quinta-feira, 24 de abril de 2014

Histórias Reais Inventadas por Mim

Strangers in the Line
Noite de evento no ginásio da cidade. Do lado de fora, uma enorme fila de homens vestindo calças jeans escuras, camisas pretas, correntes, brincos, piercings, anéis, pulseiras e tatuagens por todo o corpo. Na companhia deles, mulheres de maquiagem pesada que as deixavam com a aparência mais pálida ainda, olhos negros, cabelos de todas as cores estranhas que possa imaginar e roupas igualmente escuras. Era noite do show da banda Abutres do Inferno, uma banda conhecida pelo rock pesado com letras violentas e obscenas.
No meio da fila, mais próximo da entrada do que do final, estava um rapaz sozinho. Robusto, com um corpo desenhado provavelmente à base de muitos Cheetos, Kit-Kat e Coca-Cola Zero, ele suava aparentemente de ansiedade. Sapato de camurça preto, calça jeans escura, cinto preto, camisa de botão preta de manga curta para dentro das calças e cabelo impecavelmente penteado para o lado. Ao seu lado surge um homem aproximadamente 10 anos mais velho. Barba mal cuidada, camisa preta com as mangas cortadas e estampa de caveira, calça jeans surrada com alguns pequenos rasgos e uma bota imunda que um dia foi de uma cor reconhecível.
- Fala aí, cara!
- Olá!
- Vou ficar aqui do seu lado, ok?
- Mas isso é furar fila.
- É, eu sei, mas não consegui chegar cedo e não vou para a merda do final da fila.
Fez-se o silêncio. O rapaz ficou praticamente catatônico olhando para frente enquanto o homem, ao seu lado, o encarava à espera de uma reação. Após algumas piscadelas e coçadas na testa seguidas de ajeitadas da franja, o homem impacientemente fala, interrompendo aquela sequência de gestos estranhos do rapaz:
- Que foi cara? Vou ficar aqui, relaxa.
- Tudo bem – o rapaz responde sem virar o rosto. – Tudo bem.
- Que porra é essa? Olha para mim, caralho!
- Perdão – ele vira o rosto, seca o início de suor que se forma no seu pescoço e prossegue. – Só tenho medo das pessoas que estão na fila não gostarem e virem aqui reclamar.
- Isso é uma porra de show de heavy metal, cara! Quem vai reclamar de fila sendo furada? Aqui é só maluco trool!
- Tudo bem, senhor! Eu só não quero problemas.
- Relaxa, porra! Você não vai ter – o homem se interrompe para prosseguir logo em seguida. – Senhor? Você me chamou de senhor? Que porra é essa?
- Desculpe, não queria insinuar que é velho. É apenas respeito. Você nem aparenta a idade que tem com essas roupas velhas e essa barba estranha.
- Moleque, qual o seu problema? Mas que porra é essa?
- Desculpe, senhor. Digo, moço. Estou apenas nervoso.
- Nervoso com o quê, caralho?
- Senhor... Digo, moço, peço que controle seus palavrões que eles passam a imagem que está brigando comigo e fico mais nervoso ainda. Coloque a mão aqui na minha barriga.
- NÃO! – Exclama o homem levantando a voz. – Que porra é essa? Mas que merda de ideia é essa?
- Senhor, por favor, peço apenas que encoste nela e verá como estou nervoso.
- Ai merda – diz o homem enquanto coloca vagarosamente a mão sobre a barriga do rapaz. – Pronto, coloquei. Está dura como uma pedra. Deve estar cheia de merda. Você não está nervoso, você precisa cagar.
- São gases – fala o rapaz ensaiando um sorriso discreto. – Sempre que fico nervoso, fico com gases. E com você falando palavrões desse jeito fica pior ainda.
O homem olha ao seu redor como quem procura ajuda, mas ninguém está reparando naquela cena. As pessoas estão suficientemente ocupadas conversando sobre as músicas da banda, shows antigos e assuntos relacionados. Ele ainda vislumbra a ideia de sair dali, porém nota que dificilmente vai conseguir obter sucesso em furar a fila novamente. Sem opções, ele coça a barba, olha para o rapaz dos pés à cabeça e dá prosseguimento:
- Ok, fábrica de butano, você definitivamente está nervoso. Só peço que contenha seus gases.
- Metano, senhor.
- O quê?
- Desculpe, moço. É metano. Não butano.
- Que seja! Por favor, mantenha essa merda de metano dentro de você ou serei obrigado a “meteno” ele novamente no seu rabo.
- Sim, senhor. Irei me conter.
- Agora me explique o motivo de estar nervoso. Nunca foi a um show antes?
- Sim, claro que sim! Vou quase todo sábado. Sempre que tem música ao vivo no shopping, eu, minha mãe e meu pai vamos. Comemos pizza e bebemos refresco de maracujá para não afetar o meu sono mais tarde.
- Peraí, moleque. Você nunca foi a um show assim? Multidão, som alto, calor, suor, cheiro de mijo, de cerveja e de maconha?
- Bem, de fato, este é o meu primeiro e, realmente, este odor ácido de urina com cerveja é consideravelmente desagradável. Ainda bem que passei Vicky no nariz para suportar.
- Moleque, qual o seu problema? Você só pode estar de sacanagem com a minha cara. Ninguém assim como você chegaria vivo aqui. Tive de empurrar um bando de desgraçado para conseguir entrar nos ônibus lotados que estão nos trazendo para cá. Fiquei espremido, passei maior perrengue. Não, ninguém como você sobreviveria a isso. E mesmo que tivesse sorte, nunca chegaria com a roupa engomadinha como essa.
- Meu pai me trouxe de carro até aqui. Não precisei de ônibus. Foi uma ideia bem oportuna que ele teve.
- Porra, moleque – o homem não se contém, tira a camisa do rapaz de dentro das calças e depois dá uma bela despenteada no cabelo dele. – Não, você é muito almofadinha. Assim vai ficar melhor.
- Não sei se minha mãe aprovaria este estilo, moço.
- Sua mãe não está aqui, cara. Além do mais, na volta você vai se foder para conseguir entrar em ônibus. Acredite, vai chegar muito pior do que está agora. Veja isso – o homem aponta para a falta de mangas da sua camisa e os rasgos na sua calça. – Quando estava vindo para cá, estava de smoking. Olha como fiquei.
- O senhor é muito espirituoso – disse o rapaz enquanto colocava a camisa de volta para dentro das calças. – Mas não será necessário, meu pai vai me levar no final. Mesmo assim, se fosse utilizar o ônibus, minha mãe não aprovaria.
- O que ela não aprovaria? Ficar desarrumado ou andar de ônibus?
- Os dois!
- E como que você anda pela cidade, caralho? Sempre de carona com o pai?
- Sim, ele sempre me leva e me busca nos lugares.
- Ele fica para cima e para baixo sempre?
- Nem sempre. Em casos como este de hoje, ele já sabe que vai ter trânsito, então fica por perto me esperando.
- Ele vai ficar o tempo todo no carro te esperando? Mas que merda! É quase uma versão conservadora de Conduzindo Miss Dayse. E o que ele faz enquanto isso?
- Isso depende muito. Na maior parte das vezes ele fica lendo um livro. Quando esquece um livro, ele improvisa algo. Certa vez ele ficou no carro se masturbando ouvindo Sade.
- Caralho, que foda! Seu pai é muito doente!
- Ele diz que isso é necessário para expulsar os maus pensamentos.
- Bronha expulsa maus pensamentos? Então hoje fiz uma sessão inteira de exorcismo lá em casa.
O homem ri descontroladamente e o rapaz permanece sério como se fosse a coisa mais natural do mundo. Alguns segundos depois, ele se recompõe e, vendo que o rapaz permaneceu quieto, fica sem graça.
- Cara, isso não pode ser sério. Você está me sacaneando!
- Não mesmo, senhor.
- Ok, acreditarei. Até porque não quero entrar nos méritos da vida sexual solitária do seu pai.
- Sim, é algo muito triste mesmo. Meus pais não fazem sexo. Minha mãe acha que é algo sujo e errado. Só fizeram para engravidar de mim. Ela diz que sou um presente de Deus.
- Ah, claro! Você é um presentaço! E sem direito a troca! – O homem nota que o rapaz não entendeu o comentário e, sem graça, dá prosseguimento. – Mas então seus pais nunca mais transaram? Nem umazinha? Nem uma fodinha rápida?
- Senhor, minha mãe não faz essas coisas. Ela é uma mulher muito correta.
- Ah claro, imagino. Só não entendo como um filho de uma mãe tão direita e praticamente fora de uso e com um pai que zela pelo corpo sem maus pensamentos escuta Abutres do Inferno.
- Essa é uma história muito engraçada.
- Ah, sim, imagino que seja.
- Foi no funeral da minha avó.
- Funeral da sua avó e Abutres do Inferno? Eu não tenho certeza se quero ouvir isso.
- Ok, não contarei.
- NÃO! Foi deboche! Claro que quero ouvir.
- Bem, era o funeral da minha avó. Ela seria cremada e minha mãe contratou uma pessoa para colocar músicas religiosas ao fundo. Só que as versões que o homem colocava não agradaram e minha mãe foi reclamar com ele. Ela achava que tinha de ser a versões em latim cantadas por padres italianos. O homem explicou que era difícil conseguir aquelas versões e por isso levou as que achou para que a cerimônia fosse feita de qualquer forma. Minha mãe não gostou mesmo assim e deu uma boa bronca nele. Disse que era um incompetente naquela tarefa simples e que, graças a ele, a minha avó não descansaria em paz, tão pouco faria um caminho sossegado para o céu.
- Caralho, que esporro, cara! Sua mãe é brava mesmo! Não é a toa que seu pai prefere ficar na bronha no carro. Mas onde entram os Abutres aí?
- Bem, depois disso o homem ainda tentou argumentar. Só que minha mãe falou que ele era um herege em danação, uma alma perdida que veio à Terra para poluir as pessoas de bem. Daí ele ficou zangado, colocou uma música dos Abutres para tocar e foi embora.
- Que foda, cara! Que foda! DJ fodido esse! E qual música que ele colocou?
- Ele colocou “Queimem a desgraçada”.
Iniciou-se aí uma sequência de gargalhadas histéricas por parte do homem. Ele inclinava a cabeça exageradamente para trás, contorcia o corpo para frente, ocupava todo o espaço ao seu redor com movimentos de braços, era uma cena espontaneamente escalafobética. Ao mesmo tempo, o rapaz com um leve e fofo sorriso de canto de boca observava aquilo tudo. Nesse meio tempo a fila andou um pouco para frente. O rapaz disfarçadamente levantou a sobrancelha e acenando com a cabeça chamou o homem para andar com ele.
- Obrigado – disse o homem enquanto tentava recuperar o folego. – Garoto, essa história é sensacional. Fico apenas com pena da sua avó. Sua mãe mereceu!
O rapaz nada respondeu e aparentou ficar desconfortável com o comentário do homem que, ao notar a reação dele, sem graça, se ajeitou, olhou para os lados e fingiu que nada aconteceu. O silêncio permaneceu por breves segundo, até que o homem voltou a falar.
- Mas me explica como a sua mãe deixou você vir ao show.
- Foi bem difícil, sabe? Só escuto as músicas deles quando ela não está em casa, ou quando estou na rua. Ela não suportaria saber que ouço esse tipo de música.
- Ah claro – concordou o homem com as mãos espalmadas levantadas. – Imagino que não.
- Então – o rapaz faz uma pausa para passar as mãos no rosto para secar um pouco do suor. – Expliquei para ela que, de uma maneira não muito legal, essa era a última lembrança que tinha da minha avó e que apenas a sonoridade das músicas me faziam lembrar dela.
- Que foda, moleque! Você sabe ser um mentiroso do caralho!
- Não é mentira – rebateu o rapaz passando os dedos pela testa. – É verdade. Só ouço essas músicas para me sentir mais próximo dela. É estranho, eu sei, mas me sinto como se ainda estivesse no seu funeral me despedindo dela.
- Moleque, de boa – o homem para, coça a barba, a cabeça e prossegue – fazer um in memoriam para a sua avó no show dos Abutres do Inferno é a coisa mais foda que já vi na minha vida. Queria um dia contassem que meus filhos fizeram algo do tipo para mim.
- Imagino que sim. Você tem filhos?
- Não – responde o homem vagando o olhar para o seu redor. – Perdi os dois testículos em uma briga de faca alguns anos atrás.
- Oh céus – o rapaz se espanta e dá dois passos para trás. – Oh céus!
- Relaxa, garoto. Isso tem muito tempo. E no final eu ganhei a briga cravando a faca com o sangue do meu saco no olho daquele desgraçado. Quer ver?
- Ver o quê? A faca? O homem morto? – O rapaz, de olhos arregalados, não parava de perguntar o que ele queria mostrar. – O quê?
- A cicatriz! É Algo diferente. Não tenho mais saco. Os médicos na época cogitaram colocar duas bolas de titânio para disfarçar, mas não quis. Prefiro ter apenas um pau e um pedaço de pele murcha pendurada embaixo. É como uma cicatriz de guerra.
- Senhor, eu adoraria ver tal excentricidade, mas cicatrizes me fazem passar mal. Tenho um estômago muito fraco para essas coisas. Minha mãe costuma dizer que Deus escreve certo por linhas tortas e, por isso, ele, me dando essa sensibilidade, acabou me impedindo de ser médico.
- Seu Deus é um debochado ao fazer você desse jeito, garoto! Acredite! – O homem faz uma pausa, ajeita o pau dentro das calças e retoma. – Então “Queimem a Desgraçada” é sua música favorita?
- Nem tanto. Ela é a que mais me recorda a minha avó, mas não gosto da sua sonoridade. Acho muito barulhenta.
- Garoto, TODAS as músicas deles são barulhentas. Até no intervalo entre as músicas do CD tem barulho. Lembro do primeiro álbum dele que antes de cada faixa tem o baterista arrotando o número da música. Muito foda.
- Oh não, senhor – o rapaz exclama gesticulando negativamente com as mãos. – Isso é totalmente desnecessário. Tanto que fiz várias edições nas músicas para torná-las mais aceitáveis.
- Você tirou os arrotos, seu demente neurótico?
- Também.
- Como também?
O homem se curva apoiando as mãos sobre os joelhos e balança a cabeça de insatisfação. Ele solta três suspiros de indignação, se levanta e pergunta novamente:
- Como também? Me traumatize mais ainda, garoto. O que fez além de tirar os arrotos?
- Eu tiro as letras.
- Letras? Que letras? Letra da música? – O rapaz responde que sim balançando a cabeça e o homem prossegue. – Você tira a voz do vocalista, seu verme maldito fruto de uma punheta?
O garoto dá alguns passos para trás assustado e chega a se afastar da fila. O homem nota que foi ríspido demais, estende a mão para ele, pedindo que volte. Pede desculpas, mas ainda assim pergunta qual o motivo de tirar o vocalista.
A explicação dada foi que as letras, por serem muito violentas e obscenas, acabavam por afetar diretamente a tranquilidade dele, causando desconforto e inquietação, além de desregular o sono. Além disso, ele disse que a quantidade excessiva de sangue e órgãos humanos nas músicas fazia com que passasse mal.
- Garoto, imagino então que você quase morreu quando ouviu pela primeira vez “Comerei seus miolos em uma tigela de sangue”.
- Oh sim – ele responde arregalando os olhos. – Troquei o nome para “Comerei sucrilhos com iogurte de frutas vermelhas”. Ficou mais simpática.
- Garoto, você me assusta! De verdade! – Depois disso o homem se afasta e tenta furar a fila mais à frente em um grupo mais compatível com o evento.
Algumas horas depois, após terminado o show, lá estava o homem sentado no meio-fio na companhia de um conhecido. Papo vai, papo vem, enquanto esperavam o ônibus chegar, quando um carro em baixa velocidade passa por eles. No banco da frente, um homem de aparentemente 50, quase 60 anos. No banco de trás, o garoto, com o cabelo ainda impecavelmente arrumado. Ele vê o homem sentado no meio-fio, abre um sorriso e dá um inocente “tchau” de mão espalmada para ele. O amigo do homem vê a cena, olha para um, olha para o outro e pergunta:
- Quem é o retardado?
- É a criatura mais assustadora que vi na minha vida.
- Em qual sentido?
- Todos! Acredite. Em todos os sentidos!
- Mais que o homem que arrancou seus testículos com uma faca?
- MUITO MAIS!
- Ele? Aquele cara de broa no banco de trás de um carro?
- Aham.
- Cara, você é estranho.
- Você deveria conhecer o garoto. A palavra estranho vai ganhar todo um sentido novo para você.