sábado, 23 de abril de 2016

Pedaços de uma vida encenada

Um para lá, dois para cá
Casa noturna com pouca iluminação direta. Balcão de bebidas, uma mulher encostada nele se distrai com o cardápio de drinks. Um homem para ao seu lado.
[Henrique] Boa noite!
[Vanessa] Boa noite!
[Henrique] Se incomoda se fizer uma cena clichê de cinema da década de 50?
[Vanessa] Hum... O que seria isso?
[Henrique] Oferecer para você uma bebida.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] É tão cafona assim?
[Vanessa] Não, não é. Foi divertido mesmo o que disse. E se eu quisesse algo década de 40? O que receberia?
[Henrique] Provavelmente ofereceria para acender sua cigarrilha.
[Vanessa] Ah é? Que pena. Eu não fumo. Então vamos para a década de 30. O que teria para mim?
[Henrique] Neste caso, só me restaria me comunicar com você em linguagem de mímico ou me oferecer para ganhar um balde de água na cabeça.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Por favor, volte à década de 50. Por favor.
[Vanessa] Ok, década de 50. Pode me pagar uma bebida.
[Henrique] O que você achou interessante aí do cardápio? Bebidinhas divertidas com chapeuzinhos? Drinks coloridinhos?
[Vanessa] O que você vai beber?
[Henrique] Bem, como sou um homem simples, de gostos rústicos e hábitos populares...
[Vanessa] Gostos rústicos? Você vai pedir uma dose de água de cachoeira? Ou vamos cortar um pedaço de cactos e beber seu néctar?
[Henrique] Tem essa opção aqui? Prevejo uma ótima noite.
[Vanessa] Bobo.
[Henrique] Muito precoce para iniciar os elogios, não?
[Vanessa] Muito... Bobo.
[Henrique] Ok, já entendi seu ponto de vista. Bem, vou pedir uma cerveja. E você?
[Vanessa] Está bem, eu te acompanho na cerveja.
[Henrique] Tem certeza? Esta é a chance de pedir alto. Depois de pedir uma cerveja no primeiro encontro, não tem como elevar mais o padrão nos seguintes.
[Vanessa] Isto não é um encontro.
[Henrique] Baby, o que te disse sobre não discutirmos a relação em público?
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Enfim, é a última chance de subir o valor de mercado... Peraí... Isso soou péssimo. Estou dizendo do valor dos seus gostos.
[Vanessa] Você é péssimo.
[Henrique] Já pedi para diminuir com os elogios.
[Vanessa] Ah, você não viu metade. E pode ficar tranquilo, sou uma mulher fácil de se agradar. Mas não se empolgue com isso porque...
[Henrique] Nem mais uma palavra... Rapaz! Tudo bem? Duas cervejas, por favor, enquanto a gata aqui do lado dispara mais um elogio para mim... Obrigado. Estava dizendo?
[Vanessa] Dizia que você é péssimo e que isto não é um encontro.
[Henrique] Tá bom! Vou respeitar seu ponto de vista. Como prefere chamar?
[Vanessa] Duas pessoas bebendo cerveja e conversando de maneira descontraída por um curto tempo.
[Henrique] Curto tempo? Como assim? Já vai me deixar? Não acredito. O que está acontecendo? Bem que notei que ultimamente andava fria e distante comigo. É aquele cara da contabilidade que fica te cercando na hora do almoço? Pode falar. Não, não diga. Não sou capaz de lidar com isso. Vamos focar em nós dois. Vamos salvar este relacionamento. Uma viagem no fim de semana. Vamos para a serra. Serra, frio, lareira, edredom, fondue, vinho. Faremos nosso primeiro filho e dessa vez deixo você escolher o nome. Mesmo se insistir em colocar Henrique.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] É, eu sei que ouvindo em voz alta Henrique é um nome horrível. Todo Henrique um dia já foi uma criança gordinha com tetinhas.
[Vanessa] Você é horroroso. E o pior é que já conheci um Henrique que era gordinho na infância.
[Henrique] Todos são. Todos.
[Vanessa] Enfim... Apesar de toda a sua loucura, até que gostei da proposta da serra. Exceto a ideia de ter filhos que não me agrada nem um pouco.
[Henrique] Ok, sem filhos. Vamos criar gatos. Doze gatos. Gatos pedem nomes eruditos. Colocaremos nomes de autores neles: Hemingway, Veríssimo, Dostoievski, Neruda, Clarice...
[Vanessa] Para, homem! [RISOS] Pare! Se controle.
[Henrique] Tudo bem... Parei...
[Vanessa] Muito bem. Apesar de você ficar mais interessante falando compulsivamente.
[Henrique] Ahá! Eu sabia...
[Vanessa] Pare! Deixe-me falar.
[Henrique] Quietinho.
[Vanessa] Como dizia, somos duas pessoas bebendo cerveja e conversando de maneira descontraída por um curto tempo. Já, já, minha companhia chega.
[Henrique] Ahn... Você é comprometida.
[Vanessa] Não diria comprometida.
[Henrique] Opa!
[Vanessa] Não se anime. Como disse, é minha companhia. Estamos nos conhecendo.
[Henrique] Conhecendo? Então estão no... Sei lá... Terceiro encontro?
[Vanessa] Segundo.
[Henrique] Ahá! Até o fim do segundo encontro tudo pode ser cancelado sem prejuízo para o solicitante. Isto é uma cláusula universal das regras básicas de relacionamento a dois. Pode ler nos termos de compromisso do Tinder. Está lá. Não que eu tenha o Tinder. Apenas soube por um amigo de uma prima que comentou em uma rede social algo do tipo.
[Vanessa] Não vai ter cancelamento algum. Eu já disse que estamos nos conhecendo.
[Henrique] Para quê? Nessa nossa conversa você já me conhece mais do que ele. Sabe que curto serra, frio, edredom e fondue. Descobriu também que sempre queimo a língua na parte do queijo e sujo a camisa com o chocolate.
[Vanessa] Não sei, não!
[Henrique] Bem, é bom saber porque te farei passar vergonha. Sempre uma lambança generalizada.
[Vanessa] Que horror! Bem... Eu também sou bastante desastrada.
[Henrique] Deixe-me adivinhar. Estabanada, esbarra em tudo, vive cheia de roxos misteriosos pelas pernas e evita entrar em loja de taças de cristais.
[Vanessa] MEU DEUS! Como sabe?
[Henrique] Essa frase é quase uma previsão de horóscopo, se adequa a quase todas as mulheres.
[Vanessa] Quase todas?
[Henrique] Sim, quase todas, exceto pelas que não acreditam nisso. Só que como elas não vão ler mesmo, então podemos dizer que se adequa a todas que leem.
[Vanessa] Que terrível. Faz sentido, mas é terrível.
[Henrique] Bem, posso pedir outras duas cervejas enquanto liga para o rapaz cancelando o encontro?
[Vanessa] Não vai ter cancelamento.
[Henrique] Você às vezes é muito turrona, sabia? Rapaz, mais duas cervejas, por favor. E dessa vez, traga aquela te paguei para dissolver sonífero.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Aqui está. Um brinde ao nosso primeiro encontro!
[Vanessa] Um brinde à minha advogada que vai ter de dar entrada no pedido de uma medida cautelar contra você na segunda bem cedo.
[Henrique] QUE HORROR!
[Vanessa] Como que horror? Você me parece muito maluco e mal te conheço.
[Henrique] Como mal me conhece? E tudo que já sabe de mim?
[Vanessa] Eu sequer sei seu nome.
[Henrique] Hum... Ok... Deixe-me apresentar. Meu nome é Henrique.
[Vanessa] Você está me zoando?
[Henrique] Não mesmo.
[Vanessa] Céus, você era uma criança gordinha com tetinhas.
[Henrique] Você tinha me prometido no nosso primeiro encontro nunca fazer bullying da minha infância.
[Vanessa] Foi mais forte do que eu. Meu nome é Vanessa.
[Henrique] Vanessa com W?
[Vanessa] Não, com V mesmo.
[Henrique] Um N ou dois?
[Vanessa] UM! Quem tem dois no nome?
[Henrique] Ah, não duvide da criatividade de mães que precisam muito afirmar no nome dos filhos o quanto eles são especiais. Obviamente com o tempo eles vão descobrindo que o nome acaba virando uma maldição. Poucas pessoas vão escrevê-lo corretamente. Nas lojas de lembranças raramente terão quinquilharias com os nomes gravados exatamente como gostariam que fosse. Sem falar do risco de se juntarem com outra pessoa com um nome tão exótico quanto e acabarem formando um casal cujo nome parece uma reação química.
[Vanessa] Você é inacreditável.
[Henrique] Inacreditável do tipo ótimo que dá vontade de agarrar no meio da rua e torcer para chover ao mesmo tempo? Ou inacreditável por visivelmente possuir transtornos psicológicos que colocam em risco membros da sociedade analisada, diagnosticada e tratada?
[Vanessa] Eu ia falar inacreditável do tipo enxergar tudo de maneira desastrosa. Mas já que falou em transtornos...
[Henrique] Ora, para quê prosseguir? Vamos continuar apenas com a sua tese da minha realidade míope. Segundo encontro então? Quando foi o primeiro?
[Vanessa] Semana passada. Aqui mesmo.
[Henrique] Frequenta muito este local?
[Vanessa] Não era muito de sair até um ano atrás. Depois que me divorciei voltei para a vida noturna e virei um pouco figurinha marcada aqui. E você?
[Henrique] Eu?
[Vanessa] Sim, você! Você frequenta muito este lugar?
[Henrique] Ah sim. Antes e depois do seu divórcio.
[Vanessa] Jura? E nunca nos esbarramos?
[Henrique] Na verdade, eu tinha te notado semanada passada. Te achei muito interessante, mas como estava acompanhada... Quero dizer... Estava conversando com um rapaz que provavelmente é o que você vai dar um pé na bunda hoje...
[Vanessa] PARA!
[Henrique] Ok. Como dizia, tudo verdade. Só que não iria interromper a sua conversa.
[Vanessa] Olha, a sua personalidade tagarela descontrolado é bastante divertida, mas mentiroso cara-de-pau para me agradar não cola.
[Henrique] Saia preta curta, uma blusa de tecido mole em uma cor meio cinza com brilho e seu penteado era uma trança.
[Vanessa] Meu... Pai... Do... Céu! Você é mesmo um psicopata Serial Killer.
[Henrique] Ah pare com isso! Foi fofo.
[Vanessa] Foi assustador!
[Henrique] Não vou falar mais coisa alguma.
[Vanessa] Por que? Acha que consegue ficar pior que isso?
[Henrique] Meus gostos. Você jamais entenderia.
[Vanessa] MEU DEUS! VOCÊ LEU 50 TONS DE CINZA!
[Henrique] Ah para! Foi uma referência boa e apropriada para a deixa. Vai! Dá um desconto. Fui sagaz.
[Vanessa] Tá, vou dar o braço a torcer. Foi bem rápido mesmo. Agora disfarce que ele está chegando.
[Henrique] Qual o nome dele?
[Vanessa] Ahn?
[Henrique] O nome! Qual é?
[Vanessa] Por que quer saber?
[Henrique] Mas que raios de mulher teimosa. Nem quero imaginar quando estivermos com setenta anos morando em Iguaba. Fale o nome dele.
[Vanessa] Você é doido! César! O nome é César.
Um homem se aproxima e Henrique toma a frente de Vanessa.
[Henrique] César! Ainda bem que você chegou. A Vanessa não para de falar de você. Só que preciso te pedir uma coisa...
[Vanessa] Não vai pedir coisa alguma. Oi, Cesar. É o seguinte... Este é o Henrique. Ele é ex-namorado de uma prima minha. Não sei se comentei deles para você. Relação conturbada. Vai e volta. Terminam, fazem as pazes, brigam novamente. Enfim... Aquela coisa chata de sempre. Esbarrei com o Henrique aqui e ele começou a lamentar as pitangas comigo.
[Henrique] Muito triste.
[Vanessa] Fica quieto. Ele fica nervoso quando o assunto é minha prima e fala compulsivamente. Ele a ama demais.
[Henrique] Demais.
[Vanessa] É, ele ama a minha prima.
[Henrique] Eu amo a Jenifer.
[Vanessa] Quem?
[Henrique] Jenifer, sua prima.
[Vanessa] É, ele ama a minha prima Jenifer.
[Henrique] E não é Jenifer com apenas um N e um F, não. São dois.
[Vanessa] Exato, ela mesma. Posso continuar?
[Henrique] Pode. Foi só para ele se situar melhor na história. Amo a prima Jenifer, irmã de Jeferson.
[Vanessa] Pois é, irmã de Jeferson que se não me engano deve ter até um W no final do nome.
[Henrique] EXATO!
[Vanessa] Então, César. Desculpe-me por esse papo maluco, mas estou apenas te explicando a conversa aqui com ele. Tem como esperar uns dez minutos lá na área externa e já saio. Só vou tentar colocar a cabeça desse rapaz em ordem.
[Henrique] Obrigado, César. Juro que não vou ocupar muito o tempo dela...
César saindo de cena.
[Henrique] Não vou ocupar muito tempo, não. Vou ocupar minha vida com você, sua doida. Esse foi o pé na bunda mais sutil e discreto que já vi na vida. Como não te amar?
[Vanessa] Pare de se achar. Não foi um pé na bunda de ninguém. Apenas ganhei mais dez minutos.
[Henrique] Com dez minutos dá tempo de irmos a algum cartório 24 horas e nos casarmos. Se aqui fosse Vegas, nos casaríamos com um padre Elvis e Storm Troopers como testemunhas.
[Vanessa] Pare, homem. Não é nada disso. Estou apenas curiosa sobre o que viu na sexta passada.
[Henrique] Ah sua danadinha! Você quer que eu massageie um pouco seu ego para depois se agarrar com aquele almofadinha que pelo corte de cabelo deve dormir de rede na cabeça? É isso mesmo? Pois saiba que ainda bem que tenho uma combinação de baixa auto-estima como inocência de uma chinchila e, só por isso, farei o que está pedindo.
[Vanessa] Cara, você fala muito para quem tem apenas dez minutos em jogo.
[Henrique] Temos algo em jogo? Parece que as coisas agora ficaram interessante para o meu lado, não é mesmo?
[Vanessa] Homem de Deus, você é a versão humana do coelho da Alíce no País das Maravilhas.
[Henrique] Olhas os elogios voltando para...
[Vanessa] FALA!
[Henrique] Ok... Você estava de saia...
[Vanessa] Eu sei como estava vestida. Quero saber da sua impressão.
[Henrique] Ahn... Você estava linda. Estava estonteante. Naquele dia, sim, você poderia e teria todo o direito de me achar um Serial Killer. Acho que fiquei uns dez minutos te admirando. Com um detalhe, fiquei te admirando conversando com outro cara. Daí quando cheguei aqui hoje... Bem, estava despretensioso... Aí te vi no balcão e nem pensei na possibilidade de estar acompanhada do tal cara. Respirei fundo e apareci. Então... Cá estou...
[Vanessa] Acho que é a primeira vez que fala mais de uma frase em sequência sem me irritar.
[Henrique] Ora, sua fofa. Bem, parece que sobrevivi a você então. Além disso, você ganhou o tal elogio que queria ouvir. É neste momento que você faz um elogio que soará mais como um eufemismo para mim e irá embora?
[Vanessa] Você ainda tem mais cinco minutos e quero outro elogio.
[Henrique] Outro?
[Vanessa] Sim, você me elogiou pelo que viu na semana passada. Quero algo de hoje.
[Henrique] Vanessa, não sei onde está querendo ir com essa conversa, mas não se esqueça que sou uma pessoa um pouco descontroladamente articulada.
[Vanessa] Quatro minutos.
[Henrique] Você está tão linda como se fosse a primeira vez, mesmo parecendo hoje uma mulher completamente diferente da semana passada.
[Vanessa] Ahn? Como assim?
[Henrique] Bem, basicamente na semana passada você estava uma mulher da noite. Sua saia curta e blusa com brilho chamavam atenção igualmente à maioria das mulheres solteiras por aqui. Hoje, com esta calça e uma blusa social em cor clara, você está mais discreta. É como se na semana passada você estivesse vestida para curtir e badalar. Já hoje está parecendo namoradinha de relacionamento estagnado. Ou alguém indo para festa de criança sem pais divorciados interessantes.
[Vanessa] Que horror! Não acredito que gastou seus últimos minutos falando esta besteira tão grande.
[Henrique] Acabou o tempo?
[Vanessa] Sim, acabou. Passar bem, Henrique.
[Henrique] Peraí! Não saia daí. Eu tenho direito a uma apelação.
Henrique se afasta, vai até uma porta que dá acesso à área externa e grita:
[Henrique] CESAR! AQUI! NÃO! PODE FICAR MAIS UM POUCO AÍ. PRECISAMOS DE MAIS DEZ MINUTOS. NÃO VAI ACREDITAR. A VANESSA ESTÁ LIGANDO PARA A MÃE DA JENIFER PARA TENTAR COMOVÊ-LA A ME AJUDAR. QUEM DIRIA? ELA ESTÁ LIGANDO PARA A DONA STEPHANIE. MAL QUEIRA SABER COMO SE ESCREVE.
Henrique volta para Vanessa.
[Vanessa] Você é inacreditável. Não bastante tudo, ainda difama minha família imaginária.
[Henrique] Pois é, eu te avisei antes. Deixe-me refazer a minha colocação. Note que não vou mudar o sentido do que disse, talvez explicar melhor a minha intenção. Semana passada... Vanessa da semana passada. Mulher produzida para a balada. O que eu vi ali? Mulher descontraída que antes de qualquer coisa está procurando diversão. Uma mulher que não se preocupa como a noite vai terminar. Hoje. Vanessa de hoje. Contida, discreta e tentando passar despercebida pela casa. E tem um detalhe. Está no segundo encontro. Quer mostrar que não é apenas baladeira, mas tranquila. Mulher para namorar. Aposto que seu ex-marido não curtia sair.
[Vanessa] Hum... Entendi seu ponto de vista... Talvez seja meu subconsciente me pregando uma peça. De fato, quando casada, raramente saíamos para vida noturna. Ele tinha um péssimo hábito de levar os amigos para ficar jogando videogame lá em casa e eu passava a noite na varanda com as esposas bebendo prosecco e tentando rir das mesmas histórias de sempre. Depois de quase um ano divorciada e dando oportunidade para vários caras que confundem as coisas achando que mulher na noite é só para a noite, acho que me sabotei. Conheci um cara legal e...
[Henrique] Sou eu!
[Vanessa] Cala a boca! Conheci um cara legal que não estava cheio de pressa e parecia querer dar uma chance maior a coisa e o que faço? Me visto como a antiga Vanessa caseira. Que ódio! Qual o problema de vocês?
[Henrique] Vocês quem, Fraulein Maria?
[Vanessa] Quem?
[Henrique] Fraulein Maria! Noviça Rebelde! Suas roupas. Você recatada.
[Vanessa] Ah não pesquei. Enfim, estou falando de vocês homens que não nos levam a sério, confundem tudo e nos deixam assim como baratas tontas.
[Henrique] Novamente... Vocês quem? Eu não faço isso. Quero dizer... Eu levo vocês a sério. Não faço o tal negócio de confundir a cabeça de vocês. O que precisa estar bem definido dentro de você é qual Vanessa você quer ser. Hoje estou lidando com as duas ao mesmo tempo. Esteticamente, na minha frente está a mocinha da varanda. Já na interação está a Vanessa baladeira, capaz de ficar um bom tempo conversando com um total estranho... Estranho nos dois sentidos, não precisa falar... Fica conversando com um total estranho ao ponto de dispensar, mesmo por alguns minutos, o encontro que tinha marcado.
[Vanessa] E qual você prefere?
[Henrique] Faz diferença?
[Vanessa] Para mim, sim.
[Henrique] Consegui ter importância para você.
[Vanessa] A sua opinião tem.
[Henrique] Você sabe ser cruel, não é mesmo?
[Vanessa] Você não viu nada. Jamais entenderia meus gostos.
[Henrique] Sua cafona! Uma mulher vestida assim jamais leria 50 Tons de Cinza.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Bem... O que importa para mim é a interação.
[Vanessa] Não, quero saber dos trajes.
[Henrique] Eu prefiro você sem eles.
[Vanessa] Estava indo tão bem que diria que ia conseguir isso.
[Henrique] Peraí... Deixe-me consertar mais uma vez... Isso não é justo. Eu sou ansioso.
[Vanessa] Confessa. Seja honesto. Vamos. Se, na semana passada, eu estivesse vestida assim, jamais chamaria sua atenção.
[Henrique] Claro que não! Digo... Como discordo do que disse?
[Vanessa] Dizendo que sim.
[Henrique] Discordo com um sim?
[Vanessa] Sério que acha que vai me conseguir ver nua assim?
[Henrique] NÃO! Digo... Ok... Serei sincero. Só reparei na sua roupa semanada passada bem depois de quando te vi. O que me chamou a atenção foi seu sorriso. E que inveja daquele maldito almofadinha bananão aceitando esperar passivamente lá fora que te provocou um sorriso tão lindo.
[Vanessa] Meu senhor! O César!
[Henrique] Ah agora você vai esperar. Prometo que serei rápido. Vou começar citando na íntegra a passagem de Dante e Virgílio pelo primeiro círculo do inferno em A Divina Comédia.
[Vanessa] Fala logo, homem. Pare com essa baboseira de referências que você já me ganhou com a proposta da serra com fondue.
[Henrique] Sério?
[Vanessa] FALA!
[Henrique] Eu já entendi o ponto da sua curiosidade. Você quer saber com qual das duas vestes de Vanessa eu me interessaria para namorar, correto?
[Vanessa] Exato!
[Henrique] Nenhuma das duas.
[Vanessa] Ah, e você é o cara que não gosta de confundir as cabeças e que leva as mulheres a sério? Ficou com meu suposto sorriso lindo na cabeça e veio puxar assunto apenas para tentar me pegar. Depois iria me descartar no meio da madrugada, né? Eu já devia desconfiar. Eu conheço seu tipinho.
[Henrique] Meu tipinho?
[Vanessa] Sim, seu tipinho. Você não me engana. Devia ter desconfiado quando disse que sempre frequentou isso aqui. Solteirão convicto. Vem com essa fala cheia de veneno, amolece o coração das mulheres, usa e vai embora. Eu não estou tão afiada quanto gostaria, mas esse ano solteira, passando o que passei, consegui ficar um pouco ligada com pessoas como você. Estou mais arisca e capaz de me defender da tática de caça.
[Henrique] Tática de caça?
[Vanessa] Isso! Tática de caça. Esse método que usam para cantar a mulherada.
[Henrique] Eu, honestamente, nunca pensei assim. Sempre enxerguei como uma dança. Minha mãe dizia que na época dela, na época dos grandes bailes, os rapazes mais namoradeiros... Termos dela... Os rapazes mais namoradeiros eram os que sabiam dançar. Tiravam as mocinhas para a pista e mais da metade do trabalho estava feito. Eu nunca soube dançar. Então a conversa virou a minha dança. Tiro as mulheres para dançar e, tentando ditar o ritmo, as conduzo para meu habitat natural, a conversa furada que cerca e envolve. Não vou mentir, sou treinado pelos clássicos. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Harry & Sally. MASH.
[Vanessa] MASH?
[Henrique] É, MASH é necessário para afiar o diálogo de cinismo. Como dizia... Faço isso mesmo, mas porque estou interessado na pessoa. Essa história de transformar mulher em descartável é coisa da sua cabeça. Eu nunca fui solteiro a vida toda. Fui casado por quase sete anos. Nem por isso paramos de frequentar a noite. Éramos um casal da noite. Acabou, não deu certo, mas continuamos pessoas da noite. Ela com a vida dela e eu com a minha. Só que isso não implica necessariamente que queremos ficar solteiros para sempre para curtir a noite. Eu curtia a noite acompanhado e sei perfeitamente fazer isso.
[Vanessa] E por que não está então?
[Henrique] Não está o quê?
[Vanessa] Acompanhado.
[Henrique] Porque não encontrei uma pessoa que quisesse entrar nessa vida comigo.
[Vanessa] Ora, se é só isso, por que respondeu nenhuma das duas? Deveria ter respondido que prefere a Vanessa da semana passada.
[Henrique] Respondi nenhuma das duas porque jamais pensaria em namorar alguém que acabei de ver na noite.
[Vanessa] Ah então a mocinha do sorriso lindo não é mais tão interessante para você?
[Henrique] Claro que é. Tanto que estou aqui falando com você mesmo sabendo que ao final da conversa é com outro cara que vai ficar. O que precisa entender é que você ser interessante, depois de toda conversa que tivemos, virou um atributo óbvio para conseguir minha atenção. O problema está em você decidir qual Vanessa quer ser. Quando descobrir é só me procurar neste mesmo balcão que frequento tem muitos anos. Com certeza estarei preparado para te metralhar com uma sequência de frases surreais que tentarão te tirar do sério... Rapaz, por favor, apenas uma cerveja desta vez porque ela está de saída, creio eu.
Vanessa sai calmamente, vai até a porta que dá acesso à área externa e grita:
[Vanessa] CÉSAR, PRECISO QUE VÁ ATÉ O MEIER BUSCAR MINHA PRIMA JENIFER. PEGUE UM TAXI QUE VOU TE MANDANDO AS ORIENTAÇÕES PELO CELULAR.
Vanessa volta para o lado de Henrique.
[Vanessa] Eu quero ser a Vanessa que se irrita com sua incapacidade de calar a boca, a ponto de resolver isso te beijando.
[Henrique] Rapaz, eu me enganei. Pode pegar outra cerveja, por favor.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Amargura por extenso

O impeachment e suas dedicatórias
Ontem, na votação do impeachment presenciamos as piores e mais constrangedoras homenagens declamadas antes de cada voto. Recordamos então a melhor de cada estado para você que preferiu ocupar seu fim de domingo vivendo dignamente.
Deputado de Roraima: “Por todos os brasileiros que pronunciam o nome do meu estado sem enfiar acentuação no primeiro a. Não é Roráima. Pelas pessoas que não insistem em falar julhó. Pelos cidadãos que não dizem rubrica.”
Deputado do Rio Grande do Sul: “Pelo coronel Bento Gonçalves. Pela revolução Farroupilha. Pela separação do Brasil. Por Mel Lisboa, Fernanda Lima e Xuxa Meneghel.”
Deputado Santa Catarina: “Pelo povo da ilha. Pelas baladas mais high society do país. Por Balneário Camboriu na baixa temporada quando está livre dos argentinos. Pelo Beto Carrero World.”
Deputado Amapá: “Pelos 21 times de futebol do meu estado que nunca apareceram no É Gol! com a Domitila Becker. Pelos uirapuru-estrela, araçari-negro, amapasaurus tetradactylus o sapo Atelopus spumarius e o Chrotopterus auritus. E pelos passeio nos shoppings da Guiana Francesa!”
Deputado Pará: “Pela Fafá de Belém. Pela Dira Paes. Por Jesus que nasceu na nossa capital Belém.”
Deputado Paraná: “Pela República de Curitiba. Por Sergio Moro. Pelo sanduíche de bolinho. Pelo show do AC/DC na Pedreira. Pelo time do Furacão de 2001.”
Deputado do Mato Grosso do Sul: “Pelas nossas capivaras tão idolatradas no Rio de Janeiro pela Cora Ronai. Pela memória das ariranhas. Por Luan Santana. Pela Tetê Espíndola. Por Ney Matogrosso que oculta em seu nome artístico o Sul que carregamos com tanto orgulho, pois somos do Mato Grosso, mas do SUL!”
Deputado do Amazonas: “Pela Tainá, uma aventura na floresta. Pelas tribos Kambeba, Jarawara, Korubo e Wanana. Pelo tucunaré. Pelo Sergio Chapelein que apresenta aquele telejornal que só fala do meu estado, o Globo Repórter.”
Deputado de Rondônia: “Pela Reserva Roosevelt e seus índios Cinta Larga. Pelos leitores do jornal O Guaporé. Pelo nosso orgulho, o ator Diego Borges que brilhou muito no filme Pobre Não Tem Jipe.”
Deputado de Goiás: “Pela alma de Leandro e o carisma de Leonardo. Por Bruno e Marrone. Por Zezé di Camargo e Luciano. E contra a trairagem de Zilu.”
Deputado do Distrito Federal: “Por todas as nossas amantes. Pela respeitada Jeany Mary Corner, madrinha de nossos filhos. Por Legião Urbana, Aborto Elétrico e Capital Inicial. Pelo maior museu a céu aberto em homenagem a Oscar Niemayer. Pelo nosso clima barrento que nos transforma em peça de artesanato quando ficamos mais de cinco minutos parados.”
Deputado do Acre: “Pelo vazio. Pelo vácuo. Pelo nada. Pelo imaginário coletivo. Pelo projeto de expansão de Deus.”
Deputado do Tocantins: “Por todos os memes dizendo que as pessoas merecem a nossa capital. Por José Sarney que deu a canetada final pela nossa emancipação. Por todos que nasceram antes de 1998 e não sabem mais se nasceram em Goiás ou em Tocantins.”
Deputado do Mato Grosso: “Por Vanessa da Mata e seu interminável banho de chuva. Pela Luverdense, meu verdão do norte. Pelo nosso orgulho Otaviano Costa que preenche com carisma e talento as tardes das senhoras em salas de espera de consultórios.”
Deputado de São Paulo: “Por nossas ciclovias. Pelo pato gigante da Paulista. Pela cracolândia romantizada pelos fotógrafos internacionais. Pelo limite invisível que separa a prostituição gay da heterossexual da Augusta. Pelos manos, bolachas, noias, baladas, brejas e tretas.”
Deputado do Maranhão: “Pelo Bumba Meu Boi. Por Axel Rose que idolatra a nossa Alcione. Pelas lustrosas famílias Sarney e Lobão.”
Deputado do Ceará: “Pela virilidade de Xico Sá. Por Raffaelo, o maior customizador do mundo. Pelas Curva de Jurema. Por Chico Anysio, Tom Cavalcante e Renato Aragão, mais conhecido como Doutor Renato.”
Deputado do Rio de Janeiro: “Pelo constrangimento por Bolsonaro, Jean Willys, Jandira e Benedita. Pelas balas perdidas. Por todos os atletas que terão micose após provas na Lagoa Rodrigo de Freitas. Por Eike Batista, amados por bombeiros e odiado por investidores amadores. Pela educação dos nossos taxistas e pela cordialidade de nossos policiais militares. Pela Praça Saens Peña.”
Deputado do Espirito Santo: “Pelo orgulho do nosso estado. O Acre litorâneo.”
Deputado do Piaui: “Por Frank Aguiar, o cãozinho dos teclados. Por Sephany, que mesmo tirando onda com seu Crossfox, casou-se montada em um jegue.”
Deputado do Rio Grande do Norte: “Se Mato Grosso se orgulha de Vanessa da Mata, nós temos Roberta Sá. Pelo nosso Espontão. Por Marinara Costa, a musa da década de 90, a mulher do Vannucci.”
Deputado de Minas Gerais: “Pelo logo ali que nunca chega. Pela carreira do Aécio. Pelo nosso norte com sotaque baiano e pelo sul com sotaque de paulista caipira. Pelo Clube da Esquina. E pelo orgulho de unir o país no que se trada de odiar o Jota Quest.”
Deputado da Paraíba: “Pela seleção de músicos que fabricamos. Por Elba Ramalho, a Vanessa da Mata clássica. Por Chico César e sua Mama África. Por Geraldo Vandre e seu hino que é cada vez mais atual. E pelo único artista capaz de ofuscar Roberto Carlos, Genival Lacerda.”
Deputado de Pernambuco: “Pelos turistas que gastam uma grana se hospedando em Muro Alto. Pelos turistas que gastam uma grana para comer em Carneiros. Pelo Galo da Madrugada. Pelo Maracatu e Chico Science.”
Deputado da Bahia: “Pela família de ACM. Por Caetano, Bethânia, Gil, Gal e, nossa paraninfa, Dona Canô. Pela ideia brilhante de obrigar alguém a pagar uma fortuna por uma camisa ridícula e depois ter de correr atrás do show que foge de você.”
Deputado de Sergipe: “Pelos meus filhos Matheus, Arthur e Felipe. E é tudo que consegui.”
Deputado de Alagoas: “Pela maior tríade que este país já viu: Collor, Djavan e Marcio Canuto.”

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Pedaços de uma vida encenada

A incrível improvisação lisérgica de Flávio Nogueira
Início de cena
[♪]: Som de campainha
Um homem (Flavio Nogueira) com mais de cinquenta anos que está vestindo uma calça jeans surrada e uma camisa básica puída abre a porta. Ele está descabelado, olhos vermelhos e com um cigarro pela metade na boca. Do outro lado outro da porta, um rapaz (Armando) por volta de vinte e poucos anos vestindo calça social e camisa social de mangas curtas.
[Armando] Senhor Nogueira?
[Flávio Nogueira] Sou eu. Quem é você?
[Armando] Sou o Armando.
[Flávio Nogueira] Armando.
[Armando] Armando.
[Flávio Nogueira] Armando.
[Armando] Sim, Armando.
[Flávio Nogueira] Quem é você, Armando?
[Armando] Sou o assistente do Tarcísio Bulhões. O editor do jornal Folhetim Diário.
[Flávio Nogueira] Sim. Sim. Armando. Sim. Armando assistente do Tarcisio. Grande Tarcisio! Não tão grande, né? Quanto ele tem de altura? Um metro e setenta? Não, talvez menos. Mas um grande profissional. Você concorda comigo?
[Armando] Sim, concordo, senhor.
[Flávio Nogueira] Concorda com ele ser um grande profissional ou ele ter um metro e setenta?
[Armando] Ser um grande profissional.
[Flávio Nogueira] E quanto você acha que ele tem de altura?
[Armando] Não sei precisar, senhor.
[Flávio Nogueira] Ele é mais alto ou mais baixo que você? Qual seu nome mesmo?
[Armando] Ele é mais alto, senhor. Meu nome é Armando.
[Flávio Nogueira] Sim. Sim. Armando. Grande Armando! Não tão grande quanto o Tarcísio, não é, Armando? Essa foi boa. Quanto você mede, Armando?
[Armando] Não tenho a menor ideia, senhor. Eu estou aqui apenas...
[Flávio Nogueira] Entre, Armando! Entre. Eu tenho uma fita métrica aqui. Vamos medir a sua altura.
Flávio Nogueira conduz Armando para dentro da sua casa. A sala é muito bagunçada. Livros, garrafas de cerveja e bitucas de cigarro para todos os lados. Em uma mesa de centro, Armando visualiza um baseado, cocaína e copos vazios. Flavio Nogueira sai em direção a algum quarto enquanto na sala Armando fica espantado com o cenário. Um tempo depois Flavio Nogueira volta.
[Flávio Nogueira] Olá. Quem é você?
[Armando] Sou Armando, senhor Nogueira.
[Flávio Nogueira] Armando?
[Armando] Sim, senhor Nogueira. Sou assistente do editor chefe do jornal...
[Flávio Nogueira] Ah sim. Sim. Sim. Lembrei. Você veio me entregar uma fita métrica.
[Armando] Não, senhor Nogueira. Eu vim aqui para... O senhor está bem?
[Flávio Nogueira] Sim. Claro. Não. Quero dizer. Depende. Quando fecho os olhos vejo figuras infinitas com cores vibrantes. Sabe do que estou falando, Armando? É só fechar os olhos. Aqui. Olha.
Flávio Nogueira tapa os olhos com as mãos.
[Flávio Nogueira] Vou fechar os olhos. Veja! Bonequinhos cabeçudos. Um do lado do outro. Vão diminuindo de tamanho conforme se enfileiram na direção do horizonte. Vai ficando infinito. Veja! Não acabam. São muitos! Muitos mesmo! Todos coloridinhos. Uma coisa linda. Nem tenho coragem de abrir os olhos.
Flávio Nogueira tira as mãos do rosto e abre os olhos.
[Flávio Nogueira] Olá. Quem é você?
[Armando] Sou Armando, senhor.
[Flávio Nogueira] O que está fazendo aqui?
[Armando] Estou vendo você e seus bonequinhos coloridos enfileirados até o infinito.
[Flávio Nogueira] Você também os viu?
[Armando] Não, não os vi, senhor. Eu na verdade estou aqui para...
[Flávio Nogueira] Deveria ter visto. São muitos! Muitos para valer. Tipo uns trinta. NÃO! Muito mais! Muito mais mesmo! Uns vinte. Não. Isso é menos. Não é? Quanto falei antes?
[Armando] Senhor Nogueira, por favor, posso falar?
[Flávio Nogueira] Sim, claro, rapaz. Você quer uma água? Nem te ofereci. Que falta de educação a minha. Tem água, tem cerveja e uísque. Tenho também um baseado nervoso aqui. Não fui eu que apertei. Eu não sei fazer essas coisas. Mentira! Claro que sei. Eu sou muito ansioso mesmo. Não consigo ficar enrolando e arrumando. Me dá umas coisas, acabo colocando tudo no cachimbo e fumo lá mesmo. CACHIMBO! Você fuma uma pedrinha? Tem também. Tem pó, mas ele é meio ruim. Vou reclamar inclusive com a Marlene. Ela é a minha diarista. Faxineira! Ela arruma essa bagulhada toda que estou consumindo e ainda aperta o baseado. Ela aperta o baseado. Indiquei a Marlene para uma vizinha daqui e ela ficou decepcionada porque não sabia passar roupa. Minha senhora, ela sabe apertar um baseado como ninguém, para quê passar roupa? Enfim, o pó é ruim. Vou reclamar com ela. Tem LSD também. Sabe? Papel? Vocês chamam agora de doce, né? Doce é o cacete! Se eu fosse traficante ia ficar muito puto. Chega o cara perguntando “tem doce?”. Enfiaria minha pistola na cara dele e diria “eu tenho cara de Halloween?”. Será que traficante sabe falar Halloween? Enfim, tem papel. Mentira! Acabou. Gastei tudo hoje.
[Armando] É, eu estou percebendo. Mas não precisa. Obrigado.
[Flávio Nogueira] Então, no que posso ser útil?
[Armando] O Tarcísio está te ligando o dia todo e não consegue falar com o senhor. Agora imagino o motivo. Enfim, já passou do prazo do senhor enviar a sua coluna que será publicada no domingo. Ele pediu para tentar pegar pessoalmente com o senhor.
[Flávio Nogueira] Rapaz, eu esqueci. Esqueci totalmente. Estou nessa já tem uns dias e esqueci. É impossível se concentrar com os bonequinhos...
[Armando] Infinitos com cores vibrante. Eu sei, senhor.
[Flávio Nogueira] Você viu? É só fechar os olhos e...
[Armando] Não feche os olhos, por favor, senhor.
[Flávio Nogueira] Ok.
[Armando] Só preciso do texto.
[Flávio Nogueira] Posso te falar uma coisa?
[Armando] Sim, pode, senhor.
[Flávio Nogueira] Você já viu aquelas bicicletas de andar acompanhado que alugam lá na Lagoa Rodrigo de Freitas? Não literalmente na Lagoa. Literalmente na Lagoa seriam pedalinhos, né? Estou falando daquelas bicicletas que são duas rodas atrás e uma na frente. Bem lá na frente. Tem um ferro comprido toda vida e no final a rodinha. Podem sentar até três pessoas. Não na rodinha. Na casinha que vem atrás sobre as duas outras rodas. Estou explicando direito? Então, lá tem essas bicicletas. Ontem, eu estava vendo várias delas por aqui. Só que no lugar da bicicleta, as pessoas ficam em cima de um enorme cachorro salsicha. Veja só que doideira.
[Armando] Senhor...
[Flávio Nogueira] Qual o nome do cachorro salsicha mesmo?
[Armando] Dachshund.
[Flávio Nogueira] Tem certeza? Não é Cocker alguma coisa?
[Armando] Cocker Spaniel.
[Flávio Nogueira] Isso! Sabia!
[Armando] Não, senhor. Cocker Spaniel é outro cachorro.
[Flávio Nogueira] Outro? Qual?
[Armando] Ele é de pequeno porte também. Tem as orelhas um pouco compridas. Costuma ter um problema de mau cheiro por conta de uma glândula.
[Flávio Nogueira] Isso não é um gambá?
[Armando] Não, senhor.
[Flávio Nogueira] Tem certeza?
[Armando] Absoluta.
[Flávio Nogueira] Você é veterinário?
[Armando] Não, senhor. Sou assistente do...
[Flávio Nogueira] Estou brincando. Sei quem você é. Qual o nome mesmo?
[Armando] Armando.
[Flávio Nogueira] Não, garoto! Está doidão? Do cachorro! Qual o nome dele mesmo?
[Armando] Ahn! Dachshund.
[Flávio Nogueira] Eita que nome difícil. Por isso que ficou popular o nome cachorro salsicha. Ninguém sabe escreve esse demônio de nome. Na verdade, muito não sabem escrever sequer salsicha.
[Armando] Por falar em escrever, senhor...
[Flávio Nogueira] Exato! Você sabe escrever salsicha?
[Armando] Claro que sei, senhor.
[Flávio Nogueira] Soletre, por favor.
[Armando] Senhor, preciso da sua coluna para publicar no domingo.
[Flávio Nogueira] Menino, já disse que não escrevi. Essa semana foi toda nesse ritmo. Não gosto de ser pressionado.
[Armando] Não me leve a mal, senhor. Para mim, estar na casa do grande autor Flavio Nogueira é uma grande honra. Logo, fazer cobranças ao senhor me deixa muito desconfortável. O problema é que o senhor Tarcísio me orientou a não voltar sem uma coluna sua. Claro que ele antecipou que pudesse presenciar uma situação peculiar, mas não imaginava algo deste tipo.
[Flávio Nogueira] É, rapaz. Seu chefe estava certo.
[Armando] Enfim, como pode me ajudar? Não tem um backup ou alguns textos inéditos guardados para situações como estas?
[Flávio Nogueira] Backup! Claro! Tenho alguns textos em um pendrive. Está ali em cima da mesa. Ali. Aquele negócio branco.
[Armando] Senhor, isto não é um pendrive. Isto é um dado.
[Flávio Nogueira] Um dado?
[Armando] Sim, um dado.
[Flávio Nogueira] Que tipo de dado?
[Armando] Um dado erótico.
[Flávio Nogueira] Um dado erótico? Papagaio! Jogue para cá.
Armando joga o dado com pouca força e acaba caindo no chão próximo aos pés de Flávio Nogueira.
[Flávio Nogueira] Tire uma peça de roupa.
[Armando] Ahn?
[Flávio Nogueira] Tire uma peça de roupa. Está aqui! O que sai no dado precisa ser feito. Você jogou o dado e agora precisa cumprir.
[Armando] Eu não joguei o dado. O senhor pediu.
[Flávio Nogueira] Mas você jogou. Tire uma peça.
[Armando] Eu não joguei de jogar. Eu joguei de arremessar.
[Flávio Nogueira] Você jogou. Acabou de confessar. Pode tirar uma peça.
[Armando] Senhor, tente me entender. Eu joguei o dado. Digo. Eu arremessei o dado porque você pediu. Isso não significa que joguei porque estava jogando o jogo. Ah, o senhor me entendeu.
[Flávio Nogueira] Rapaz, a regra é clara. Arremessou o dado, tem de fazer o que saiu. Tire uma peça. Vamos.
[Armando] Ok. Peraí. Pronto. Tirei.
[Flávio Nogueira] Você tirou um sapato.
[Armando] E daí?
[Flávio Nogueira] E daí que isso não conta como uma peça.
[Armando] Claro que conta.
[Flávio Nogueira] Claro que não! Para sapatos, uma peça é o par. É a unidade comercializada. Onde já se viu comprar apenas um sapato? Até um perneta compra dois sapatos, não compra? Ou não? Como será que eles fazem? Será que compram só um e ganham cinquenta por cento de desconto? Não, não é possível. Imagine uma loja que esteja com má sorte e só atendeu ultimamente pessoas sem a perna direita. Não é justo. Além do mais, nunca vi uma loja com cartaz escrito “grande saldão de pés direitos”. Eles compram o par com certeza. Engraçado. Fiquei intrigado. O que eles fazem com o outro pé? Será que jogam fora? Será que existe algum aplicativo tipo Tinder para encontrar a sua cara metade? Digo, seu par de sapatos metade. Imagine só a descrição: “Meu nome é Jorge e procuro pessoas sem o pé direito para dividir pares de sapatos. Calço 42 e possuo joanete. É importante que sejam confortáveis. Não sou preconceituoso, mas dispenso sapatênis.”.
[Armando] Senhor, é uma interessante reflexão. Veja, tirei o outro sapato. Podemos ver o seu texto? Onde está o pendrive?
[Flávio Nogueira] Não sei! Era para estar aí! Provavelmente a menina que trouxe o dado erótico para brincar comigo foi embora com o pendrive por engano.
[Armando] Senhor Nogueira, isto é muito grave. Como faremos agora? Não posso voltar para a redação sem a sua coluna. Meu emprego depende disto.
[Flávio Nogueira] Ok. Não se preocupe, rapaz. Vamos improvisar um agora mesmo. Sou muito bom nisto. Precisamos de um assunto. Fale algo.
[Armando] Desculpe-me, senhor. Estou muito nervoso com a possibilidade de perder o meu emprego. Nada mais me vem à cabeça.
[Flávio Nogueira] Tudo bem. Tudo bem. Sem pânico, rapaz. Sem pânico, Flávio Amaral. Vou escrever sobre algo que falamos hoje. Será um tema recente e fluirá facilmente. PERNETAS! Sim! Um conto fantasia. Uma nova síndrome. As pessoas são vacinadas com genes de lagartixa para se regenerarem em caso de amputação. Isso! Mas vai dar errado! A pessoa tem a perna amputada, só que não nasce outra perna. Não! Vai acontecer ao contrário com as pessoas. A partir do membro amputado começa a surgir uma pessoa. Um gêmeo do amputado, só que sem a outra perna. Daí, todo amputado vai ter um novo gêmeo, mas faltando exatamente a perna que ele tem. Entendeu? É isso! Excelente! Com isso, cada um tendo o seu gêmeo amputado simétrico, os problemas dos pares de tênis pela metade se resolvem.
[Armando] Senhor Nogueira, mesmo para os seus leitores acostumados com seus textos, acredito que esse será muito agressivo. Melhor pensar em outra coisa mais dentro da sua linha habitual.
[Flávio Nogueira] Bem pensado. O que tem em mente? Que linha minha?
[Armando] O senhor costuma escrever muito sobre sexo. Que tal? É um tema fácil. Quero dizer. Para o senhor, deve ser um tema fácil.
[Flávio Nogueira] Sexo? Sim. Sexo! Todos gostam de ler sobre sexo. Eu escrevo muito sobre sexo. Adoro escrever sobre sexo. Vamos pensar em algo. Deixe-me acender apenas o baseado para dar aquela ajuda.
Flávio Nogueira pega o baseado na mesa de centro e acende. Amaral aumenta seu olhar de preocupação com a cena. Após dois tragos bem longos, Flávio Nogueira prossegue.
[Flávio Nogueira] Uma mulher que cansou de responder para os homens se ela gozou. Rosana o nome dela. Sempre que transava, os homens ao final perguntavam para Rosana se ela tinha gozado. Cansada disto, ela passa a emitir certificados para eles: “Parabéns, você me fez alcançar um orgasmo.”. Isso! Não! Melhor ainda. Ela não entrega o certificado na hora. Acabou a transa, o cara pergunta se ela gozou e Rosana responde “compareça no dia 18 de agosto no auditório principal da UFRJ para a entrega de graus.”. Vai ter toda uma cerimônia. Hino nacional no início e tudo. Os homens que transaram com ela perfilados usando beca. Discursos padrões. Homenagem aos pais: “Queremos agradecer aos nossos pais pela educação dada e nunca ter interferido nas nossas punhetas escondidas durante o banho que nos ajudou a conhecer melhor o corpo.”. Homenagem a Deus também: “Agradecemos a Deus por colocar Rosana em nossas vidas e por não nos mandar para o inferno pelo sexo sem fins reprodutivos.”. E, claro, homenagem aos ausentes: “Queremos agradecer aos ausentes. Aos que se foram. Principalmente ao tio Célio que partiu quando eu tinha apenas cinco anos. Tio Célio, se você ainda fosse vivo, estaria me molestando até hoje e provavelmente não teria condições de manter relações com a Rosana.”. Depois, um por um é chamado para receber seu certificado diretamente das mãos de Rosana. Ao final, ao som de Je T’aime Moi Non Plus e sob uma chuva de embalagens de camisinhas, eles tiram a beca e celebram nus.
[Armando] Senhor Nogueira, preciso dizer que estou impressionado com esse baseado. Que história! Ainda assim, acho melhor pensarmos em algo diferente. Não tenho certeza se as pessoas acompanharão a sua linha de raciocínio.
[Flávio Nogueira] Está complicado segurar as ideias dentro de mim agora. É muita coisa vindo de uma só vez. Estou pensando em Copa do Mundo e ao mesmo tempo em remédio controlado.
[Armando] Não sei se são assuntos possíveis de correlação, senhor.
[Flávio Nogueira] Claro que são! Uma pessoa trabalha na coordenação da Copa do Mundo. Rosana! Sim, Rosana! Estou com este nome na cabeça. Vai ver é o nome da menina que deixou o dado erótico aqui e levou meu pendrive. Rosana toma remédio controlado e, caso se esqueça, fica incoerente. Abertura da Copa do Mundo. França e África do Sul. Os times entram em campo. O locutor se espanta: “Meu senhor, o time da África do Sul tem 68 jogadores em campo!”. O repórter de campo explica: “Pois é! Acontece que, no momento de credenciar os times, a responsável tinha se esquecido de tomar sua medicação e errou um pouco no controle dos jogadores.”. O locutor ainda surpreso indaga: “Mas a Copa do Mundo será com 68 jogadores cada time?”. Eis que o repórter responde: “Não! Assim que terminou de credenciar o time da casa, ela tomou sua medicação e voltou ao normal. Só a África do Sul vai jogar com 68 jogadores.”. O locutor fica indignado dizendo que isso era um absurdo. O repórter concorda e prossegue: “Sim, um absurdo. Para se ter uma ideia, a África do Sul precisou fazer um processo de imigração de atletas porque sequer conseguiu encontrar 32 sul africanos aptos a jogar pela seleção, imagine 68. Se reparar com calma, tem ali dois japoneses, um australiano, alguns chineses e três cubanos. Na verdade, dois cubanos, pois um já pediu asilo político e foi substituído por um cachorro salsicha cujo nome é difícil de se escrever. Vamos torcer para que sejam eliminados ainda na fase de grupos.”.
[Armando] É, definitivamente estou desempregado. Senhor Nogueira, seria muito abuso pedir um pouco do seu baseado para amenizar a minha dor pela perda do emprego?
[Flávio Nogueira] Pare de falar bobagens, rapaz. Vai sair esse texto de qualquer jeito e você vai garantir seu emprego. Vai garantir seu emprego e ganhar uma dedicatória. Será o melhor texto da minha história e será em sua homenagem.
[Armando] Muito obrigado, senhor. Fico lisonjeado, mas não vejo como isso será possível.
[Flávio Nogueira] Um texto sobre música.
[Armando] Bem, música é um tema bastante recorrente nas suas colunas.
[Flávio Nogueira] Viu? Música! Um texto sobre música com um tema de apelo coletivo.
[Armando] É uma boa estratégica. Muitos irão se simpatizar com ele assim.
[Flávio Nogueira] Exato! Um texto que fale de Chico Buarque.
[Armando] Chico Buarque. Está aí algo que muitas pessoas falam e gostam de ler. Parece que está em um bom caminho.
[Flávio Nogueira] Um texto sobre Chico Buarque que seja polêmico. Um texto que deboche dele.
[Armando] Ai meu pai...
[Flávio Nogueira] Calma. Está saindo! Transmissões neurais sendo feitas. A história é sobre uma vitrola que só toca Chico Buarque. É isso! A vitrola só toca Chico Buarque porque sua dona só escuta Chico Buarque. A vitrola é muito frustrada com isso, pois adoraria tocar Billie Holiday, Sinatra, João Gilberto e Rolling Stones. Isto não acontece. Sua dona só quer saber de Chico Buarque. Ela se masturba ouvindo Chico Buarque. A vitrola, se pudesse, falaria para ela: “Isso é muito chato. É muito superestimado. Como dizem por aí, ele nem é tudo isso. Chico é na verdade um sambista que comprou um dicionário de rimas.”.
[Armando] Senhor Nogueira, de fato, o senhor conseguiu algo bem polêmico mesmo. Não tenho certeza se isso é publicável.
[Flávio Nogueira] Calma! Preciso explicar a dona.
[Armando] Deixe-me adivinhar. Ela se chama Rosana?
[Flávio Nogueira] Não! Ela não merece o nome Rosana. Ela se chama Marli. É uma lésbica quase da minha idade, encalhada, feminista xiita que não depila a virilha desde a adolescência. Parece que tem dois judeus ortodoxos no meio das suas pernas. Isaac e Jacó. Não! Muito clichê. Renan e Maicon. Não! Com esse nome ela teria dois evangélicos no meio das pernas.
[Armando] Senhor Nogueira, agora tenho certeza que isso não somente não é publicável, como, caso o faça, será preso.
[Flávio Nogueira] Meu rapaz, estou tentando te ajudar, mas você está muito pessimista. Não é possível que as ideias sejam totalmente desprezíveis. Não acredito que nada se salve.
[Armando] Senhor Nogueira, espero que não me leve a mal, pois lhe respeito e considero um dos maiores escritores vivos, mas nada se aproveita. Para não ser tão radical, digo que a ideia do perneta seria viável se o senhor tivesse optado a contar uma história sobre o Saci Pererê.
[Flávio Nogueira] Está aí! Já tive algumas colunas que apenas falavam como as coisas surgiam. Posso fazer uma contando a história do Saci Pererê. Você sabia que o Saci Pererê perdeu uma das pernas jogando capoeira? E tem mais! Ele, em outras regiões, pode ser conhecido como Saci Cererê, Saci Trique, Saci Saçurá, Matita Perê ou Matimpererê. Aliás, Matimpererê é uma palavra tupi-guarani que provavelmente deve significar não dê golpe de capoeira naquela serra elétrica ligada que vai dar merda.
[Armando] Senhor Nogueira, muito obrigado, mas voltarei com as mãos vazias mesmo. Amanhã o senhor Tarcísio entrará em contato com o senhor. Adeus.
Armando vai embora. Flavio Nogueira fecha a porta e vai para seu quarto. Deitada na cama, uma mulher.
[Mulher] Meu Deus, homem! Que demora! Cadê cerveja que foi buscar? Que sapatos são esses em suas mãos?
[Flávio Nogueira] Olá! Quem é você?
[Mulher] ROSANA, HOMEM! ROSANA! 
Fim de cena