um homem aí misterioso e aquele ali...
[Carla] O Augusto.
[Tânia] Isso! O Augusto é seu amante?
[Carla] Namorado.
[Tânia] Tá, namorado. E onde entra o Samuel nesta história?
[Carla] Ele é o meu amante.
[Tânia] VOCÊ É O... VOCÊ ESTAVA ME TRAINDO?
[Samuel] Calma, meu amor. Não é nada do que está pensando. Era apenas uma aventura. Perceba toda a hierarquia. Tinha marido. Tinha namorado. Eu sou apenas um estagiário. Coisa insignificante. Ela até alugava apartamento para se encontrar com o Augusto. Comigo nada disso acontecia. Não tínhamos um apartamento exclusivo. Um apelido carinhoso. Nem cópia de chaves.
[Tânia] Pouco me importa. Você acha que vou me importar com sua posição na escala de perversão dessa mulher? O que interessa é que você andou me traindo enfiando esse pau pequeno por aí.
[Carla] Ih, eu não falaria isso. Da última vez...
[Samuel] Meu amor, por favor, eu te peço...
[Tânia] Não me peça coisa alguma. Como tem coragem de me chamar na casa da sua amante para ajudar a desaparecer com o corpo do homem que você matou porque ele disse que você tinha pau pequeno.
[Samuel] Eu não matei por isso. Ele partiu para cima de mim.
[Tânia] Porque você o chamou de corno.
[Carla] É verdade! Chamou mesmo. Ninguém gosta de ser chamado de corno. Ainda mais pelo cara que lhe coloca o chifre.
[Samuel] Por favor. Eu... eu... eu não tenho culpa disto. Digo, sim, cometi uma traição, mas foi uma traiçãozinha.
[Carla] Por três anos.
[Tânia] TRÊS ANOS?
[Samuel] Porra, Carla, me ajuda.
[Carla] Te ajudar? Você mata meu namorado, chamada a sua namorada para ajudar, ela fica fazendo barraco aqui e eu tenho que ajudar?
[Tânia] Barraco com motivo.
[Carla] É verdade. Eu ficaria indignada se descobrisse que estava sendo traída.
[Tânia] Pelo seu marido ou pelo Augusto?
[Carla] Qualquer um dos dois. Estou puta só de saber que o Samuel tem namorada.
[Tânia] É revoltante, né?
[Carla] Eu o teria matado se soubesse. Como minha posição na hierarquia é menor que a sua, prefiro aguardar o que vai fazer.
[Samuel] Tânia, meu amor, não dê ouvidos a essa doida. Ela tem amantes. Mais de um. Ela tem um namorado e um amante. Todos secretos. Até o marido dela é secreto. Sequer podemos ter certeza que o nome dela é Carla.
[Carla] Meu nome é Carla, sim. E, mesmo tendo vários amantes, sou melhor pessoa que um assassino.
[Samuel] EU ESTAVA ME DEFENDENDO PORQUE ELE PARTIU PARA CIMA DE MIM.
[Carla] Porque você o chamou de corno.
[Samuel] Ele me chamou primeiro de gigolozinho de pau pequeno.
[Carla] Viu? Assassino complexado!
[Tânia] Você matou mesmo esse homem porque ele disse que você tinha pau pequeno, Samuel?
[Samuel] NÃO! Escute-me, meu amor. Essa mulher é louca e acabou me envolvendo nesse jogo psicótico dela de amantes e drogas.
[Tânia] Drogas? Que drogas? Você estava fumando maconha?
[Samuel] Bem...
[Tânia] Você sabe que sou contra drogas. Sou uma policial e tudo que combato é o mundo das drogas.
[Carla] Ah então é por isso que ele te traía. Agora entendi tudo. Ele não podia fumar um baseado com você e começou a sair comigo porque fumo também. Está tudo explicado agora.
[Samuel] Tânia, meu amor, me escute, por favor.
[Tânia] NÃO ME VENHA COM MEU AMOR, SEU MACONHEIRO DE PAU PEQUENO.
[Carla] Ih, nem quero ver.
Tânia parte para cima de Samuel e, com o mesmo rádio-relógio em mãos, o acerta várias vezes na cabeça.
[Carla] É, parece que você o matou.
[Tânia] Eu me descontrolei.
[Carla] Vocês formam um casal estranho mesmo. A mulher mata o homem porque descobre que ele fuma maconha escondido. Já o homem mata por um motivo mais banal ainda.
[Tânia] Banal nada. Ele estava se defendendo de um ataque.
[Carla] Ele foi atacado porque chamou a outra pessoa de corno.
[Tânia] O outro disse primeiro que o Samuel tem pau pequeno.
[Carla] Mas é verdade!
[Tânia] Assim como o outro ser corno.
[Carla] Não o chame de outro. Ele tem nome. É Augusto.
[Tânia] Que seja. Agora são dois cadáveres aqui.
[Carla] Olha, vou ser bem sincera. O Augusto está cheio de marcas do Samuel. Já o Samuel está cheio de marcas suas. Fica fácil eu sair ilesa dessa história. Como tenho certa compaixão pela sua situação de traída, vou ficar um pouco até conseguir resolver isso. Porém, você precisa ser rápida, pois meu marido vai estranhar em breve eu estar tanto tempo na rua.
[Tânia] E como acha que vou resolver isso?
[Carla] E eu lá sei. O Samuel que me disse que iria ligar para uma pessoa da polícia que conhecia que era corrupta e saberia lidar com isso.
[Tânia] CORRUPTA? Que desgraçado! Onde sou corrupta? De onde ele tirou isso? Maconheiro de pau pequeno.
[Carla] Não diga isso. Tenha respeito pelos mortos.
[Tânia] Impossível não falar isso. Ainda mais com ele pelado na minha frente.
[Carla] Até agora não entendi por que ele não se vestiu esse tempo todo.
[Tânia] Vou ligar para um legista que conheço. Ele sabe bem como alterar a cena do crime. Talvez possa nos ajudar.
[Carla] Ele é bonitão?
[Tânia] Sério? Você não tem vergonha na cara?
[Carla] Por que teria? Acabei de perder meu namorado e meu amante. Preciso iniciar a reposição.
[Tânia] Você é uma descarada mesmo.
[Carla] Ele é teu amante, né?
[Tânia] É, mas fica quieta por respeito ao Samuel.