segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Silêncio

Idiota, hormonal e clichê

É aquela cena que todos já conhecemos. Duas amigas que há muito não se viam passam pela a mesma calçada. Uma está alterada por hormônios e distraída olhando para o celular, a outra é apenas uma idiota:
- Vera? VERA!
- Oi? Rebeca! Quanto tempo!
O clichê continuou. Dois beijinhos, uma mão apoiada levemente no ombro da outra, sorrisos e uma ajeitada de franja para melhorar o visual. O papo seguiu:
- Garota, você está grávida!
- É, está parecendo!
- Parecendo nada! Você está gravidíssima. Que barriga enorme!
- Não é? Imagine que constrangedor seria se não estivesse.
- Impossível! Ela está enorme! Redondinha! Muito grande mesmo!
- Sim, muito grande mesmo! E o bom é que nós, grávidas, quase não temos problemas com a autoimagem.
- Ah, pare de ser boba, garota! Está linda! Deve estar para nascer em breve, né?
- Na realidade, estou com apenas três meses, mas obrigada ainda assim.
- Apenas três? E deste tamanho?
- Sim, apenas três. Agora não sei se devo rever meu calendário ou meu espelho.
- Não, deixe de bobagem, menina. Algumas grávidas ganham mais barriga para o desenvolvimento do feto. É apenas um?
- Sim, apenas um e acho melhor mudarmos de assunto antes que insinue que é um rinoceronte.
Rebeca ficou rindo de nervoso e cobrindo os olhos. Vera ficou parada com cara de quem está com fome, mas o cara na fila do bufê à sua frente demora muito além de ainda estar na parte das saladas.
- Por falar nisso, você já sabe o que é?
- Então – Vera fez uma pausa, respirou e prosseguiu. – No início eu achava que era uma samambaia, mas fiz uns exames e confirmou que era uma criança mesmo. O que não teria problema se fosse uma samambaia. Iria amá-la da mesma forma. Regar, passar pente fino para tirar piolhos, digo lagartas, essas coisas de sempre.
- Pare de ser boba. Você entendeu o que quis dizer. É maneira de perguntar sobre o sexo.
- O sexo foi mais ou menos. Eu e o Bê estávamos bêbados. Espero que isso não comprometa a criança, né?
- Você não muda mesmo. Continua a mesma – Rebeca permaneceu com a risada descontrolada, sem perceber que era a melhor oportunidade para fingir um desmaio. – Você já fez o exame para saber se é menino ou menina?
- Decidimos que não iremos fazer isso. Vamos descobrir na hora mesmo.
- E isso não é arriscado?
- A ciência avançou muito, então imagino que o índice de mortalidade no parto por desconhecer o sexo deve ter reduzido drasticamente.
- Ai, Vera – mais risinhos. – Você está impossível hoje!
- É, eu estou – ela fez uma pausa dramática. – Eu estou impossível mesmo.
- Falo do risco de nascer sem saber o sexo. Não acha perigoso?
- Não, normalmente, ao nascer, o médico, dentro de todo conhecimento por ele adquirido em anos de faculdade, sacramenta que é um menino ao ver um pinto. Se tiver uma xereca, dirá que é uma menina. Ainda assim, em caso de dúvidas, tenho um amigo veterinário que faz testes para a sexualidade de periquitos, então deste risco não correremos.
- Se falar grosso também, né?
- Rebeca, recém-nascido não fala.
Rebeca reagiu de forma séria ao comentário de Vera sem perceber que foi apenas sarcasmo. Ela gesticulou, gaguejou, para depois insistir no mesmo assunto e linha de raciocínio.
- Estou falando do quarto, da decoração, das coisas. Como ficaria se só depois de nascido você descobrir o sexo? Não vai ter que mudar muito?
- Bem, estava preocupada antes de descobrir que era uma criança. Por que antes, né? Não sabia se comprava um berço, um xaxim ou uma jaulinha. Agora que sei que se trata de um ser humano bebê, ficou muito mais fácil ajeitar o quarto. Berço, aquela cômoda que trocamos as fraldas em cima, brinquedos e chão macio.
- Mas e o problema das cores?
- Ah Rebeca, se ele for daltônico, terá o meu amor mesmo assim.
- Você tirou o dia para implicar comigo, não foi?
- É, acho que foi isso mesmo, Vera.
Rebeca assimilou o comentário, refletiu e percebeu que estava pegando pesado. Talvez se tentasse ser um pouco menos reativa às perguntas idiotas de Vera fosse algo mais justo. Ela então recuou na sua postura e se explicou:
- Vera, me desculpe. São muitos hormônios na minha cabeça. Não sei mais como agir e reagir. É como se fosse uma montanha-russa em altíssima velocidade sem fim. São oscilações intermináveis. EU ODEIO, EU ADORO, ESTOU TRISTE, ESTOU FELIZ, VAMOS DE NOVO! Não sei mais o que fazer – disse a Rebeca antes de se debulhar em lágrimas. – Eu não sei mais o que fazer. Eu não sei se vou aguentar.
- Calma, amiga – falou a Vera abraçando a Rebeca. – Isso vai passar. Depois do parto, acaba isso tudo.
- Você promete?
- Claro que prometo. Com o parto, acaba a gravidez, logo acabam as bombas de hormônios que seu corpo está soltando com frequência.
- Ai, tomara.
- Sim, pode ficar tranquila. E, mesmo continuando, você nem notaria.
- Por que eu estaria calejada?
- Não – Vera se afastou, enxugou umas lágrimas no rosto de Rebeca e prosseguiu. – Você teria uma criança chorando sem parar. Praticamente uma máquina de fazer cocô infinito que vai sugar seus peitos até não poder mais, deixando os bicos doloridos e murchos. Sem falar da sua barriga e bunda que nunca mais serão as mesmas. E tem as olheiras! Ah, as olheiras! Você não terá noites tranquilas, pois ela vai acordar aos berros duas, três, quatro vezes na madrugada para mais cocô, mais peito, dor de ouvido, cólicas ou apenas pelo prazer sádico de te acordar. E tudo isso sem a ajuda do Bê que estará sempre jogado no sofá vendo tevê ou desmaiado babando na cama. Então, acredite, amiga, continuando a festa dos hormônios, isso será pinto e nem te incomodará.
- Vera, você é uma idiota!


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