sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cretinice homeopática

Fui jantar pela primeira vez com a família da minha nova namorada. Acabou sendo pior que imaginava. Não sabia que o irmão dela trabalhava como flanelinha. Ele me pediu R$ 10,00 para me sentar em um lugar que ele supostamente guardou para mim no sofá da sala. Falei que pagaria quando fosse embora. Em determinado momento me levantei para ir ao banheiro. Ao voltar, o estofado do meu lugar estava todo rasgado. Tive de pagar um sofá novo para a mãe dela. Saudades de quando namorava a filha de um miliciano.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Início... ou fim

Meu prato favorito é língua. Língua defumada com molho madeira, batatas levadas ao forno e feijão manteiga com paio. Depois, em segundo lugar, está fígado acebolado com fritas bem sequinhas, ou com purê, e feijão. Sei que muitos farão careta para pelo menos um dos pratos sem ter provado sequer uma vez na vida. Que pena. Não dá para dizer que algo é ruim sem antes experimentar. Obviamente não preciso comer merda para falar que é ruim. Não vamos generalizar também. Talvez por isso exista o tabu de tentar relações com o mesmo sexo. Quem suportaria o peso de mudar toda a forma de ver um dos principais alicerces da vida antes renegado por pura teimosia? Bem, no meu caso eu concentrei toda a minha coragem provando língua. Acredito que tenha sido emoção suficiente.
Estranhamente, essa teimosia de dizer que algo é ruim sem provar ou que algo é muito bom sem tentar enxergar por outra perspectiva me acompanhou por toda a vida. Talvez esteja sentimental pelo momento, mas o fato é que hoje olho para trás e vejo como insisti em pensamentos teimosos. E como fiz merda na vida também, mas isso fica para outro momento.
Nunca achei que diria isso, mas a Lapa é uma merda. O bairro que tanto frequentei, idolatrei e fiz de quintal da minha vida é a pior coisa que pode existir. Acredito que antes tinha uma imagem tão distorcida porque sempre chegava entorpecido pela euforia da expectativa de mais um dia de total descompromisso com a responsabilidade e, quando a transe eufórica dava sinais de ceder a ponto de me mostrar a realidade, já estava quimicamente tomado pelas coisas de sempre. É como uma criança chegando a um aniversário de algum coleguinha. Aquela empolgação de ter vários amigos para correr aleatoriamente em recreações com regras sem sentido. Com o tempo, você, de tanto suar, vai desidratando, resolve repor calorias consumindo refrigerantes e doces, seu nível de açúcar sobe descontroladamente e você começa a agir como um maníaco. Fica então incapaz de notar que o homem de meia idade fantasiado de super-herói é patético, que você arrancou sapatos de estranhos por pontos imaginários em uma gincana sem valor e depois vai lutar pela vida para ganhar um saquinho com lembranças que, de tão ruins, você sequer ganharia no dia de Cosme e Damião em alguma comunidade carente. É uma furada óbvia, mas você está iludido pelas circunstâncias, não enxerga o todo e se contenta com a felicidade superficial momentânea. Em casa, depois com o corpo recomposto, você olha para aquele monte de porcarias monocromáticas e se pergunta “Céus, o que eu fiz?”. O mesmo vale para mim, só que no dia seguinte. Com um corpo que parece ter sido surrado, usando todo o esforço possível, abria os olhos, olhava ao meu redor e exclamava “Ah, mas que merda!”.
Não bastante, o argumento da criação equivocada de um mito não pode se limitar às condições químicas ludibriadoras das conexões nervosas do cérebro. O fator sazonalidade também é preponderante no que tange o argumento. Sim, porque quando se passa a frequentar um local com mais assiduidade, tudo fica evidente, principalmente os defeitos. É como um namoro. Você encontra a gatinha apenas nos finais de semana. Sexta rola aquele cinema ou barzinho depois do trabalho. Sábado praia com almoço. Domingo, no máximo, um churrasco com amigos. Nem vou citar sexo. Depois retornam aos dias úteis à distância. Não é uma maravilha? Só que um dia se casam, passam a se ver todos os dias, inclusive nos que um dos dois não está disposto, motivo que antes, no namoro, era suficiente para suspender a programação. Mas agora que é tarde. Tudo que não conseguia ver em algumas horas, agora são esfregadas na sua cara sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia. Talvez isso faça sentido para mim porque sou um pessimista com casamento, mas a teoria é fundamentada para o caso em questão.
Enfim, o fato é que a Lapa é uma merda. Antro de mendigos e cracudos, frequentado por travestis, putas baratas e traficantes de merda que topam de tudo por qualquer dinheiro. Além de feder a mijo a qualquer hora do dia, o bairro, não necessariamente os profissionais citados. Não me falem sequer de Carnaval! O comércio local é decadente, exceto pelos bares. Não existe uma loja que não tenha prateleiras cheias de poeira com produtos velhos sendo vendidos por um funcionário no mais baixo patamar da carreira profissional, à beira de desistir e entrar para um dos personagens citados no início deste parágrafo. Os prédios são pombais frequentados também por tudo isso que já falei. Tanto que é aconselhável fazer um buraco na parede e na porta principal para passar uma corrente e prender com cadeado. Se as pessoas soubessem o que acontece por aqui, teriam medo de andar de chinelos. Ou sandálias rasteirinhas, como as gatinhas fazem na noite.
Eu sei que é muito amargor por minha parte, só estou vendo o lado ruim, mas, na essência, não há o que contrapor. Estou morando aqui tem seis meses e quero me matar. É sério. Cheguei aqui reconhecendo que era o fundo do poço para mim. Joguei todas as oportunidades que me deram fora. Destruí vínculos profissionais, afastei amigos, esmigalhei relacionamentos amorosos e me transformei em uma bomba relógio. Estou só, sem saúde, falido e tudo que tenho é um caderno que poderia me vangloriar dizendo que é de folhas recicladas, mas na realidade é um caderno velho de páginas amareladas que peguei em uma prateleira encardida de uma papelaria mequetrefe qualquer do bairro. Não tenho o que beber e fumar. Trepar atualmente é um verbo eticamente proibido no meu dicionário. Fui vítima da minha própria frase feita. Achei que estava no fundo do poço, mas sempre aparece um filho da puta para começar a cavar e achar um porão.
Saudades de comer língua, beber a minha cerveja favorita, desmaiar bêbado de vinho no sofá. Daria tudo para ter qualquer livro em minha estante, inclusive aquelas merdas que sempre odiei gratuitamente. Sinto falta de poder me dar ao luxo de tomar café na padaria, almoçar na esquina para não sujar louça (mentira, não sei cozinhar) e ficar andando impaciente pela casa ouvindo as ladainhas de sempre da minha mãe ao telefone. Queria ter minha ex-mulher aqui comigo, a única mulher que me conheceu na totalidade e ainda assim me amou de verdade. Tenho vontade de voltar no tempo, mas também tenho medo de acabar repetindo tudo igualmente. O que eu fiz? Vou te contar desde o princípio. Espere-me apenas atender o interfone, a única pessoa que ainda fala comigo chegou. E pelo tom de voz de quando me ligou, depois de hoje, nem mais ela terei por perto.
Continua em Recomeço

sábado, 14 de novembro de 2015

Recomeço

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- Porra!
Talvez não seja a resposta imediata esperada a uma campainha sendo tocada, mas foi espontâneo. Só podia ser uma pessoa, afinal apenas ela sabia que estava morando ali. O espanto foi porque poucos minutos atrás nos falamos ao telefone, dei o meu novo endereço e lá estava ela em tempo recorde. A curiosidade muitas das vezes é um grande motivador para certas ações.
- Você foi rápida – disse assim que abri apenas uma fresta da porta. – Pensei que estava na sua irmã.
- Eu estava. Peguei um taxi. Posso entrar?
- Taxi? Era só pegar o metrô. Você é burra?
- Estava com pressa e curiosa. Dá para me deixar entrar?
- Pressa? Você sabe que eu fiz um contrato de 30 meses, não sabe?
- Ah jura? Pensei que era de um dia e a casa se autodestruiria na manhã seguinte. POSSO ENTRAR NA MERDA DESTA SUA CASA SECRETA?
- Não sei se quero essa atitude deflorando os ares puros da minha nova residência.
- Ares puros? Você está aí não faz nem 24 horas e tenho certeza que já levou uma puta, vomitou na sala e peidou o quarto todo.
- Que horror você pensar isso de mim. Sabe bem que jamais peidaria no meu quarto – ela riu e eu também. – Enfim, qual a palavra mágica para entrar?
- IDIOTA!
- Não, não é essa, mas tem sorte que estou apertado.
Saí em direção ao banheiro deixando para que ela abrisse a porta e entrasse. Já de frente ao vaso escutei Tatiana espantada perguntando em voz alta se tinha alugado um apartamento ou um almoxarifado. Não podia condená-la, a sala era uma interminável pilha de caixas que por si só impressionava, mas ao lembrar que levei apenas minhas coisas de necessidade básica tornava-se uma cena exagerada. Se tivesse que incluir algo, seria a moto, que estava na rua obviamente.
- Ei, achei um sofá atrás das caixas – é, tinha um sofá na sala. – Ele está meio sujo.
O sofá veio com o apartamento, ou sempre existiu ali e construíram um prédio ao redor dele. O fato é que se tratava de um sofá muito velho que permiti que fosse deixado, caso contrário não teria onde dormir. Sim, foi uma decisão de desespero, inclusive depois de ouvir o porteiro Pereira dizer que, na época que o apartamento estava vazio, levou muita faxineira para trepar naquele sofá. Naquele momento optei por não imaginar a cena dele com outra pessoa suando e respingando fluidos corporais naquele estofado que um dia já foi bege e hoje é cinza. Assim como também escolhi não imaginar como um homem de 1,90 metro de altura como eu dormiria em um sofá de dois lugares. Como disse, foi uma decisão de desespero. Ou era o sofá, ou era o chão.
- Por que você trouxe um sofá velho imundo?
- Eu não trouxe, ele já estava aqui – respondi voltando para a sala e pulando nele. – Faz algo de útil na sua vida e pega uma água para mim.
Tatiana foi para a cozinha e, depois de alguns segundos de silêncio, gritou que não tinha geladeira. Não dei corda esperando os próximos gritos que aconteceram como esperava:
- NÃO TEM FOGÃO – ela gritou para depois repetir as duas constatações juntas. – Essa casa não tem geladeira, nem fogão.
- Você tem certeza?
- Bem, eu acho – ela respondeu ainda da cozinha.
- Quanto tempo a mais você precisa para confirmar isso em uma cozinha de 15 metros quadrados?
Tinha acabado de me mudar para um quarto-sala minúsculo. A sala tinha espaço para um sofá, uma pequena mesa para colocar um computador para trabalhar, um pequeno móvel para uma televisão e um armário de uma porta para meus livros, restando apenas ao centro um espaço para brincar apenas de guarda do Palácio de Buckingham, ou qualquer movimento me faria esbarrar em um dos itens móveis recém listados. A cozinha era menor ainda, sendo que sequer tinha área de serviço. Era tudo junto e apertado. Já imaginava com antecedência que, quando chegassem os eletrodomésticos, para abrir o forno, teria de colocar a máquina de lavar na sala e a geladeira na casa da vizinha. Ainda bem que não cozinho, logo o fogão vai servir apenas para fazer café e acender cigarro dos outros.
Tatiana concordou que a cozinha era de fato pequena e depois contemporizou dizendo que para um solteiro era mais que suficiente. De lá, ela voltou para a sala e foi para o quarto, de onde gritou que estava vazio. Claro que estava vazio. Se tivesse cama, não estaria deitado naquele sofá repleto de resíduos de terceiros. E se tivesse um armário, minhas roupas não estariam amontoadas em caixas.
- Então qual o sentido em um monte de caixas amontoadas aí na sala obstruindo a passagem e escondendo o sofá com tanto espaço aqui no quarto?
- Tanto espaço?
Não tinha como evitar, o quarto era pequeno em proporções minimalistas à sala. Com muito esforço e criatividade, colocarei uma cama de casal e um armário suficiente para a quantidade necessária de roupas para um cara sem vaidade que só usa jeans e camisas pretas.
- Tem razão – ela concordou. – Tanto foi espaço foi exagero. Mas me explique tudo amontoado aí na sala e espaço aqui.
A ideia era deixar o quarto vazio para pintar, depois levaria tudo para o quarto e pintava a sala. E isso enquanto os móveis não chegavam. Depois de explicado, ela se ofereceu para ajudar a pintar. Dispensei, afinal o rodapé era do mesmo material do piso frio, logo não precisava ser pintado.
- SENHOR – ela gritou, imaginei eu, do banheiro. – ISSO AQUI É MÍNIMO! É UM BANHEIRO DE PLAYMOBIL?
O banheiro era um detalhe à parte no quesito medidas ridículas daquela casa. Acredito que a privada estar posicionada exatamente de frente para a porta era uma solução logística para que a pessoa já entrasse de costas com as calças arriadas e bunda com a mira apontada. Não bastante, tinha um box que, em tamanhos e estética, parecia uma geladeira velha. Era impossível passar shampoo na cabeça sem bater com o cotovelo na torneira. Tampouco podia abrir a água com vontade, caso contrário ela passaria por cima da porta de acrílico (sim, sequer era um blindex) e inundaria rapidamente o pequeno banheiro.
- Me explica – ela disse assim que voltou para a sala, parando em frente ao sofá. – Por que um apartamento tão pequeno?
- Cadê a minha água?
- De onde vou tirar água? Da privada? Não tem geladeira aqui!
- Já pensou em pegar no filtro?
- Que filtro? Onde tem filtro?
- Vou te dar uma dica: começa com “tor” e termina com “neira da cozinha”.
Logo após me chamar de idiota, ela se virou de costas para mim e seguiu para cozinha. De lá, Tatiana gritou espantada com minha torneira abóbora que, segundo ela, era ridícula. Bem, naquele momento estava realizado porque ela reparou em todas as coisas bizarras da minha nova casa, poupando assim meu tempo.
- Não tem copo nessa casa – depois que ela me alertou que me lembrei que faltava esse item da lista das coisas bizarras: a casa não tinha louça ou talheres. – Como vou servir água?
Tatiana voltou para a sala e perguntou em qual caixa estavam os copos. Expliquei que em nenhuma. Nada de copos, pratos, talheres, panelas, potes ou qualquer objeto útil para a alimentação de um ser humano civilizado.
- E o que tem nessas caixas?
- Roupas e livros.
- Só?
- Pois é, foi o que consegui trazer. E, veja bem, quase que nem isso eu consigo.
- Céus! Para que tanta caixa então, se trouxe tão pouca coisa?
- Para brincar de forte e esconder esse sofá imundo.
A verdade era que eu tinha muitos livros e a minha ex-mulher não queria aqueles trambolhos ocupando espaço na casa dela. Por isso consegui trazer todos. O resto das caixas era ocupado com as minhas roupas que poderiam ter sido acomodadas em metade delas se eu fosse um mínimo cuidadoso ao organizar. Leia-se no lugar de organizar, jogar dentro das caixas.
- Ah sei lá – ela ainda queria divagar sobre as caixas. – Podiam estar com outras coisas.
- Tipo o que? Minha louça chinesa? Meu jogo de jantar francês? Minhas panelas profissionais de cerâmica?
- Seus pirus de borracha em diversos tamanhos e cores.
Tínhamos uma diferença de quase dez anos de idade e parecíamos duas crianças de onze anos conversando. Nossos diálogos eram rasos e comumente terminavam com ofensas gratuitas ao reto alheio. Ao olhar de outras pessoas, tínhamos uma relação nada saudável. Muitas das vezes, para quem era novo, ficava a sensação de que estávamos brigando. Não, nunca brigávamos, apenas implicávamos gratuitamente um com o outro da maneira mais covarde e fora dos padrões possível. Talvez as pessoas tivessem razão em dizer que não era algo saudável, mas nossa amizade se sustentava nisto e estava funcionando perfeitamente.
- Quando chegam as coisas?
- Que coisas?
- Como que coisas? Não percebe que estão faltando algumas coisas nesta casa? Tipo um porta-retrato, um recipiente para colocar a escova de dente – ela faz uma pausa, revira os olhos e prossegue. – A geladeira, idiota! Fogão! Cama! E um lança-chamas para incinerar esse nojo de sofá.
- Ah tá – apesar de não colar mais com ela, adorava me fazer de idiota. – Ainda não comprei.
- Como não comprou?
- Sei lá – dei com os ombros. – Estava sem saco. Precisava tirar as medidas das coisas, pesquisar preço e rever necessidades.
- Larga de ser idiota – ela foi até a cozinha e acenou para o vazio que lá existia. – Vai ficar vivendo como índio até quando? Essas coisas demoram a ser entregues. Quanto mais para tempo comprar, mais tempo sem isso.
Disse que não estava com saco de abrir computador e conectar com o celular, pois não tinha internet na casa ainda. Essa foi outra coisa que a levou à loucura, não ter contratado uma tv a cabo e internet. Eu disse que faríamos tudo isto outro dia, naquele dia não. Ela aceitou facilmente dizendo ser problema meu mesmo. Então se sentou no braço do sofá e, depois de um tempo me olhando com uma expressão pensativa, sapecou a pergunta:
- E como está a sua cabeça com a separação?
- Ai caralho! Pega o notebook naquela mochila preta. Vamos comprar as coisas.
- Vou pegar seu cu, se continuar desconversando. Jamais imaginaria que...
- Está com fome?
- O que? O que isto tem a ver com a história?
- Responde! Já almoçou?
- Não. Por quê?
- Vamos comer na rua. Lá conversamos.
Sempre consegui desconversar com a Tatiana, mas hoje dificilmente o faria. Estava à mesa uma quantidade de assuntos do interesse dela. Quando digo interesse, estou me referindo à curiosidade dela. A separação era um deles. Ela sempre apostou que terminaria a vida casado com a Maria Fernanda. Até eu imaginava isso no início, mas depois que o tempo foi passando, somente uma idiota otimista como ela poderia acreditar nisso.
Saindo do prédio, poucos passos depois tinha um restaurante com jeito de arrumado, espirito de pé sujo e preço dentro do meu orçamento. Estava sacramento que, na sua maioria das vezes, ali seria a minha cozinha. Sim, porque não sabia cozinhar sequer um ovo frito, logo almoço e janta ficariam sob a responsabilidade da Adriana, a simpática garçonete que me atenderia pela primeira vez naquele dia.
- Olá – Adriana estava de volta logo após nos deixar lendo o cardápio por alguns segundos. – Já escolheram?
- Eu vou querer a língua com purê – tomei a iniciativa dos pedidos. – E, para ela, preciso de uma carne de segunda mal passada que exija ser mastigada muitas vezes e assim evitar que fique falando.
- Idiota – a Tatiana me interrompe. – Eu quero o frango grelhado com fritas.
- Ok! Frango com fritas para ela. Eu continuo com a língua. É possível que seja servida a língua dela?
Adriana saiu rindo, mal sabia ela o que aturaria pelos próximos meses. Tatiana, depois de misturar risada com alguma ofensa a mim, voltou a tocar no assunto. Primeiro, afirmando que jamais esperava aquilo. Pois é, ela é bastante repetitiva. Depois perguntando o que disse quando saí de casa, o que ficou acordado, como a Maria Fernanda ficou e outras coisas. Para a sorte dela, pratos do cardápio demoraram muito para ficar prontos, então deu tempo de responder tudo no detalhe.
Era óbvio que poucas pessoas não ficaram surpresas com a notícia. Quase ninguém sabia do inferno que estavam sendo os dois últimos meses. A saída foi rápida para diminuir a dor. Comuniquei à Maria Fernanda que estava para sair de casa. Durante os três dias que dormi na sala por escolha, procurei apartamentos pela região, no quarto dia me mudei. Estávamos no quinta dia, ou primeiro oficial de separado. Nada foi acordado. Indiscutivelmente, a Maria Fernanda ficou na merda. Proibiu-me de cogitar levar qualquer coisa. Saí de casa com o básico como já dito. Confesso que não foi inesperado. Orgulho ferido misturado com ódio. Ela precisava me atingir de alguma forma. Claro que me fudeu com isso, mas não foi dessa forma que me atingiu.
- Como você está com isso tudo?
Não sabia responder. Era algo que já vinha se consolidando por tanto tempo que acabou sendo imperceptível. Era necessário. Eu precisava daquilo, mesmo sabendo que não queria. Precisava de espaço, de individualidade e de paz. As pressões eram cada vez maiores. Muitas dessas pressões eram naturais e esperadas em uma vida adulta de casado. Eu sei! Não ligava para elas. Cresci em uma vida apertada de merda. O que estava ficando cada vez mais intolerável era o ciúme pelas coisas erradas. Sim, diversas alunas sem noção de limites se ofereciam das diversas maneiras possíveis, mensagem pelo celular, redes sociais, festas do colégio etc. Não, nunca me relacionei com elas. Não com estas que davam pistas, balançavam bandeiras ou acendiam os holofotes sobre elas. Sempre fui maluco, mas nunca burro.
- Acha que a Juliana acabou influenciando nisso?
Juliana era uma aluna do terceiro ano do supletivo no colégio que lecionava na Pavuna. Tatiana sabia das intermináveis trocas de e-mails, olhares e carícias entre nós dois. Ela foi minha aluna por quatro anos, desde os 18 quando decidiu retomar e terminar os estudos. No primeiro dia que a vi, ela mexeu comigo. Séria, cabeça boa para idade dela e, para completar, linda. Seu sorriso era hipnotizador.
- Claro que não! Nunca ficamos. Nem selinho aconteceu.
- Nunca? E aquele monte de conversas que me mostrou? Os dois estavam tão apaixonadinhos.
- Pois é – talvez tivesse pesado muito na mão nas minhas mensagens na tentativa de envolver a Juliana, mas uma parte do que dizia era verdade, sim. – Ela nunca ficaria com um homem casado.
- Sempre fui fã dessa garota. Ela tem cabeça! Gostei dela de vez.
Claro que tinha gostado dela. A Tatiana pode ter vários defeitos, mas não posso dizer que ela não veste a camisa. Neste caso, ela veste a minha camisa. Aconteça o que acontecer, ela sempre está do meu lado. Era do fã clube da Maria Fernanda sem nunca ter a conhecido. Larguei a Fernanda, falei da Juliana, o slogam mudava para “Vai, Juliana!”. Bastaria não dar certo que ela a odiaria mesmo sem motivo. A retardada era muito fiel mesmo.
- E quando vão ficar então?
- Sem ser neste sábado, mas no outro, será a formatura dela. Fui convidado para a festa. Acho que vai ser lá.
- Lá? Na frente de pais e amigos? Você é louco?
- Sim, sim e sim.
- Por que não a chama antes para sair?
- Porque tenho coisas mais urgentes para resolver.
- Mais urgentes que ficar com a pivô da sua separação?
- Ela não foi pivô.
Não era justo jogar esta carga de responsabilidade nas costas da Juliana. Ela já era especial demais para mim naquele momento, mas estava longe ser a motivação. No lugar dela poderia ser qualquer outra. Podia inclusive não existir outra. O casamento estava inegavelmente fadado ao fracasso.
- Tá! E quais são as coisas mais urgentes?
- Contar para os meus pais...
- Eles não sabem?
- Sabem, mas não por mim.
Assim que a caminhonete que aluguei para levar aquele monte de caixas chegou, Fernanda foi para a rua para não presenciar o momento. Talvez entediada, desorientada ou em busca de consolo, ela ligou para minha mãe. Deve ter sido uma tragédia aquela ligação. Fernanda era tudo para minha mãe. Era Deus no céu e ela na Terra. Fazia tudo por ela, inclusive inventar dívidas inadmissíveis para realizar o sonho da Fernanda de se casar em uma igreja e ter uma recepção digna do evento. Elas se amavam desde o dia que as apresentei. Meu pai também tinha um carinho enorme por ela, além de depositar todas as suas fichas nela como solução para me colocar definitivamente nos eixos.
- Bem, o fato é que liguei rapidamente para minha mãe hoje e no sábado iremos almoçar. Daí, conversaremos com calma.
- Ok, seu sábado estará comprometido com seus pais. E nos outros dias? O que vai fazer de tão urgente para não poder antecipar o desastre de ficar com a Juliana pela primeira vez na formatura?
- Pintar apartamento, arrumar as coisas das caixas, comprar e receber móveis.
- Meu Deus, precisamos comprar os móveis.
Ótimo, consegui desconversar. Pedi a conta, agradeci à Adriana e saímos. Passamos na padaria antes para comprar umas cervejas para bebermos enquanto fazíamos as escolhas. Já em casa, com notebook ligado e conectado pelo celular, começamos a procurar em sites e escolher móveis e eletrodomésticos. Tatiana se meteu em todas as escolhas com comentários idiotas e sugestões escalafobéticas. Foi horroroso!
- Você é chata para caralho!
- A cala a boca ou não divido o sofá com você hoje e te coloco para dormir no chão.
- Você vai dormir aqui?
- Aham!
Foi terrível!
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