Strangers in the Line
Noite
de evento no ginásio da cidade. Do lado de fora, uma enorme fila de homens
vestindo calças jeans escuras, camisas pretas, correntes, brincos, piercings,
anéis, pulseiras e tatuagens por todo o corpo. Na companhia deles, mulheres de
maquiagem pesada que as deixavam com a aparência mais pálida ainda, olhos
negros, cabelos de todas as cores estranhas que possa imaginar e roupas
igualmente escuras. Era noite do show da banda Abutres do Inferno, uma banda
conhecida pelo rock pesado com letras violentas e obscenas.
No meio
da fila, mais próximo da entrada do que do final, estava um rapaz sozinho.
Robusto, com um corpo desenhado provavelmente à base de muitos Cheetos, Kit-Kat
e Coca-Cola Zero, ele suava aparentemente de ansiedade. Sapato de camurça
preto, calça jeans escura, cinto preto, camisa de botão preta de manga curta
para dentro das calças e cabelo impecavelmente penteado para o lado. Ao seu
lado surge um homem aproximadamente 10 anos mais velho. Barba mal cuidada,
camisa preta com as mangas cortadas e estampa de caveira, calça jeans surrada
com alguns pequenos rasgos e uma bota imunda que um dia foi de uma cor
reconhecível.
- Fala
aí, cara!
- Olá!
- Vou
ficar aqui do seu lado, ok?
- Mas
isso é furar fila.
- É, eu
sei, mas não consegui chegar cedo e não vou para a merda do final da fila.
Fez-se
o silêncio. O rapaz ficou praticamente catatônico olhando para frente enquanto
o homem, ao seu lado, o encarava à espera de uma reação. Após algumas
piscadelas e coçadas na testa seguidas de ajeitadas da franja, o homem
impacientemente fala, interrompendo aquela sequência de gestos estranhos do
rapaz:
- Que
foi cara? Vou ficar aqui, relaxa.
- Tudo
bem – o rapaz responde sem virar o rosto. – Tudo bem.
- Que
porra é essa? Olha para mim, caralho!
-
Perdão – ele vira o rosto, seca o início de suor que se forma no seu pescoço e
prossegue. – Só tenho medo das pessoas que estão na fila não gostarem e virem
aqui reclamar.
- Isso
é uma porra de show de heavy metal,
cara! Quem vai reclamar de fila sendo furada? Aqui é só maluco trool!
- Tudo
bem, senhor! Eu só não quero problemas.
-
Relaxa, porra! Você não vai ter – o homem se interrompe para prosseguir logo em
seguida. – Senhor? Você me chamou de senhor? Que porra é essa?
-
Desculpe, não queria insinuar que é velho. É apenas respeito. Você nem aparenta
a idade que tem com essas roupas velhas e essa barba estranha.
-
Moleque, qual o seu problema? Mas que porra é essa?
-
Desculpe, senhor. Digo, moço. Estou apenas nervoso.
-
Nervoso com o quê, caralho?
-
Senhor... Digo, moço, peço que controle seus palavrões que eles passam a imagem
que está brigando comigo e fico mais nervoso ainda. Coloque a mão aqui na minha
barriga.
- NÃO!
– Exclama o homem levantando a voz. – Que porra é essa? Mas que merda de ideia
é essa?
-
Senhor, por favor, peço apenas que encoste nela e verá como estou nervoso.
- Ai
merda – diz o homem enquanto coloca vagarosamente a mão sobre a barriga do
rapaz. – Pronto, coloquei. Está dura como uma pedra. Deve estar cheia de merda.
Você não está nervoso, você precisa cagar.
- São
gases – fala o rapaz ensaiando um sorriso discreto. – Sempre que fico nervoso,
fico com gases. E com você falando palavrões desse jeito fica pior ainda.
O homem
olha ao seu redor como quem procura ajuda, mas ninguém está reparando naquela
cena. As pessoas estão suficientemente ocupadas conversando sobre as músicas da
banda, shows antigos e assuntos relacionados. Ele ainda vislumbra a ideia de
sair dali, porém nota que dificilmente vai conseguir obter sucesso em furar a
fila novamente. Sem opções, ele coça a barba, olha para o rapaz dos pés à
cabeça e dá prosseguimento:
- Ok,
fábrica de butano, você definitivamente está nervoso. Só peço que contenha seus
gases.
-
Metano, senhor.
- O quê?
-
Desculpe, moço. É metano. Não butano.
- Que
seja! Por favor, mantenha essa merda de metano dentro de você ou serei obrigado
a “meteno” ele novamente no seu rabo.
- Sim,
senhor. Irei me conter.
- Agora
me explique o motivo de estar nervoso. Nunca foi a um show antes?
- Sim,
claro que sim! Vou quase todo sábado. Sempre que tem música ao vivo no
shopping, eu, minha mãe e meu pai vamos. Comemos pizza e bebemos refresco de
maracujá para não afetar o meu sono mais tarde.
-
Peraí, moleque. Você nunca foi a um show assim? Multidão, som alto, calor,
suor, cheiro de mijo, de cerveja e de maconha?
- Bem,
de fato, este é o meu primeiro e, realmente, este odor ácido de urina com
cerveja é consideravelmente desagradável. Ainda bem que passei Vicky no nariz
para suportar.
-
Moleque, qual o seu problema? Você só pode estar de sacanagem com a minha cara.
Ninguém assim como você chegaria vivo aqui. Tive de empurrar um bando de
desgraçado para conseguir entrar nos ônibus lotados que estão nos trazendo para
cá. Fiquei espremido, passei maior perrengue. Não, ninguém como você
sobreviveria a isso. E mesmo que tivesse sorte, nunca chegaria com a roupa
engomadinha como essa.
- Meu
pai me trouxe de carro até aqui. Não precisei de ônibus. Foi uma ideia bem
oportuna que ele teve.
- Porra,
moleque – o homem não se contém, tira a camisa do rapaz de dentro das calças e
depois dá uma bela despenteada no cabelo dele. – Não, você é muito almofadinha.
Assim vai ficar melhor.
- Não
sei se minha mãe aprovaria este estilo, moço.
- Sua
mãe não está aqui, cara. Além do mais, na volta você vai se foder para
conseguir entrar em ônibus. Acredite, vai chegar muito pior do que está agora.
Veja isso – o homem aponta para a falta de mangas da sua camisa e os rasgos na
sua calça. – Quando estava vindo para cá, estava de smoking. Olha como fiquei.
- O
senhor é muito espirituoso – disse o rapaz enquanto colocava a camisa de volta
para dentro das calças. – Mas não será necessário, meu pai vai me levar no
final. Mesmo assim, se fosse utilizar o ônibus, minha mãe não aprovaria.
- O que ela não aprovaria? Ficar desarrumado ou andar de ônibus?
- Os
dois!
- E
como que você anda pela cidade, caralho? Sempre de carona com o pai?
- Sim,
ele sempre me leva e me busca nos lugares.
- Ele
fica para cima e para baixo sempre?
- Nem sempre.
Em casos como este de hoje, ele já sabe que vai ter trânsito, então fica por
perto me esperando.
- Ele
vai ficar o tempo todo no carro te esperando? Mas que merda! É quase uma versão
conservadora de Conduzindo Miss Dayse. E o que ele faz enquanto isso?
- Isso
depende muito. Na maior parte das vezes ele fica lendo um livro. Quando esquece
um livro, ele improvisa algo. Certa vez ele ficou no carro se masturbando
ouvindo Sade.
-
Caralho, que foda! Seu pai é muito doente!
- Ele
diz que isso é necessário para expulsar os maus pensamentos.
-
Bronha expulsa maus pensamentos? Então hoje fiz uma sessão inteira de exorcismo
lá em casa.
O homem
ri descontroladamente e o rapaz permanece sério como se fosse a coisa mais
natural do mundo. Alguns segundos depois, ele se recompõe e, vendo que o rapaz
permaneceu quieto, fica sem graça.
- Cara,
isso não pode ser sério. Você está me sacaneando!
- Não
mesmo, senhor.
- Ok,
acreditarei. Até porque não quero entrar nos méritos da vida sexual solitária
do seu pai.
- Sim,
é algo muito triste mesmo. Meus pais não fazem sexo. Minha mãe acha que é algo
sujo e errado. Só fizeram para engravidar de mim. Ela diz que sou um presente
de Deus.
- Ah,
claro! Você é um presentaço! E sem direito a troca! – O homem nota que o rapaz
não entendeu o comentário e, sem graça, dá prosseguimento. – Mas então seus
pais nunca mais transaram? Nem umazinha? Nem uma fodinha rápida?
-
Senhor, minha mãe não faz essas coisas. Ela é uma mulher muito correta.
- Ah
claro, imagino. Só não entendo como um filho de uma mãe tão direita e
praticamente fora de uso e com um pai que zela pelo corpo sem maus pensamentos
escuta Abutres do Inferno.
- Essa
é uma história muito engraçada.
- Ah,
sim, imagino que seja.
- Foi
no funeral da minha avó.
-
Funeral da sua avó e Abutres do Inferno? Eu não tenho certeza se quero ouvir isso.
- Ok,
não contarei.
- NÃO!
Foi deboche! Claro que quero ouvir.
- Bem,
era o funeral da minha avó. Ela seria cremada e minha mãe contratou uma pessoa
para colocar músicas religiosas ao fundo. Só que as versões que o homem
colocava não agradaram e minha mãe foi reclamar com ele. Ela achava que tinha
de ser a versões em latim cantadas por padres italianos. O homem explicou que
era difícil conseguir aquelas versões e por isso levou as que achou para que a
cerimônia fosse feita de qualquer forma. Minha mãe não gostou mesmo assim e deu
uma boa bronca nele. Disse que era um incompetente naquela tarefa simples e
que, graças a ele, a minha avó não descansaria em paz, tão pouco faria um
caminho sossegado para o céu.
-
Caralho, que esporro, cara! Sua mãe é brava mesmo! Não é a toa que seu pai
prefere ficar na bronha no carro. Mas onde entram os Abutres aí?
- Bem,
depois disso o homem ainda tentou argumentar. Só que minha mãe falou que ele
era um herege em danação, uma alma perdida que veio à Terra para poluir as pessoas
de bem. Daí ele ficou zangado, colocou uma música dos Abutres para tocar e foi
embora.
- Que
foda, cara! Que foda! DJ fodido esse! E qual música que ele colocou?
- Ele
colocou “Queimem a desgraçada”.
Iniciou-se
aí uma sequência de gargalhadas histéricas por parte do homem. Ele inclinava a
cabeça exageradamente para trás, contorcia o corpo para frente, ocupava todo o
espaço ao seu redor com movimentos de braços, era uma cena espontaneamente
escalafobética. Ao mesmo tempo, o rapaz com um leve e fofo sorriso de canto de
boca observava aquilo tudo. Nesse meio tempo a fila andou um pouco para frente.
O rapaz disfarçadamente levantou a sobrancelha e acenando com a cabeça chamou o
homem para andar com ele.
-
Obrigado – disse o homem enquanto tentava recuperar o folego. – Garoto, essa
história é sensacional. Fico apenas com pena da sua avó. Sua mãe mereceu!
O rapaz
nada respondeu e aparentou ficar desconfortável com o comentário do homem que,
ao notar a reação dele, sem graça, se ajeitou, olhou para os lados e fingiu que
nada aconteceu. O silêncio permaneceu por breves segundo, até que o homem
voltou a falar.
- Mas
me explica como a sua mãe deixou você vir ao show.
- Foi
bem difícil, sabe? Só escuto as músicas deles quando ela não está em casa, ou
quando estou na rua. Ela não suportaria saber que ouço esse tipo de música.
- Ah
claro – concordou o homem com as mãos espalmadas levantadas. – Imagino que não.
- Então
– o rapaz faz uma pausa para passar as mãos no rosto para secar um pouco do
suor. – Expliquei para ela que, de uma maneira não muito legal, essa era a
última lembrança que tinha da minha avó e que apenas a sonoridade das músicas
me faziam lembrar dela.
- Que
foda, moleque! Você sabe ser um mentiroso do caralho!
- Não é
mentira – rebateu o rapaz passando os dedos pela testa. – É verdade. Só ouço
essas músicas para me sentir mais próximo dela. É estranho, eu sei, mas me
sinto como se ainda estivesse no seu funeral me despedindo dela.
-
Moleque, de boa – o homem para, coça a barba, a cabeça e prossegue – fazer um in memoriam para a sua avó no show dos
Abutres do Inferno é a coisa mais foda que já vi na minha vida. Queria um dia
contassem que meus filhos fizeram algo do tipo para mim.
-
Imagino que sim. Você tem filhos?
- Não –
responde o homem vagando o olhar para o seu redor. – Perdi os dois testículos
em uma briga de faca alguns anos atrás.
- Oh
céus – o rapaz se espanta e dá dois passos para trás. – Oh céus!
-
Relaxa, garoto. Isso tem muito tempo. E no final eu ganhei a briga cravando a
faca com o sangue do meu saco no olho daquele desgraçado. Quer ver?
- Ver o
quê? A faca? O homem morto? – O rapaz, de olhos arregalados, não parava de
perguntar o que ele queria mostrar. – O quê?
- A
cicatriz! É Algo diferente. Não tenho mais saco. Os médicos na época cogitaram colocar
duas bolas de titânio para disfarçar, mas não quis. Prefiro ter apenas um pau e
um pedaço de pele murcha pendurada embaixo. É como uma cicatriz de guerra.
-
Senhor, eu adoraria ver tal excentricidade, mas cicatrizes me fazem passar mal.
Tenho um estômago muito fraco para essas coisas. Minha mãe costuma dizer que
Deus escreve certo por linhas tortas e, por isso, ele, me dando essa
sensibilidade, acabou me impedindo de ser médico.
- Seu
Deus é um debochado ao fazer você desse jeito, garoto! Acredite! – O homem faz
uma pausa, ajeita o pau dentro das calças e retoma. – Então “Queimem a
Desgraçada” é sua música favorita?
- Nem
tanto. Ela é a que mais me recorda a minha avó, mas não gosto da sua
sonoridade. Acho muito barulhenta.
-
Garoto, TODAS as músicas deles são barulhentas. Até no intervalo entre as
músicas do CD tem barulho. Lembro do primeiro álbum dele que antes de cada
faixa tem o baterista arrotando o número da música. Muito foda.
- Oh
não, senhor – o rapaz exclama gesticulando negativamente com as mãos. – Isso é
totalmente desnecessário. Tanto que fiz várias edições nas músicas para torná-las
mais aceitáveis.
- Você
tirou os arrotos, seu demente neurótico?
-
Também.
- Como
também?
O homem
se curva apoiando as mãos sobre os joelhos e balança a cabeça de insatisfação. Ele
solta três suspiros de indignação, se levanta e pergunta novamente:
- Como
também? Me traumatize mais ainda, garoto. O que fez além de tirar os arrotos?
- Eu
tiro as letras.
-
Letras? Que letras? Letra da música? – O rapaz responde que sim balançando a
cabeça e o homem prossegue. – Você tira a voz do vocalista, seu verme maldito
fruto de uma punheta?
O garoto
dá alguns passos para trás assustado e chega a se afastar da fila. O homem nota
que foi ríspido demais, estende a mão para ele, pedindo que volte. Pede
desculpas, mas ainda assim pergunta qual o motivo de tirar o vocalista.
A
explicação dada foi que as letras, por serem muito violentas e obscenas,
acabavam por afetar diretamente a tranquilidade dele, causando desconforto e
inquietação, além de desregular o sono. Além disso, ele disse que a quantidade
excessiva de sangue e órgãos humanos nas músicas fazia com que passasse mal.
- Garoto,
imagino então que você quase morreu quando ouviu pela primeira vez “Comerei
seus miolos em uma tigela de sangue”.
- Oh
sim – ele responde arregalando os olhos. – Troquei o nome para “Comerei
sucrilhos com iogurte de frutas vermelhas”. Ficou mais simpática.
-
Garoto, você me assusta! De verdade! – Depois disso o homem se afasta e tenta
furar a fila mais à frente em um grupo mais compatível com o evento.
Algumas
horas depois, após terminado o show, lá estava o homem sentado no meio-fio na
companhia de um conhecido. Papo vai, papo vem, enquanto esperavam o ônibus chegar,
quando um carro em baixa velocidade passa por eles. No banco da frente, um homem
de aparentemente 50, quase 60 anos. No banco de trás, o garoto, com o cabelo
ainda impecavelmente arrumado. Ele vê o homem sentado no meio-fio, abre um
sorriso e dá um inocente “tchau” de mão espalmada para ele. O amigo do homem vê a
cena, olha para um, olha para o outro e pergunta:
- Quem
é o retardado?
- É a
criatura mais assustadora que vi na minha vida.
- Em
qual sentido?
-
Todos! Acredite. Em todos os sentidos!
- Mais
que o homem que arrancou seus testículos com uma faca?
- MUITO
MAIS!
- Ele?
Aquele cara de broa no banco de trás de um carro?
- Aham.
- Cara,
você é estranho.
- Você
deveria conhecer o garoto. A palavra estranho vai ganhar todo um sentido novo
para você.