Fim de Ciclo (Cefet-RJ)
Aproximadamente
oito anos atrás, lá estava eu entrando na antiga coordenação do curso de
Administração Industrial no terceiro andar do Bloco E do Cefet. Logo na
entrada, um balcão enorme, um funcionário me dá boa tarde (lembro que era bem
perto de seis da tarde) e respondo que precisava falar com a professora Mirian.
Após ser chamada por ele, ela aparece. Por breves segundos, ela me analisa da
cabeça aos pés. Novo, em torno de 26 anos, All Star branco, uma calça de tecido
mole (sou péssimo para essas coisas) de cor cinza, camisa polo branca, barba
feita e cabelo curto com gel. Em suma, uma pessoa totalmente distinta do que
sou hoje.
Pela
imagem que tinha à sua frente, sua suposição de que se tratava de um aluno era
potencialmente correta. Perguntou no que podia me ajudar e respondi com a cara
de cretino que o tempo não muda e ainda tenho: “Não, eu estou aqui para te
ajudar!”. Ela deu um largo sorriso, já sabia quem eu era, e me convidou para
entrar. Ali se iniciava, quem diria, a minha, até hoje, mais longa experiência
profissional. Tanto no meio acadêmico, como no meio corporativo.
Supostamente,
como me foi apresentado, a necessidade da minha ajuda por lá era baseada na
total incapacidade de um professor em lidar com as turmas de Cálculo I e
Cálculo II do curso em questão. E isso era algo amplo, envolvia relações interpessoais,
montagem do curso, transmissão do conteúdo etc. Enfim, eles tinham um problema
que só poderia ser resolvido de duas maneiras: Ou trocava o professor, ou
assumia o risco fazendo a turma ter de aprender a lidar com tal excentricidade.
Escolheram a primeira.
Naquele
mesmo dia montamos uma nova ementa para as duas disciplinas. Foram tantos os
cortes que passou a ser imprescindível fornecer uma carga considerável de
exercícios para suprir a carga horária. Após isso, foi combinado de retornar no
dia seguinte para a primeira aula com a turma.
No dia
seguinte, no Auditório 4-H, iniciava efetivamente a experiência. Confesso que
não tive a menor maldade quando a Mirian disse que as aulas aconteceriam em um
auditório. De qualquer forma, maldando ou não, lá estava eu e exatos 117 (CENTO
E DESESSETE!!!) alunos. Este é um número que nunca mais esquecerei. Mesmo com
já alguma experiência em sala de aula, seja com turmas grandes ou pequenas, um
número como esse assusta. Com isso, no primeiro momento é inevitável ter a
vontade de ser Moises, levantar os braços, separar a turma em duas partes e
anunciar: “Turma da esquerda, estão todos aprovados! Podem sair! Turma da
direita, vocês aprenderão cálculo!”. Mas não era possível, então tive de,
literalmente, enfrentar os 117.
Naquela
primeira turma podíamos separá-los em calouros que tinham acabado de entrar no
curso (Cálculo I é uma disciplina do primeiro período) e repetentes. O grupo
que mais me preocupava era o dos repetentes. Alguns estavam fazendo aquela
disciplina pela terceira, quarta, quinta vez, e, convenhamos, independentemente
de ter sido com um professor adequado ou não, muitos estariam fazendo
novamente. O receio imediato era de que essa parcela de alunos se aproveitasse
da turma grande que, por consequência, teria um controle limitado por mim, e
utilizasse métodos escusos para conseguir a aprovação.
Enfim,
a solução para isso era mais simples do que se imaginava: Tocar o foda-se! Não
sou músico e nem tenho talentos musicais, mas se pudesse entrar para uma
orquestra, pediria sem pestanejar o Foda-se. Toco o Foda-se como ninguém.
Solos, arranjos sofisticados, improvisos, tudo bem fodido (literalmente).
Talvez este seja o meu charme que faça grande parte dos alunos gostar de mim.
O
curioso é que, mesmo estando em um ambiente novo, com características que
tendem a um cenário hostil, consegui me adaptar e sobreviver. Aliás, um pouco
acima do esperado. Aquele semestre transcorreu muito bem e, ao término, mesmo
com poucos meses de casa, deixava já registrada a minha marca: Facilidade no
relacionamento interpessoal com os alunos.
Nesses
oito anos, ou dezesseis semestres, podemos estimar uns 1.300 alunos nas sete
disciplinas diferentes que lecionei. Já tive de tudo, alunos excepcionalmente
bons, zebras falantes, psicopatas, doidos, picaretas, almas polacas de tão
puras e os dentro da média. Obviamente, o que se espera é que os extremos se
destaquem de alguma forma, conservando alguma lembrança, enquanto que os aparentemente
normais acabam sendo lembrados muito mais pela convivência.
Não vou
cometer a injustiça de falar pontualmente de alguns alunos, tão pouco de
turmas. Até mesmo porque nas vossas colações de grau já costumo falar sobre
cada um, sem exceção.
A primeira
coisa que fica clara quando se começa a dar aula por lá é que, apesar de ser em
uma graduação, todos serem maiores de idade e pleitearem um tratamento de
adulto, agem sempre como crianças perdidas esperando por algo na mão. É sempre
mais fácil perguntar aleatoriamente algo do que pegar as informações no sistema
ou procurar no mural do curso. A consequência imediata é um bando de alunos
vagando pelos corredores até achar a sala de aula e, como nos meus primeiros
anos por lá, as portas não tinham vidro, eles precisavam abrir. Era um inferno!
A cada dez minutos um aluno abria a porta, via o que estava acontecendo dentro
da sala e ia embora. Sabe aquela mania de que para espairecer um pouco a pessoa
vai até a cozinha e abre a porta da geladeira para pensar? Então, me sentia
como uma margarina na geladeira de um albergue para pessoas com problemas de
concentração.
Com o
tempo passaram a colocar vidros nas portas e, o curioso foi que, as pessoas que
antes tinha cara-de-pau suficiente para abrir a porta e interromper uma aula,
agora tinham vergonha de parar por cinco segundos para ver o que estava
acontecendo. Resultado, a cada cinco minutos era um aluno passando devagar pelo
corredor rente à porta, olhando para dentro da sala “de canto de olho” para
tentar identificar que aula era aquela. Como se não bastasse, para alguns
aquela “olhadela” não era suficiente para identificar, e, com isso, iam e
vinham algumas vezes, naquela velocidade bem lenta, encarando a sala. Era
aterrorizador! Parecia que tinha um serial
killer escolhendo a sua vítima.
Dentre
as diversas experiências que vivenciei, lá tive a oportunidade de conviver com
relativa frequência com duas irmãs gêmeas: Carolina e Vanessa. Sempre tive a
curiosidade sobre gêmeos. Acho assustador duas pessoas idênticas das quais,
você não consegue saber quem é quem. Algumas pessoas afirmavam que era possível
diferenciá-las. Para mim, eram idênticas e isso sempre revela aquela metáfora
de conhecer a pessoa sem saber de fato quem é. Isto é, de rosto, sei quem você é,
mas por dentro, não tenho tanta certeza. Agora imagine isso com gêmeos, troque
a personalidade pelo nome. Pronto, fica bem clara essa dualidade.
Ainda
sobre o mundo dos gêmeos, um dia, para saciar minha curiosidade, cogitei
colocá-las sentadas em locais opostos da sala para fazer prova. Daí, em
determinado momento de total concentração, beliscaria uma delas para ver se a
outra gritaria de dor. Sei que é bizarro, mas já ouvi tanta coisa sobre gêmeos.
Soube de uma mulher que, certa vez, teve uma longa crise de falta de ar com
momentos ofegantes. Depois descobriram que sua irmã gêmea, que morava em outro
estado, estava tendo uma intensa relação sexual naquela mesma hora. Ou o caso
dos irmãos gêmeos da Pavuna, os quais quando um tomava banho, o outro que ficava
limpo.
Nesta
jornada pude comprovar duas teorias minhas. A primeira, que o aluno tem pacto
com o diabo. Se existe uma pergunta que você não saberá responder, ele vai
fazer. Se você estiver em uma situação constrangedora, ele vai aparecer. Se ele
puder infernizar sua vida, ele o vai fazer.
A
segunda, de que as meninas amadurecem muito mais rápido que os meninos, e, por
consequência, ao final do curso, temos mais meninas que meninos se formando. Eu
mesmo posso me usar como exemplo, pois, assumidamente, tenho a maturidade
proporcional a de um garoto de 15 anos em uma loja de gibis. Ainda assim,
existem casos de evolução que merecem ser destacados. Um deles é o do Túlio, cujo
não me canso de falar, tanto para ele, quanto para os outros. Tulio entrou no
Cefet com a mentalidade de um adolescente fútil. Nada queria com a vida, tanto
que seu desempenho era uma prova disso. Hoje, 48 semestres depois, ele mudou
muito. Está responsável e focado para se formar e seguir a carreira. Tudo bem
que medindo com calma, talvez sua maturidade hoje bata com a de um guaxinim
apaixonado que saiba usar o Instagram, mas a reconhecida evolução precisa ser
dada.
Assim
como tenho orgulho de falar que participei do processo de amadurecimento do
Tulio, digo que tenho todas as fichas apostadas no João Otávio. Sei que vou
perder feio por apostar naquele lambari comprido, mas vou me divertir muito
enquanto isso pelo menos.
Em sala
de aula tive todos os tipos de experiências possíveis. As mais inusitadas
viraram histórias e aprendizado, as divertidas viraram lembranças, as tensas
viraram assunto de sessão de terapia e todas, mesmo beirando o clichê, foram
prazerosas.
Como
disse, minha facilidade de relacionamento interpessoal com os alunos sempre foi
uma vantagem. Ao mesmo tempo, foi um problema, pois algumas pessoas não
entendiam muito bem aquela cena de o professor no meio do bosque do Cefet
falando besteira como se fosse um deles. Para muitos dos medalhões ali
presentes, o professor universitário precisa ter um posicionamento
verticalizado e distanciado dos alunos. Aquilo que fazia era uma afronta e uma
aberração. Bem, para eles. Para mim era normal. Construí minha carreira em
colégio passando o recreio todo no pátio. Jogava bola com os alunos, ficava
ouvindo as lamentações das meninas, discutia seriados, filmes e desenhos
animados. Em suma, estava sempre no meio deles e sempre fiz questão de fazer
com que se sentissem relativamente próximos de mim. Obrigado a todos os alunos.
Do
outro lado da porta da sala de aula estavam alguns professores que tive o
prazer de conviver cujos merecem, pelo menos, um parágrafo. Não falarei da
Miriam por motivos óbvios (que é não parecer óbvio), tão pouco do Marcelo
Nogueira que me atura por 15 longos anos de amizade torturosa. Mas outros, sim,
precisam ser lembrados.
De todo
o corpo docente, dois professores, para mim, são monstros: Manhães e Teylor.
Ambos pela inconfundível capacidade de preparar uma aula, repassar o
conhecimento e, antes disto tudo, dominar o conteúdo. O que os diferencia entre
si está na personalidade deles.
Mario
Manhães tem aquele jeito tranquilo, algo bem sulista, uma fala mansa, quase uma
lábia. Quando se dá conta, ele já te ensinou uma grande carga de conteúdo e
ainda passou a mão na sua bunda sem que percebesse. Já o Teylor é ácido,
mordaz, está te sacaneando e você nem percebe. Talvez por isso ele viva nos
extremos. O lema dos alunos com ele é 8 ou 80, ame-o ou deixe-o. Mas isso é
compreensível quando, de um lado, temos com cara que por saber muito e ensinar
muito, pode cobrar muito e do outro, temos alunos que estudam pouco, se dedicam
pouco, mas querem reclamar muito.
Outros
professores tiveram influência mais na minha forma de pensar sobre as coisas e
refletir decisões. Foram praticamente orientadores profissionais e/ou pessoais.
Mauricio Castanheira, o qual é impossível não se apaixonar pelo seu perfil de
ursinho Pimpão. Na primeira vez que o vi tive vontade de colocá-lo na estante
do meu quarto. Só não o fiz porque ela já estava lotada com o Manoel, Henrique
e Laryssa. Ainda assim, tive o prazer de várias conversas com ele. Todas foram
pautadas com determinados assuntos e falamos outros completamente diferentes.
Beth entrou como o maestro da orquestra. Disse para que parasse de tocar o
Foda-se e começasse a tocar a Cautela. Confesso que esse novo instrumento é
complicado demais, mas tenho praticado bastante. Em tempo, nenhum dos dois
passou a mão na minha bunda.
Dentre
os professores cujos desenvolvi uma relação de coleguismo, o Fabio Simone é a
prova viva de que desenho animado pode virar realidade. Ele é a versão em carne
e osso do Charlie Brown e Linus em uma única pessoa. Já o Marcelo Maciel é o
cara ideal para os dias nos quais estiver cabisbaixo. Ele ri de todas as suas
piadas, fala que tudo dá certo e ainda te deixa comer os biscoitos do próprio
armário. Sobre mão na bunda, o Fabio não sabe ao certo se passou ou se
passaram, disse que depende, e o Maciel riu coçando a cabeça.
Mas de
todos, o que mais ganha a minha admiração reconhecida é o professor Silvino, cujo
sempre chamo de “Meu Herói”. Ele tem o perfil perfeito para os que querem uma
desculpa para colocar o burro na sombra e ficar como inútil. Mesmo assim,
continua dando aulas e participando ativamente de seus projetos de caráter de
responsabilidade social e ambiental. Seu engajamento é tamanho que para
conseguir um ponto nas suas disciplinas basta levar 10 latinhas de alumínio
para reciclagem, levando uma garrafa pet com óleo de cozinha usado, você ganha
dois pontos, e, para aprovação definitiva, basta levar um moleque da
cracolândia ou um índio do Maracanã para casa.
Por
fim, só tenho a agradecer a todos por tudo. Por terem me recebido de portas
abertas, dado um tratamento igualitário e criado condições para que pudesse
fazer o meu melhor. Sei que nos veremos por aí e espero que isto aconteça.