-
Precisa ser tanto?
Não sei
se foi exatamente isso que Tatiana disse. A ressaca estava violenta e ela tinha
acabado de me acordar. É bem possível que tenha sido algo desse tipo mesmo, mas
em um tom suave. A cada dia que passava nossa relação era mais próxima no
sentido de companheirismo. Era o dia todo dando patada um no outro como forma
de carinho, mas nos momentos de falar sério, a mão dela ficava exageradamente
leve, o que tirava totalmente o efeito do esporro.
Sim,
acredito que foi isso que ela falou, com o porém de terminar a frase usando meu
short name como vocativo. Short name é quando reduzimos o nome da
pessoa. Eduardo vira Edu, Mariana vira Mari, Priscila vira Pris, Carlos Eduardo
vira Cadu e estranhamente Raquel vira Quequel aumentando o nome. Eu odiava ser
chamado pelo short name, mesmo
sabendo que minha mãe escolheu esse nome propositalmente para ser chamado
assim. Tatiana sabia disso, aliás, muitas pessoas sabem disso. Algumas o fazem
para me irritar, Tatiana não. Ela usa inconscientemente, acha que dá um tom de
carinho nas frases. Sim, de fato dá, mas me irrita! Ainda assim prefiro quando
ela me chama de idiota.
Voltando
à situação, lá estava Tatiana falando comigo. Devia ser por volta das quatro da
tarde, eu estava apagado no sofá, o cheiro de bebida ainda era muito forte,
meus olhos estavam vermelhos e meus movimentos lentos.
- Precisa
beber tanto? Sexta já foi foda – tínhamos saído na sexta e ficamos muito mal. –
Ontem três da tarde você me ligou dizendo que estava na rua e seu porteiro
disse que quando chegou para trabalhar às oito da manhã precisou te ajudar a
subir para casa, pois estava jogado no canto da portaria.
Provavelmente
era verdade, meus porteiros eram fofoqueiros, mas não eram mentirosos. Não me
lembrava disso. Recordo de ter ido à Feira do Lavradio, de lá fui para a Pedra
do Sal e fiquei até por volta de uma da manhã. Tive um ligeiro flash na cabeça
sobre algum lugar fechado, mas não conseguia identificar ao certo onde.
- Minha
moto – balbuciei para ela perguntando sobre.
- Está
parada aqui embaixo – ela se interrompeu por um segundo para num tom mais suave
possível prosseguir. – Você ainda estava de moto? Qual o seu problema?
Responder
imbecilidade ou irresponsabilidade seria uma opção, mas ela iria falar sobre,
dar sermão e não queria isso. Não que não estivesse certa em fazer isso. Apenas
não queria ouvir qualquer coisa. Precisava dormir mais um pouco. Então me calei
e ela fez o que mais me irrita, repetiu a pergunta várias vezes na esperança
que respondesse.
- Ei,
onde você vai? – Ela mudou ao pergunta assim que me levantei empurrando a
cabeça dela para que saísse da minha frente.
- Vou
vomitar – respondi. – Você e sua chatice me dão vontade de vomitar.
- Quer
ajuda?
- Sim,
continue falando! Assim vomito mais e curo a ressaca mais rápido.
O
silêncio se fez e logo depois foi quebrado pela sinfonia que regia na tentativa
de eliminar todo aquele álcool de maneira controladamente direcionada. Eu odeio
vomitar! Tenho pavor, fico sem ar, acho que vou morrer e acabo fazendo uma
revisão da minha vida na cabeça. Daí é sempre a mesma coisa, arrependimento
pelas ações de costume: misturar bebida, comer porcaria com bebida, não ter ido
falar com a menina que tanto achei bonita, futucar a problemática unha
encravada do pé esquerdo. Por sorte, como tenho refluxo, coloco tudo para fora
mais rápido e a crise passa rápido.
Sim,
tenho refluxo e bebo, mais estúpido impossível. Foi até curioso o dia que
descobri a causa. A médica (lembro que era mulher, mas não recordo o nome) deu
a notícia:
- Bem,
a endoscopia confirmou o que tinha dito antes. O motivo de tantas crises de
refluxo é que você tem hérnia de hiato.
-
Hérnia de hiato? Mal sei o que é ditongo, imagine isso – aparentemente ela não
acompanhou meu raciocínio, ficou séria e, sem graça, piorei com outra cretinice.
– Tem certeza que fez medicina, não foi letras?
Ela não
deve ter gostado muito, pois optou por não me operar, me deixar dependente de
Motilium e ainda prescreveu uma dieta que me faria ficar de mal humor pelo
resto da vida. Por teimosia, não a obedeci e hoje sofro todas as noites sorrindo.
Voltando
à cena do banheiro, lá estava eu agachado de frente para a privada. Sim,
agachado, me recuso a ficar ajoelhado. Não, não tem uma explicação lógica para
isso, é apenas estupidez repetida mesmo. Todas as vezes, por mais rápido que seja,
fico com câimbras e o sofrimento fica maior ainda. Cria-se uma cena dantesca de
dar inveja à Linda Blair, com gritos de dor e um irrigador de jardim gástrico ao
mesmo tempo. Eu sei, não precisam imaginar.
- Isso!
Sofre mesmo, idiota – ela estava quietinha o tempo todo atrás de mim na porta
do banheiro. – Ali, vinte Reais em Stella acabaram de sair. Ih, mais trinta!
Mais dez! Uma empadinha! Um pentelho!
- Cala
a boca, Galvão! Vai ficar narrando meu vômito?
- Se fode
aí!
Como se
tivesse outra opção. Não bastava toda aquela cena, ainda tinha uma motivadora
reversa ao fundo para piorar. Nem preciso dizer que ali o maior arrependimento
era manter a amizade com ela. Não importa o quanto a pessoa está certa,
aproveitar o meu momento de fraqueza para sapatear na minha cara e esfregar
seus argumentos é muita ruindade. Exceto quando eu estou na posição de
sapatear, aí pode!
Terminado
aquilo tudo, voltei para a sala. Ainda vestido com as roupas da noite anterior,
Tatiana sugeriu que as tirasse para colocar para lavar. Aos poucos e com a
ajuda dela tirei bota, meia, camisa, calça. Antes de colocar no cesto de roupas
sujas, ela conferiu se tinha algo nos bolsos:
- Oba –
ela gritou da cozinha. – Achei dez Reais!
-
Ótimo! Pague seu táxi e vá embora.
- Não –
ela respondeu e se calou para logo depois continuar. – Achei um comprovante de
cartão de crédito. Não! Dois!
- Dois?
De que são?
- São
do mesmo valor, sessenta e oito Reais. E são do mesmo lugar também!
- Será
que passei duas vezes ou me roubaram?
-
Bem-feito, para deixar de ser mané – ela falou com certo ar de ódio. - Não! Um é
crédito do Diners, o outro é débito do Itaú.
- Eu
não tenho conta no Itaú!
- Não?
Que estranho – ela fez novo silêncio para ler os comprovantes. – Está escrito
vê ponto erre gê service. Tem outras coisas escritas também.
Não
tinha a menor ideia do que podia ser “V.RG Service”, até mesmo porque sequer
lembrava de como saí da Pedra do Sal. Tatiana ficou intrigada, largou a minha
calça sobre a máquina e pegou o celular para tentar descobrir o que era.
Enquanto isso, eu só de cuecas sofria um pouco mais da ressaca largado no sofá.
- Se
incomoda de pegar um pouco de água para mim?
- Levanta
o rabo e vem pegar!
- Estou
sofrendo!
- Se
fode aí!
Confesso
que adoro muito mais esses nossos diálogos do que quando ela vem com cautela para
conversar seriamente comigo. Mas nada custava ela pegar água para mim.
Permaneci deitado com aquela péssima sensação de vazio, que parece que
arrancaram todos os seus órgãos e os substituíram por bolinhas pequenas de
isopor. Ou resumindo, te transformaram em uma almofada infantil da década de
oitenta.
- Pelo
que vi aqui na internet, é algo de Vila Regia hotel. Isso não é um motel ali
perto da Pedra do Sal?
-
Motel? Eu fui em um motel?
- E
aparentemente dividiram a conta com você. Não lembra?
- Claro
que não!
-
Levanta as pernas aí para que possa conferir as suas pregas.
Os dois
riram por algum tempo, daí eu parei primeiro. Ela perguntou se estava
contraindo a bunda para conferir e voltamos a rir. Deu ânsia novamente,
levantei-me e fui para o banheiro xingando Tatiana de idiota. Ela riu mais um
pouco e voltou a conferir os bolsos enquanto no banheiro eu esperava que algo
mais fosse sair.
- Tem
um comprimido no bolso – ela disse para depois repetir, pois nada falei. – Tem um
comprimido fora da cartela no bolso.
Saí do
banheiro e ela me esperava no meio do quarto com o comprimido na mão. Fiz cara
de paisagem como se a resposta viesse sozinha, mas ela insistiu em perguntar
mais uma vez.
- Qual
o problema? É a porra de um remédio para dor de cabeça!
-
Colorido – ela falou quase enfiando na minha cara. – Remédio para dor de cabeça
colorido?
- É um
remédio para dor de cabeça divertido.
O
silêncio se fez e, como de hábito, ela não se conteve e riu. Obviamente me
chamou de idiota logo depois. Em seguida me deu o comprimido dizendo que
deveria tomar, pois se estava de ressaca, estava com dor de cabeça. Falei que
não precisava, pois só queria ficar quietinho e voltar a dormir.
- Que
lindo! Tão responsável – ela sempre foi muito ruim com sarcasmo. – Podia ser
assim na noite.
- Pois
é, mas minha noite é agora – disse enquanto começava a me ajeitar na cama. –
Mas me diga, o que, raios, veio fazer aqui?
- Vim
te buscar. Um grupo de amigas me chamou para beber no Flamengo.
- Me dê
cinco minutos – disse me levantando. – Ah, e pega o comprimido, vou precisar
dele.