segunda-feira, 26 de maio de 2014

Ressaca e Sermão - Parte I


 - Precisa ser tanto?
Não sei se foi exatamente isso que Tatiana disse. A ressaca estava violenta e ela tinha acabado de me acordar. É bem possível que tenha sido algo desse tipo mesmo, mas em um tom suave. A cada dia que passava nossa relação era mais próxima no sentido de companheirismo. Era o dia todo dando patada um no outro como forma de carinho, mas nos momentos de falar sério, a mão dela ficava exageradamente leve, o que tirava totalmente o efeito do esporro.
Sim, acredito que foi isso que ela falou, com o porém de terminar a frase usando meu short name como vocativo. Short name é quando reduzimos o nome da pessoa. Eduardo vira Edu, Mariana vira Mari, Priscila vira Pris, Carlos Eduardo vira Cadu e estranhamente Raquel vira Quequel aumentando o nome. Eu odiava ser chamado pelo short name, mesmo sabendo que minha mãe escolheu esse nome propositalmente para ser chamado assim. Tatiana sabia disso, aliás, muitas pessoas sabem disso. Algumas o fazem para me irritar, Tatiana não. Ela usa inconscientemente, acha que dá um tom de carinho nas frases. Sim, de fato dá, mas me irrita! Ainda assim prefiro quando ela me chama de idiota.
Voltando à situação, lá estava Tatiana falando comigo. Devia ser por volta das quatro da tarde, eu estava apagado no sofá, o cheiro de bebida ainda era muito forte, meus olhos estavam vermelhos e meus movimentos lentos.
- Precisa beber tanto? Sexta já foi foda – tínhamos saído na sexta e ficamos muito mal. – Ontem três da tarde você me ligou dizendo que estava na rua e seu porteiro disse que quando chegou para trabalhar às oito da manhã precisou te ajudar a subir para casa, pois estava jogado no canto da portaria.
Provavelmente era verdade, meus porteiros eram fofoqueiros, mas não eram mentirosos. Não me lembrava disso. Recordo de ter ido à Feira do Lavradio, de lá fui para a Pedra do Sal e fiquei até por volta de uma da manhã. Tive um ligeiro flash na cabeça sobre algum lugar fechado, mas não conseguia identificar ao certo onde.
- Minha moto – balbuciei para ela perguntando sobre.
- Está parada aqui embaixo – ela se interrompeu por um segundo para num tom mais suave possível prosseguir. – Você ainda estava de moto? Qual o seu problema?
Responder imbecilidade ou irresponsabilidade seria uma opção, mas ela iria falar sobre, dar sermão e não queria isso. Não que não estivesse certa em fazer isso. Apenas não queria ouvir qualquer coisa. Precisava dormir mais um pouco. Então me calei e ela fez o que mais me irrita, repetiu a pergunta várias vezes na esperança que respondesse.
- Ei, onde você vai? – Ela mudou ao pergunta assim que me levantei empurrando a cabeça dela para que saísse da minha frente.
- Vou vomitar – respondi. – Você e sua chatice me dão vontade de vomitar.
- Quer ajuda?
- Sim, continue falando! Assim vomito mais e curo a ressaca mais rápido.
O silêncio se fez e logo depois foi quebrado pela sinfonia que regia na tentativa de eliminar todo aquele álcool de maneira controladamente direcionada. Eu odeio vomitar! Tenho pavor, fico sem ar, acho que vou morrer e acabo fazendo uma revisão da minha vida na cabeça. Daí é sempre a mesma coisa, arrependimento pelas ações de costume: misturar bebida, comer porcaria com bebida, não ter ido falar com a menina que tanto achei bonita, futucar a problemática unha encravada do pé esquerdo. Por sorte, como tenho refluxo, coloco tudo para fora mais rápido e a crise passa rápido.
Sim, tenho refluxo e bebo, mais estúpido impossível. Foi até curioso o dia que descobri a causa. A médica (lembro que era mulher, mas não recordo o nome) deu a notícia:
- Bem, a endoscopia confirmou o que tinha dito antes. O motivo de tantas crises de refluxo é que você tem hérnia de hiato.
- Hérnia de hiato? Mal sei o que é ditongo, imagine isso – aparentemente ela não acompanhou meu raciocínio, ficou séria e, sem graça, piorei com outra cretinice. – Tem certeza que fez medicina, não foi letras?
Ela não deve ter gostado muito, pois optou por não me operar, me deixar dependente de Motilium e ainda prescreveu uma dieta que me faria ficar de mal humor pelo resto da vida. Por teimosia, não a obedeci e hoje sofro todas as noites sorrindo.
Voltando à cena do banheiro, lá estava eu agachado de frente para a privada. Sim, agachado, me recuso a ficar ajoelhado. Não, não tem uma explicação lógica para isso, é apenas estupidez repetida mesmo. Todas as vezes, por mais rápido que seja, fico com câimbras e o sofrimento fica maior ainda. Cria-se uma cena dantesca de dar inveja à Linda Blair, com gritos de dor e um irrigador de jardim gástrico ao mesmo tempo. Eu sei, não precisam imaginar.
- Isso! Sofre mesmo, idiota – ela estava quietinha o tempo todo atrás de mim na porta do banheiro. – Ali, vinte Reais em Stella acabaram de sair. Ih, mais trinta! Mais dez! Uma empadinha! Um pentelho!
- Cala a boca, Galvão! Vai ficar narrando meu vômito?
- Se fode aí!
Como se tivesse outra opção. Não bastava toda aquela cena, ainda tinha uma motivadora reversa ao fundo para piorar. Nem preciso dizer que ali o maior arrependimento era manter a amizade com ela. Não importa o quanto a pessoa está certa, aproveitar o meu momento de fraqueza para sapatear na minha cara e esfregar seus argumentos é muita ruindade. Exceto quando eu estou na posição de sapatear, aí pode!
Terminado aquilo tudo, voltei para a sala. Ainda vestido com as roupas da noite anterior, Tatiana sugeriu que as tirasse para colocar para lavar. Aos poucos e com a ajuda dela tirei bota, meia, camisa, calça. Antes de colocar no cesto de roupas sujas, ela conferiu se tinha algo nos bolsos:
- Oba – ela gritou da cozinha. – Achei dez Reais!
- Ótimo! Pague seu táxi e vá embora.
- Não – ela respondeu e se calou para logo depois continuar. – Achei um comprovante de cartão de crédito. Não! Dois!
- Dois? De que são?
- São do mesmo valor, sessenta e oito Reais. E são do mesmo lugar também!
- Será que passei duas vezes ou me roubaram?
- Bem-feito, para deixar de ser mané – ela falou com certo ar de ódio. - Não! Um é crédito do Diners, o outro é débito do Itaú.
- Eu não tenho conta no Itaú!
- Não? Que estranho – ela fez novo silêncio para ler os comprovantes. – Está escrito vê ponto erre gê service. Tem outras coisas escritas também.
Não tinha a menor ideia do que podia ser “V.RG Service”, até mesmo porque sequer lembrava de como saí da Pedra do Sal. Tatiana ficou intrigada, largou a minha calça sobre a máquina e pegou o celular para tentar descobrir o que era. Enquanto isso, eu só de cuecas sofria um pouco mais da ressaca largado no sofá.
- Se incomoda de pegar um pouco de água para mim?
- Levanta o rabo e vem pegar!
- Estou sofrendo!
- Se fode aí!
Confesso que adoro muito mais esses nossos diálogos do que quando ela vem com cautela para conversar seriamente comigo. Mas nada custava ela pegar água para mim. Permaneci deitado com aquela péssima sensação de vazio, que parece que arrancaram todos os seus órgãos e os substituíram por bolinhas pequenas de isopor. Ou resumindo, te transformaram em uma almofada infantil da década de oitenta.
- Pelo que vi aqui na internet, é algo de Vila Regia hotel. Isso não é um motel ali perto da Pedra do Sal?
- Motel? Eu fui em um motel?
- E aparentemente dividiram a conta com você. Não lembra?
- Claro que não!
- Levanta as pernas aí para que possa conferir as suas pregas.
Os dois riram por algum tempo, daí eu parei primeiro. Ela perguntou se estava contraindo a bunda para conferir e voltamos a rir. Deu ânsia novamente, levantei-me e fui para o banheiro xingando Tatiana de idiota. Ela riu mais um pouco e voltou a conferir os bolsos enquanto no banheiro eu esperava que algo mais fosse sair.
- Tem um comprimido no bolso – ela disse para depois repetir, pois nada falei. – Tem um comprimido fora da cartela no bolso.
Saí do banheiro e ela me esperava no meio do quarto com o comprimido na mão. Fiz cara de paisagem como se a resposta viesse sozinha, mas ela insistiu em perguntar mais uma vez.
- Qual o problema? É a porra de um remédio para dor de cabeça!
- Colorido – ela falou quase enfiando na minha cara. – Remédio para dor de cabeça colorido?
- É um remédio para dor de cabeça divertido.
O silêncio se fez e, como de hábito, ela não se conteve e riu. Obviamente me chamou de idiota logo depois. Em seguida me deu o comprimido dizendo que deveria tomar, pois se estava de ressaca, estava com dor de cabeça. Falei que não precisava, pois só queria ficar quietinho e voltar a dormir.
- Que lindo! Tão responsável – ela sempre foi muito ruim com sarcasmo. – Podia ser assim na noite.
- Pois é, mas minha noite é agora – disse enquanto começava a me ajeitar na cama. – Mas me diga, o que, raios, veio fazer aqui?
- Vim te buscar. Um grupo de amigas me chamou para beber no Flamengo.
- Me dê cinco minutos – disse me levantando. – Ah, e pega o comprimido, vou precisar dele.