domingo, 27 de novembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: DR
Barbearia à moda antiga
Douglas sempre foi uma pessoa desinteressada com modismos, alienado caberia como um melhor adjetivo. Caso este conto seja publicado em algum livro famoso, é bem possível que ele não tome conhecimento e, por isso, não possa concordar comigo. Ao menos estará confirmando a minha teoria. Sabe-se lá como, um dia ele tomou conhecimento da febre das barbearias retrô. Novos salões de cabeleireiros montados com altíssimos investimentos, design moderno e ambientação estereotipada em uma estética viril, tudo com a desculpa para cobrar uma fortuna por algo que qualquer outro salão faria, mas que seu cliente em potencial teria vergonha de frequentar para não afetar sua masculinidade. Um cenário que gasta toda a criatividade dos seus gestores, deixando claro que nada restou de novo e, portanto, o produto final do estabelecimento será limitado a três modelos apenas. Muito cabelo com gel em uma parte e máquina zero em outra te deixando parecido com um jogador de futebol da geração atual. Barba cheia para te dar um ar de lenhador autêntico, a não ser que se lembre que não existe a possibilidade de um lenhador autêntico que more no meio da floresta tenha uma barba tão bem desenhada usando apenas um machado ou facão. Rabicó tímido ao topo da cabeça que preferem chamar de futuro coque samurai, quando deveria ser conhecido como Xuxa nos tempos áureos. Ao menos, para justificar o preço exorbitante, oferecem um chope de cortesia acompanhado de uma fina crosta de cabelos sobre ele. Menos pior que os cabelos serão seus mesmo.
Quando explicaram ao Douglas do que se tratava, foram breves. No seu entendimento, na essência tratava-se de um salão à moda antiga. Para ele, isso soaria como música para seus ouvidos. Perto de sua casa tinha um salão classificado como “de antigamente” e o preço era compatível com seu orçamento. Sem relutar, Douglas foi dar um tapa no visual no Salão do Licínio, tradição entre taxistas de Rocha Miranda. Sua entrada, com portas de alumínio com vidro, permitia que os pedestres vissem seu interior. Chão de pastilhas pequenas azuis, parede com madeira na metade de baixo e tinta azul na parte restante ocupavam um lado do curto e estreito salão, enquanto uma bancada de madeira e um longo espelho preenchiam o outro lado. Ao fundo, na parede restante, recortes de jornais a forravam com notícias de importância duvidosa em papéis amarelados.
Ao entrar no salão, Douglas notou que à sua direita, na parte do balcão com espelho, tinha três poltronas para atendimento e apenas um homem de pé entre elas. Era um homem aparentando seus sessenta e muitos anos. Bigodes bem grisalhos, cabelos nem tanto. Vestia um jaleco que um dia foi totalmente branco. Ele, ocupado organizando a sua bancada, não percebeu a entrada de Douglas. Não querendo interromper o homem, Douglas virou-se para sua esquerda. Um comprido banco de couro preto desgastado e sem encosto ocupava o outro lado. Nele, dois senhores estava sentados entre revistas e jornais espalhados. Um senhor mulato de enorme bigode negro e grosso que lia uma parte do jornal também sequer notou a presença de Douglas. O outro, totalmente careca, com pintas negras em seu couro cabeludo indicando uma longa vida de exposição ao sol, portanto careca há bastante tempo, que se ocupava com uma revista de palavras-cruzadas levantou o rosto para ver quem entrava ao recinto. Douglas então perguntou a ele se estava esperando para ser atendido.
- Esperando para ser atendido? – perguntou o senhor careca. – Só se for para o Licínio pegar esses cabelos no chão e colar na minha cabeça. Você ouviu essa, Licínio?
O barbeiro não respondeu, sequer se virou. Douglas ficou parado sem graça esperando alguma reação dos outros dois homens no salão. Nada aconteceu. Decidiu então se sentar. Enquanto se aproximava do banco e começava a se abaixar, o homem careca o interrompeu.
- CUIDADO!
- O que? – Douglas se assustou, voltou à posição totalmente ereta e deu um passo atrás.
- Cuidado... tratamento... com onze letras – prosseguiu o homem careca.
- Perdão? – Douglas permanecia sem entender o que acontecia e antes que o senhor careca o respondesse, o senhor mulato interviu sem tirar os olhos do jornal.
- Facilita para o menino, Raul.
- Onze letras. Começa e termina com a letra a.
- Não é disso que estou falando, Raul – o senhor mulato indicou impaciência ao virar o rosto para o senhor careca. – Facilita para ele que está perdido.
- Ah, sim – disse o senhor careca chamado Raul. – Pode-se sentar. Eu não vou ser atendido.
- Entendi. Obrigado – Douglas agradeceu ao Raul e depois se dirigiu ao senhor mulato. – Está esperando?
- Não – o senhor mulato fez uma pausa e depois prosseguiu. – Assistência.
- O senhor presta assistência aqui? – Douglas perguntou.
- Não, rapaz. É com ele que falo – o senhor mulato apontou para o Raul ao seu lado. – Raul, cuidado e tratamento com onze letras é assistência.
Com um sorriso no rosto, Raul agradeceu ao senhor mulato e escreveu a palavra com um sorriso no rosto. Já o senhor mulato retomou sua atenção ao jornal. Douglas ficou esperando alguma movimentação por parte do Licínio que, apenas uns dois minutos depois, parou de mexer em sua bancada e se virou para o rapaz. Sem dizer uma palavra, ele ajeitou uma das poltronas, bateu com um pano nela e encarou o Douglas como quem o convida para se sentar. O rapaz então se levantou e, a caminho da poltrona, escuta a voz do senhor mulato.
- Você conhece o Raposão?
- Quem? – Douglas perguntou antes que fosse interrompido pelo Licínio.
- Ninguém conhece o Raposão, Albeci. Você vive inventando personagens.
- Não é invenção – disse o o senhor mulato que atendia por Albeci. – Ele era o dono de uma loja de ferramentas ali na Silveira Martins.
- Não existe loja de ferramentas na Silveira Martins, Albeci – Licínio retrucou.
- Claro que existia – o Albeci persistiu. – Esqueci o nome dela. Era... Era... Era...
- Ato de desespero – falou o Raul.
- Qual loja de ferramentas se chamaria ato de desespero, Raul? – Licínio perguntou.
- Não – prosseguiu o Raul. – Ato de desespero com oito letras.
- Então – Albeci cortou o Raul. – Vocês falam que não existia loja, nem Raposão, mas deixem-me contar o que...
- Suicídio – Douglas falou.
- Viram? – Albeci apontou para o rapaz. – Não disse que ele, o Raposão, existia e alguém o conhecia? O homem não aguentou a crise e se matou. Tomou uma caixa inteira...
- Desculpe, – Douglas interrompeu o Albeci – estava respondendo ao que ele perguntou. Ato de desespero com oito letras.
O silêncio tomou o salão. Licínio cobriu o peito de Douglas com um enorme avental de fechar na nuca. Depois abriu uma gaveta para pegar tesouras e um pente. Daí, Albeci voltou a falar:
- Então, ele tomou uma caixa inteira de chumbinho. Foi encontrado praticamente cinza. Parecia uma árvore velha.
- Como você quer, rapaz? – Licínio se direcionou secamente ao rapaz fazendo com que Albeci se calasse.
- Pode tirar um pouco de volume, mas não muita coisa. É para poder continuar jogando para o lado.
- Prossiga – disse o Licínio.
- Como dizia, foi suicídio – Albeci seguiu sua fala. – É muita coragem mesmo. Precisa de muita coragem para poder...
- Albeci, eu não falei com você. Deixe o menino acabar de falar, por favor. Preciso saber como ele quer o corte. – Licínio cortou Albeci mais uma vez.
- Até parece, Lícinio – Albeci retomou a palavra. – Você só sabe fazer o mesmo corte, desde a época que serviu o exército e pegou aquela mamata de barbeiro do batalhão para não precisar ir para a guerra.
- Não me difame na frente de um cliente novo, Albeci. Eu não admito.
- Ele tem razão – Raul deu razão ao Albeci. – Tem anos que frequento esse salão e nunca vi um corte diferente. Por isso que só venho pelo social. Caso nunca tenha reparado, em todos esses anos, nunca cortei o cabelo com você.
- Claro que não – Licínio retrucou. – Você já era careca quando começou a frequentar o meu salão. Aliás, você nasceu careca como qualquer bebê, mas duvido se em algum momento deixou de ser careca.
Douglas sentado na cadeira estava desconfortável. Não sabia se eram amigos implicando entre si ou se discutiam de verdade. Tampouco conseguia decodificar se os comentários feitos eram uma dica para ele pular fora antes que fosse tarde demais. Ele demorou a se decidir, titubeou e, por mais que quisesse ir embora, Licínio deu-lhe uma tesourada em seu vasto topete.
- Acredite em mim, rapaz – o barbeiro lhe disse com voz firme. – São anos de experiência. Nunca ouvi uma reclamação.
Sem reação e percebendo que talvez fosse tarde demais, só restou ao Douglas aguardar pelo estrago final. Ao menos, o silêncio retornou ao salão permitindo que ecoasse o som do tique tique da tesoura em seus cabelos. Não querendo parecer preocupado e, ao mesmo tempo, tentando colaborar com o tal barbeiro de dotes questionáveis, Douglas ficou de cabeça baixa olhando de canto de olho tudo pelo espelho. Via os movimento nada discretos do Licínio. Notava também, por cima de um dos seus ombros, a concentração de Raul com sua revista de passatempo. Por cima do outro ombro, percebia a insatisfação de Albeci a cada linha lida no jornal. Sua cabeça balançava negativamente. Em algum momento, a insatisfação chegou a um limite que o fez quebrar o silêncio.
- Relator da CPI entrega seu parecer. – disse o Albeci. – É tudo ladrão!
- O relator disse isso? Que coragem! – Licínio exclamou.
- Não! Claro que ele não disse isso. Eu estava apenas lendo o jornal... – Albeci foi interrompido pelo Raul.
- Aporrinhação!
- Olha só, Raul – Albeci demonstrou impaciência. – Não quer falar de política, vai dar uma volta. Vai beber no boteco com aqueles pinguços que só falam de futebol.
- Mas então estava escrito no jornal que só tinha ladrão? – Licínio perguntou. – Não é muita ousadia do editor?
- Não, né, Licínio? – Albeci demonstrou impaciência com o barbeiro. – Você acha que algum jornal escreveria algo do tipo? É óbvio que foi um comentário complementar meu. Você não consegue prestar atenção na conversa e...
- Por falar em prestar atenção – foi a vez do Raul cortar a conversa. – Aporrinhação com nove letras.
- Empadinha – disse uma voz que entrou no salão.
- Empadinha? – Douglas perguntou em voz alta sem notar a entrada do homem. – Qual a relação de aporrinhação com empadinha?
- Não tem – Licínio respondeu secamente.
- Empadinha quentinha – prosseguiu o homem que segurava uma caixa de isopor. – Empadinha de carne, de queijo, de presunto, de camarão...
- Empadinha de camarão é uma boa – Albeci interrompeu o homem.
- Vai querer uma, Albeci?
- Não – ele respondeu. – Queria dizer para o garoto que a sua empadinha de camarão pode ser uma boa justificativa para associar com aporrinhação. Afinal, achar o camarão aí no meio de monte de massa seca é tarefa árdua. Veja aí se não cabe empadinha, Raul. Faz todo sentido.
- Não – Raul respondeu alheio com os olho fixados na revista. – A palavra termina com a letra o.
- Poxa vida – Albeci lamentou com ar de deboche. – E saber que a resposta poderia estar bem aqui, não é mesmo, Valtenir?
- Muito engraçadinho – respondeu o homem das empadas que se chamava Valtenir. – Sabe que você pode ter razão? A resposta pode estar entre nós como falou. Aliás, pode estar bem na sua cara. Pense bem, Albeci. Aporrinhação com nove letras terminada com a letra o. Só pode ser casamento.
- Não entendi onde quer chegar, Valtenir. Não faz sentido.
- Não faz sentido mesmo – Raul prosseguiu.
- Obrigado, Raul.
- Digo que não faz sentido como resposta para a revista. É óbvio que o que o Valtenir disse faz sentido. Seu casamento é um porre, Albeci.
- Até você, Raul? Como se o seu fosse uma maravilha.
- Mas o meu é!
- Aham – Albeci ironizou a resposta do Raul. – Se fosse uma maravilha, não passaria o dia todo aqui.
- É mesmo, Raul – Licínio seguiu com a temática enquanto cortava os cabelos de Douglas. – Por que fica tanto tempo aqui? Você não corta os cabelos, não faz a barba, sequer lê o meu jornal. Fica sempre com essas revistas que traz de casa. O que tem em casa que te faz preferir ficar aqui.
- Chateação – respondeu o Douglas.
- Respeito, garoto – Raul foi enfático. – Você é novo aqui! Não vai se sentar na janela, não.
- Não, senhor – Douglas apaziguou. – Digo da sua revista. Aporrinhação com nove letras terminada com a letra o. Chateação.
- Opa! Obrigado, garoto – Raul agradeceu.
- Chateação – Licínio exclamou em voz alta com um sorriso de canto de boca. – Chateação é tudo que eu tenho aqui com vocês dois.
- Mentira – discordou o Albeci. – É exatamente o que não tem conosco aqui.
A coisa prosseguiu nesse ritmo até o Douglas ir embora. O corte até que não ficou tão ruim. Muito pelo contrário. Tanto que foi elogiado pelos colegas que perguntaram onde ele tinha feito. Ele respondeu que em uma barbearia à moda antiga perto da sua casa. Um de seus amigos tentou corrigir o Douglas dizendo barbearia retrô. Foi aí que Douglas afirmou que eram coisas distintas. E, quando perguntado qual a diferença, ele até tentou descrever com detalhes. Acabou desistindo e resumiu dizendo que era algo como uma experiência assistida com terceiros para avaliar sua sanidade mental. Os amigos se assustaram perguntando se era tão traumático assim.
- Sim, é – Douglas respondeu concordando e prosseguiu. – Só que, depois que você entende o funcionamento, você quer voltar todo dia. Mesmo que seja totalmente careca.


Próximo conto da coleção: Amiga de verdade

domingo, 13 de novembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Tráfico de órgãos

DR
Algumas coisas são inevitáveis na vida. A morte é a maior de todas elas seguida por confundir feijão com sorvete no congelador, queimar a boca com comida preparada no microondas, o ônibus passar direto mesmo com você fazendo sinal para ele, levar à boca algo não identificado achando que era uma migalha do que comia e que caiu no sofá (essa, na realidade, é bastante corriqueira comigo e gostaria de testar se acontece com vocês também), uma baita dor de barriga em um local público, a impressora parar de funcionar quando se tem poucos minutos para entregar um documento importante e a famigerada DR (discutir a relação para os mais distraídos às siglas). Entrando no mérito de qual delas as pessoas mais temem, a DR encabeça a lista. Principalmente se a DR rolar num jantar com casais na casa de um amigo.
Estatísticas, recentemente divulgadas por um grupo de pesquisa que preciso manter o anonimato para evitar que descubram que as inventei, indicam que o estopim para uma DR varia de acordo com o sexo da pessoa que a inicia. Quando feita pela patroa, os motivos mais corriqueiros são a loura de saia curta na mesa ao lado no restaurante, a morena de biquíni deitada à sua frente na praia ou a ruiva gritando descontroladamente na rua que está grávida do seu parceiro. Já no caso do mozão, o pontapé para a DR costuma ser principalmente por conta do primo distante que vem passar o feriado na casa do casal e dorme na mesma cama que eles, a mensagem que ela recebeu no meio da madrugada do colega de trabalho e o negão pelado com o corpo coberto de chantili debaixo da cama.
A terapeuta especialista em relacionamentos e conselheira matrimonial Soraia Albuquerque publicou recentemente em parceria com seu sétimo marido um estudo profundo e elogiado sobre a DR. Mesmo concordando que as motivações iniciais sejam sempre por assuntos menores, ela sustenta que o combustível de qualquer DR é sempre a insegurança. Não importa como ela começou. Somente a insegurança é capaz de fazer a DR durar tanto tempo quanto o necessário para encontrar um gato escondido numa foto compartilhada no Facebook. O diferencial da DR em relação à foto compartilhada é que não existe a opção de mandar mensagem para um conhecido perguntando qual a solução. Sendo assim, ela pode durar uma eternidade, trazendo desgaste para a relação, cansando os dois e enchendo de formigas o negão coberto de chantili que permanece constrangido debaixo da cama.
No mundo animal, diversas espécies já nascem meio que programadas para funcionalidades essenciais à vida delas. Caçar, escolher um local seguro para dormir, se reproduzir, cuidar da prole e propagar a espécie, são algumas das várias, digamos, configurações de fábrica que encontramos no meio selvagem. Com a humanidade, poderia ser igual, mas a evolução estragou tudo. Hoje, as crianças já nascem sabendo mexer em um tablet, dependentes de ritalina e ansiosas pelas próximas temporadas da Galinha Pintadinha. Nada que seja necessário está inserido em nosso código genético. Não suficiente, somos naturalmente predispostos a problematizar a fala alheia, compartilhar notícias falsas e desenvolver uma boa DR. Sim, sinto-lhes em dizer, mas a DR corre em nosso sangue e somos programados para tal.
Lá estavam o Jonas e a Catarina sentados em um banco. Ao seu redor, toda movimentação que uma manhã de segunda-feira exige. Uns para lá, outros para cá. Alguns apenas andando, a maioria na correria mesmo. O glacial silêncio entre os dois era violentado pela poluição sonora do ambiente. Falatório, gritos, coisas caindo no chão, barulhos metálicos e estampidos secos. Os dois estavam calados há mais de dez minutos. Apesar de muito próximos um do outro, eles não se encostavam. Existia uma discreta distância entre eles. Para Jonas, aquela ínfima distância era quase um abismo. O esporro ao seu redor era bem menos incômodo que o silêncio entre ele e a Catarina. Jonas não estava confortável com aquilo e, mesmo assim, o exterior não lhe torturava tanto quanto o que lhe remoía por dentro. Ele precisava falar e o fez:
- Isto não está legal, Catarina. Algo está acontecendo e não estou me sentindo bem com isso. Precisamos conversar e precisa ser agora. Você não fala comigo. O que está acontecendo?
- Estou vendo isso tudo aqui. Olha só que bagunça.
- Catarina, não é diss...
- Ih, caiu! Tadinha. Se esborrachou toda.
- Catarina, tenha paciência. Estou falando sério com você. Por que não fala comigo?
- Estou falando, Jonas. Não estou?
- Agora! Agora você está! Apenas porque perguntei o que estava acontecendo.
- Ah, eu estava distraída com essa bagunça divertida ao nosso redor.
- Então me diga com sinceridade, por que não está falando comigo desde a sexta-feira passada?
- Porque foi a última vez que nos vimos.
- EXATO! Exatamente, Catarina! Tivemos todo um final de semana e sequer nos vimos. Por que disso?
- Porque não foi possível.
- Não foi possível? Essa é a sua resposta? E que tal dar apenas um telefonema? Ou mandar uma mensagem pelo celular? Que tal?
- Jonas, eu só tenho cinco anos. O único telefone que sei manusear é de brinquedo, o console é o rosto de um palhaço e a qualquer comando que eu faça, aparentemente, é sempre o Papai Noel quem atende.
- Você poderia se esforçar. Você poderia tentar. Isso faria com que me sentisse mais importante.
- Jonas, nós só podemos nos encontrar aqui no colégio.
- E mesmo assim por rápidos quinze minutos.
- É que somos de turmas diferentes. Realmente, só é possível me encontrar com você no recreio.
- Pois é... E, curiosamente, quando tem esse tempo disponível, você desperdiça.
- Do que está falando agora, Jonas?
- De hoje. DE HOJE! DE HOJE, CATARINA! Passamos o final de semana inteiro sem nos ver e, ao invés de fazer uma refeição comigo, você preferiu suas amigas. Foi lá do outro lado do pátio ter uma refeição com as amiguinhas e me deixou só por aqui.
- Refeição, Jonas? Uma caixinha de Toddynho e um bolinho Ana Maria é uma refeição agora, Jonas? A tal da minha refeição, como você prefere chamar, durou três minutos apenas e agora aqui estou.
- Três minutos? Três minutos uma pinoia. E por mais que fossem apenas três minutos. Você sabe quanto equivale três minutos em um recreio de quinze minutos?
- Não, não sei. Provavelmente só saberei daqui a seis anos quando aprender razão, proporção ou porcentagem.
- É muita coisa, Catarina. Muita coisa. Você me privou de muito tempo do recreio quando poderíamos estar curtindo juntos.
- Curtindo? Jonas, estou há sete minutos do seu lado. Nos quatro primeiros minutos, você ficou calado com cara de paisagem. Nos minutos restantes, você desandou a lamentar das coisas. E ainda quer reclamar que preferi minhas amigas. Até o bolinho Ana Maria é melhor companhia que você, mesmo sendo seco e sem recheio, contradizendo a imagem da embalagem.
- Você está insinuando que sou chato?
- Não, estou afirmando que você está sendo muito chato. Chato de galochas.
- Desculpe-me, Catarina. Estou em um período ruim e isso afeta a minha auto-estima. Não imaginava que o Jardim de Infância fosse tanta pressão. É muita responsabilidade e acho que não estou preparado. Dividir os brinquedos com os amiguinhos é muito difícil para mim. Ainda mais porque sou filho único e, antes de entrar para a escola, passava o dia todo com a vovó. Por azar, ainda caí na turma da Tia Lenita. Ela é muito rigorosa. Seus padrões de exigências para a arrumação da sala beiram o autoritarismo. Queria ficar na turma da Tia Amélia. Ela é mais fofa e deixa os alunos brincarem com blocos e carrinhos ao mesmo tempo. Sabe, Catarina, essas cobranças mexem com a segurança das pessoas. Semana passada, me deparei em dúvida sobre qual cor utilizar para melhorar o meu desenho. Veja que absurdo, Catarina. Eu não sabia qual a melhor cor para o meu desenho. O desenho era um coelho. Você percebe o meu drama? Estou em um nível de estresse que sequer consegui lembrar que um coelhinho é branco. Claro que ficaria mais fácil me concentrar se o desenho do meu coelhinho parecesse de fato com um e não alguns traços que formavam um monte de feno. Só que isso não importa. Estou estressado, com a auto-estima abalada e qualquer coisa me incomoda. Você tem ideia do quanto é desesperador chegar aos cinco anos de idade neste estado? É muito frustrante e desgastante. E a tendência é piorar. Meu estado de inquietação é tamanho que não consigo mais pregar os olhos na sonequinha da tarde. Fico acordado andando pela sala entre os colchonetes pensando nos meus problemas. Eu não sei mais. Perdi a segurança que antes me tornava diferente dos meninos da minha idade. Estou confuso sobre tudo. Acho que nos precipitamos, Catarina. Talvez isso seja mesmo um enorme erro.
- Isso o que, Jonas? Do que está falando? Tudo que fiz foi, em um recreio, te ajudar a amarrar o seu tênis. E desde então você não larga do meu lado.
- Mas isso foi mágico, Catarina. Foi um momento inesquecível para mim. Eu sabia que você era a pessoa certa.
- Jonas, você está me assustando. Eu vou voltar para as minhas amigas, tá? Nos falamos qualquer dia desses.
- Não faça isso, Catarina. Não me deixe. Dizer que nos precipitamos e que foi um erro era apenas um blefe. Estava esperando a sua reação. Eu não sei como viver sem você. Catarina, você não entende que é a minha alma gêmea. CATARINA! CATARINA! EU VOU PULAR DO ALTO DO ESCORREGADOR!

Próximo conto da coleção: Barbearia à moda antiga

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Uma história com conteúdo

Tráfico de órgãos
Passei uma boa parte da minha vida quando jovem estudando no turno da manhã. Talvez isso explique a minha ojeriza por acordar cedo. Morava perto da minha escola, portanto, bastava me levantar com meia hora de antecedência que chegaria sem atraso. O problema era que, pela manhã, meu funcionamento era em um ritmo decadente. Tamanha era a minha lerdeza ao acordar que, para conseguir tomar banho, me arrumar, comer algo e chegar à escola no horário, exigia um esforço sobre-humano. Ainda assim, precisava acordar com pouco mais de uma hora de antecedência do início da primeira aula.
Todo dia era a mesma coisa. Lá estava eu me arrastando pela rua desejando que um avião caísse sobre a minha cabeça e me poupasse daquele martírio. Era um sofrimento diário sem fim. Apesar de constante e repetitiva, a agonia tinha sempre um ápice ao passar por uma pequena praça. O cenário era sempre o mesmo. Raros carros nas ruas, um silêncio capaz de se ouvir o semáforo mudando de cor, um sol surgindo com tanta má vontade quanto eu e um grupo de idosos sentados ao redor de uma mesa de concreto. Olhá-los por lá tão cedo quando podiam estar em suas camas quentinhas me causava um ódio bíblico. A minha ira com aquilo chegou a um ponto de assumir o controle do meu bom senso e, assim, fazer com que tomasse medidas nada simpáticas aos olhos da sociedade.
Certa manhã, fiz um esforço maior que o habitual e me aprontei em uma velocidade impressionante. Com passos apressados, rapidamente cheguei à pequena praça. Estava disposto a gastar os minutos de folga que obtive com a minha rapidez dando um verdadeiro sermão naqueles idosos que esfregavam toda a sua desocupação e desrespeito ao sono alheio nas nossas caras. Contudo, ao me aproximar, não pude evitar ouvir a conversa deles. Assustado, fingi amarrar os sapatos e por lá fiquei ouvindo o restante da conversa. Tudo que aqui reproduzirei foi escutado naquele dia. Isto será uma denúncia. E, como toda denúncia, precisarei fazer rapidamente, pois minha vida corre risco de morte.
A primeira coisa que vocês precisam ter em mente para que possam absorver de maneira imparcial o que direi é que aquelas pessoas não são velhinhos fofinhos. Não! Eles são parte de uma coisa muito maior. São como soldados, peões ou formigas. São os braços atuantes da maior rede de tráfico de órgãos do mundo. Explicarei detalhe por detalhe, é preciso então que estejam sentados, pois é assustador.
Começarei explicando a cena deles reunidos pelas manhãs. Ali, o carteado, o xadrez ou até mesmo o palitinho, é apenas uma grande encenação disfarçando o que de fato está acontecendo. Eles estão se reunindo para programar as ações do dia. Nada como um encontro de criminosos em local público. Ninguém levantaria suspeita disso. Não bastante, os encontros acontecem cedo demais. Horário que poucas testemunhas perceberão o imbróglio a se desenrolar naquelas mesas de concreto. E, quando há testemunhas, são alunos assonados, dispersos, em modo automático, incapazes de notar qualquer coisa, mesmo se um dinossauro em chamas sobre um monociclo passasse à sua frente. Este é o cenário e o momento perfeito para uma reunião de criminosos que estão tramando o próximo passo. Esqueçam Tarantino e seus Cães de Aluguel reunidos em uma cafeteria. O local onde realmente se planeja todo crime é sempre numa praça com mesas de concretos, idosos ao seu redor e alguns pombos por eles alimentados para afugentar pessoas cruzando o caminho.
Depois de feitas as reuniões, eles partem em disparadas para o local de escolha das suas vítimas. Para o sucesso da operação, pontualidade é de extrema importância. E somente por isso que fica justificado chegarem tão cedo às portas de supermercados e agências bancárias. Lá que a ação começa efetivamente. As pessoas costumam se iludir com parques desertos, ruas ermas e estacionamentos com pouca luminosidade. Tudo porque produziram muitos Jogos Mortais. Mais uma vez a genialidade da coisa reside na escolha do local. Uma movimentada agência bancária nos primeiros dias úteis do mês e supermercados apinhados de pessoas são os melhores lugares para se escolher as vítimas. Lá, a diversidade permite uma escolha acertada. Não é um jogo de acaso. “Ora, aquela mocinha está caminhando só por aquela rua deserta, vai ser ela.” Nada disso! Quanto mais pessoas no mesmo ambiente, maiores as chances de se achar a vítima perfeita. Não se esqueçam de que estou falando de um grande e complexo sistema de tráfico de órgãos. Ninguém vai comprar o fígado de um alcoólatra só porque era o único dando sopa numa madruga de domingo para segunda-feira no centro da cidade.
O brilhantismo da operação transcende a escolha do local das reuniões e o ponto de escolha das vítimas. Ele vai muito além. Sem saber do que se trata, a futura vítima é entrevistada por um dos seus algozes. Tudo começa com um espirro, uma tosse ou uma leve mão levada ao peito. A vovó criminosa brinca comentando ao vento sobre a sua fragilidade na esperança que alguém solidário entre na conversa. Pronto, o primeiro candidato à vitima está sendo entrevistado. Começa com aquele papo barato sobre saúde em que a vítima vai contando seu histórico médico naturalmente para a entrevistadora. Conforme as informações são coletadas, a pessoa vai se confirmando como uma boa vítima ou recebe a benção da negativa da organização. Gota, problemas gástricos e sedentarismo não costumam eliminar o candidato. O descarte só ocorre para diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e adeptos da culinária da Bela Gil.
Por conta da velocidade que as informações são trocadas e a necessidade de uma avaliação profissional, não é o idoso quem sacramenta se a pessoa será escolhida ou não. Sim, existe uma central de prontidão ouvindo cada conversa e avaliando ao vivo os candidatos. O microfone que capta as conversas normalmente está naqueles pequenos broches com santinhas. Afinal, quem desconfiaria de uma senhorinha devota? Já a central se comunica com a meliante idosa através do meio mais óbvio possível. Ou vocês realmente acreditam que tantos velhinhos por aí são realmente surdos a ponto de usar aparelhos?
Escolhida a vítima, a senhorinha responsável precisa se desvencilhar dela para não chamar mais a atenção, mas ao mesmo tempo precisa sinalizar para o próximo envolvido quem foi a pessoa escolhida. Nessa hora que entra em ação aqueles detestáveis lenços de bolso que todo idoso adora carregar. A idosa então finge passar no seu nariz, porém já existe nele um líquido gosmento. Será esse líquido gosmento que marcará a vítima. Em algum momento da despedida, ao tocar na vítima, geralmente no ombro ou nas costas, a velhinha danada a terá marcado.
Sem saber que está com um líquido quase invisível em suas costas, a vítima sai do estabelecimento comercial. Andando pela rua, inevitavelmente cruzará com a que é chamada por recolhedora. As idosas recolhedoras são facilmente identificadas numa multidão. Vestem-se impecavelmente, usam aqueles cabelos pintados puxados para o roxo, brincos e colares de pérolas, além de enormes óculos escuros de sua época de juventude que hoje ditam moda. Esses óculos são cruciais. Trata-se de um equipamento militar capaz de enxergar líquidos específicos usados por espiões. Com eles, a elegante senhorinha recolhedora identifica sem dificuldades a vítima pela calçada.
Assim que a vítima é identificada pela recolhedora, inicia-se a abordagem. Com bons modos, fala contida e gestos discretos, a velhinha pilantra se aproxima toda atrapalhada com diversas bolsas. Lamenta-se que mais uma vez se descontrolou e acabou comprando mais do que devia. A pobre vítima no primeiro momento não consegue ter restrições à pessoa que lhe aborda. Afinal, é supostamente uma vovozinha fina, portanto, acima de qualquer suspeita. Em seguida, surge mais uma vez, assim como no momento de seleção, um apelo para o lado solidário da vítima. Se ela caiu na primeira vez, cairá sempre. Logo, fica impossível dizer não para uma senhora com tantas sacolas por carregar. A vítima acaba a ajudando prontamente e a acompanha até sua residência, ou o local da sua emboscada.
Sobre o local onde a pessoa se tornará efetivamente vítima, sinto decepcioná-los, mas não é nada do que estão pensando. Trata-se de um simples apartamento de paredes na cor salmão, móveis antigos de madeira maciça talhada, crucifixos no topo de cada porta, lembrancinhas de várias viagens à Aparecida do Norte espalhadas por todos os lados, panos bordados sobre os encostos das cadeiras e um cheiro de armário de remédios abandonado em casa de veraneio. Adentrando à casa, antes mesmo que a vítima coloque as sacolas no chão, a recolhedora oferece em gratidão uma fatia de bolo. Sem dar tempo à vítima para negar, a recolhedora insiste e em seguida entrega uma bela e robusta fatia de bolo. Mais uma vez traída pela sua caridade, a vítima aceita e, pimba, fim de história. O bolo está batizado e a vítima apaga. Depois disso, é aquela coisa de sempre. Bisturi, sedação, sangue, tiram os órgãos, preenchem o corpo com jornal amassado e depois o despejam em algum aterro sanitário.
Por fim, o complexo processo é encerrado com transporte dos órgãos. Para que eles resistam tanto tempo em um longo voo até os países compradores, os órgãos são mergulhados em potes de vidro com um líquido específico para tal finalidade. O líquido é ligeiramente grosso, gosmento e de cor puxada para um caramelo ou marrom claro. Com o pote de vidro cheio até a boca com o tal líquido, o órgão praticamente some no seu meio. A sofisticação da coisa mais uma vez beira à perfeição, afinal, quem suspeitaria de uma senhoria carregando alguns potes de ambrosia em sua bolsa?


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sábado, 5 de novembro de 2016

O fabuloso imaginário do absurdo

Conto anterior da coleção: Seu Cosme das florestas

Projeto Brazil YYY
Meu nome é Greg Limpzk e sou o atual comandante da Força Intergaláctica no planeta Arizla. Lembro bem quando fui nomeado pelo primeiro ministro Kravotz III. Tudo ocorreu em uma bela cerimônia onde minha nomeação foi feita com honras. Palavras do próprio primeiro ministro.
- Por fim, é uma enorme honra manter cargo tão importante sob os cuidados de uma tradicional família que seguidamente assume essa posição. Por diversos anos, a família Limpzk vem sendo um dos principais atores na evolução das descobertas intergalácticas da civilização Arizla. Suas contribuições são enormes, especialmente pelo comandante anterior que acaba de nos deixar, o grande comandante Theof Limpzk, pai de Greg Limpzk, a quem tenho a honra de nomeá-lo neste momento como comandante da Força Intergaláctica de Arizla.
Sim, sou filho do grande Theof Limpzk, o maior estudioso espacial da história de Arizla. Seu legado é tão grande, que transcende apenas informações, datas e fatos interplanetários. Como herança, ele também deixou técnicas de exploração jamais imaginadas antes. Sua eficiência era tamanha que precisou de apenas uma viagem para concluir que não existia coisa alguma em Vênus. Provando a eficácia de sua metodologia, ele mais uma vez, em apenas uma viagem, conseguiu demonstrar que em Mercúrio não somente não tinha coisa alguma, como também era quente para dedéu.
Papai sempre foi fascinado pela Via Láctea, em especial o planeta Terra. Lembro que desde pequeno o acompanhava em suas viagens. Foram muitas. Até o início da minha adolescência, ele me deixava descer em solo com ele. Depois, mudou de ideia por conta das minhas traquinagens. O que se esperava de um adolescente em um enorme planeta? Era óbvio que aprontaria alguma coisa. Comecei fazendo desenhos enormes em plantações de milho. Ele não se zangou com isso. Achava os desenhos bem bonitos, inclusive. Ficou um pouco preocupado quando comecei a roubar vacas. As naves de exploração tinham poucos espaços naquela época. Não bastante, o cheiro das fezes impregnava com facilidade todo o nosso ambiente até então estéril. A gota d’água foi quando comecei a abduzir humanos e colocar sondas no reto deles. Tentei explicar que seria um novo videogame para o povo de Arizla jogar à distância. Ele não somente odiou a proposta, como odiou também o nome do jogo que remetia ao do seu avô, o bisa Syms.
Assim que assumi o cargo, dei prosseguimento ao seu projeto Terra. Ele é subdivido em várias etapas. Algumas foram concluídas e outras não. Uma das etapas previamente pesquisada à distância foi sobre um grande país chamado Brasil. A muitos quilômetros de distância no céu, papai coletou hábitos, características e informações sobre o povo daquela região. Essa parte do projeto levou o nome de Brazil YKK. Em seguida, organizou essa enorme gama de informações em uma espécie de enciclopédia específica para orientar suas equipes. Essa segunda parte levou o nome de Brazil YYK. Restou apenas a terceira e última parte, Brazil YYY, em que entraria em contato direto com o povo local tentando estabelecer comunicação. Infelizmente, papai faleceu aos 439 anos e não pode dar prosseguimento. Morreu tão novo, vítima de uma doença adquirida naquele planeta hostil. Nem nossa medicina avançada foi capaz de tratar o que eles chamam de virose. Uma doença vaga, incapaz de ser diagnosticada com precisão, tratada geralmente com um mesmo medicamento que raramente funciona e que, ao final, se revela como outra doença completamente diferente colocando em xeque a perícia do profissional de saúde.
- Senhor, estamos nos aproximando – disse um dos pilotos da aeronave.
- Ok – respondi para depois perguntar. – A equipe já iniciou o processo de preparação da vestimenta?
- Eles estão quase no fim, senhor. Contudo, acha mesmo que seja necessário?
Talvez outro comandante tivesse interpretado como insubordinação o questionamento do piloto Droidgor. Eu não. Entendia a insegurança dele e da minha equipe quanto às vestimentas de exploração. Por mais confuso que isso possa parecer, elas foram desenvolvidas após meu pai, o grande comandante Theof Limpzk, assistir a uma quantidade enorme de gravações obtidas daquele planeta. Segundo seus estudos, os terráqueos esperam que visitantes de outros planetas vistam roupas prateadas com uma espécie de globo de vidro ao redor de suas cabeças.
- Mas não precisamos dessa proteção, senhor. Nós respiramos o mesmo ar que eles.
O argumento era válido tecnicamente. Contudo, na cultura local, estar dentro do modelo de expectativa criado por diversas gerações era uma condição básica para o sucesso da expedição. Inclusive quanto à epiderme ser de cor esverdeada. Sem se esquecer de olhos grandes e negros.
- Senhor, nossa pele é de cor semelhante à deles. Nossos olhos são idênticos aos deles. Essa maquiagem obstrui nossos poros, além de irritar a vista.
- Jovem, é necessário. Confie em mim.
Mesmo contrariado, o piloto seguiu viagem e deu a ordem para que a equipe prosseguisse com a minha determinação. Confesso que o barulho deles se vestindo com aquelas calças e casacos feitos com papel laminado era bem irritante. A equipe custou muito a se adaptar aos capacetes de vidro. As falas ficaram com eco. Fora o desagradável “embaçamento” interno. O curioso é que, na nossa língua, o termo “embaçamento”, oriundo de embaçar, não existe. Foi preciso criar um verbete em cima da hora por conta desse evento.
- Senhor, estamos próximo. Acredito que tem algo de estranho por lá – anunciou o piloto apontando para o monitor.
O que causava estranheza ao nosso piloto Droidgor não era algo em tela, mas exatamente o contrário, a falta de algo em tela. Ele apontou para a tela e exclamou pela falta de pessoas. A imagem era de uma enorme avenida onde não se via uma pessoa sequer andando. Estava tudo deserto e parado.
- Não se preocupe – falei acalmando o piloto. – Provavelmente estamos sobrevoando uma área chamada de Brasília em um dia de domingo.
Não tão tranquilo quanto imaginei que ficaria, o piloto Droidgor seguiu viagem. Por pouco tempo durou sua parcial inquietação. Alguns quilômetros à frente, o piloto Droidgor detectou algo que mais uma vez lhe provocou desconforto. Desta vez, uma tela cheia. Uma imagem preenchendo todo visor principal. Uma enorme rodovia com muitas faixas surgiu na tela. Era impossível ver a cor do asfalto de tantos veículos. O cenário se completava assustadoramente quando notamos que nada se movia. Estavam todos parados. O vídeo em tela parecia uma foto.
- Foi como lhe disse, Droidgor. Estamos em um domingo. Isso deve ser provavelmente um grupo de pessoas chamado de paulistanos voltando do que eles chamam de feriadão, o aumentativo para feriado.
Com as duas situações coincidindo em uma mesma explicação, o piloto Droidgor se sentiu mais seguro. Foi possível notar quando mudou seu semblante. As sobrancelhas levantadas ajudaram a enfatizar sua tranquilidade, mesmo com a maquiagem verde e olhos exageradamente negros. Contudo, conforme percorríamos o céu daquele país, o meu semblante que mudava. Comecei a notar determinado padrão que naquele momento me causava desconforto. As ruas em sua maioria estavam em uma miscelânea da área Brasília com a estrada na volta do tal feriado dos tais paulistanos. Resumindo, nada de pessoas nas ruas e veículos parados para todos os lados. Sim, indiscutivelmente algo de estranho estava no ar. Mediante tamanha dúvida, não hesitei e ordenei que três soldados fossem enviados à superfície para um reconhecimento local.
- Senhor, tem certeza que não é prematura esta decisão? – perguntou o piloto Droidgor. – Não acha mais prudente um reconhecimento prévio à distância?
O piloto Droidgor tinha razão ao preferir seguir a cartilha padrão. Entretanto, eu não tinha dúvidas do quanto essa ação seria segura. Jamais colocaria meus soldados em risco em uma atitude prematura. Confirmei que a decisão estava mantida. Eles então foram projetados por raios teletransportadores até a superfície. Ficamos, portanto, todos no aguardo de contato deles.
- Senhor – a voz de um dos soldados no rádio foi tranquilizadora, além de ter quebrado a gélida tensão em nossa nave. – Tem algo de muito estranho aqui. A cidade está deserta. Não existem sequer resquícios de vida humana. Tudo foi ou destruído, ou saqueado, ou abandonado.
Acompanhado de um frio na espinha e gosto de sangue na boca, um temor se apoderou dos meus pensamentos. Teria eu demorado tempo demais para reiniciar essa operação? Será que esperamos muito e agora era tarde? É possível que esse povo tenha entrado em extinção? Se sim, por qual motivo? Uma praga? Talvez uma doença como a que acometeu o meu pai. Ou quem sabe uma guerra? Muitas dúvidas pairavam no ar aumentando ainda mais o meu pavor. Pedi a equipe em solo que tentasse pesquisar por vestígios.
- Senhor, notamos que por aqui existe uma espécie de módulo onde as pessoas podem adquirir informação. Uma tal de banca de jornal. Talvez tenhamos pistas por lá.
Seria perda de tempo. Segundo anotações do meu pai, o grande comandante Theof Limpzk, a mídia daquela população não era confiável. Com motivações obscuras, posicionamento parcial e métodos questionáveis, tudo que ela fazia era manipular a grande massa em finalidade própria. Pedi que verificassem outra fonte de informações.
- Senhor – um dos soldados me respondeu um tempo depois. – Senhor, encontramos uma tal de biblioteca. Parece ser muito semelhante ao que chamamos de Grande Arquivo Geral do Conhecimento. Todavia, ela raramente era frequentada pelo povo local. A movimentação de arquivos por aqui chega perto de zero.
- Soldado, mesmo assim ela pode ser útil. Verifique pela quantidade de tiragens que cada exemplar possui. Um arquivo com muitas cópias tem muita distribuição, logo é muito importante, portanto possui conteúdo de valor.
- Senhor, levantamos os três maiores por aqui. Um, pelo que entendi, é sobre uma fada. Sua autora se chama Kefera, quase o nome da minha mãe Kezera. O outro é sobre a vida de um certo Felipe Neto. Não entendi ao certo a importância de retratar a vida dele, pois não foi político, estudioso ou alguma pessoa de valor para a prosperidade do povo local.
- Tudo muito estranho, soldado – comentei em voz alta mantendo contato. – E o terceiro? Do que se trata?
- É Paulo Coelho, senhor.
Ora, Paulo Coelho era um dos autores mais vendidos do universo, inclusive no meu planeta Arizla. Todo o meu povo conhecia seus livros. Até entendo a grande tiragem naquelas terras, mas, de fato, não teria importância para a nossa pesquisa.
- Soldado, segundo anotações do meu pai, o grande comandante Theof Limpzk, a maior fonte de informações fidedignas para esse povo era as chamadas redes sociais. Elas eram as maiores formadoras de opiniões para esse povo. Sem mencionar que nelas que aconteciam os debates mais acalorados e, ao mesmo tempo, profundos. Solicito que tentem se conectar a algum servidor local no intuito de fazer uma varredura por informações.
Passado um bom tempo, o soldado retornou contato com notícias. Eram notícias nada agradáveis. O país tinha entrado em uma guerra civil generalizada. Estados lutando entre si. Irmãos de pátria matando uns aos outros. O povo daquele país foi dizimado. Isso era motivo suficiente para abortar a missão de exploração daquela civilização e voltar para o meu planeta Arizla. Contudo, não me daria por satisfeito. Precisava entender a fundo como chegaram àquele ponto. Era necessário retornar à Arizla com informações completas e, dentre elas, como tudo isso aconteceu era uma delas. Pedi detalhes ao soldado que acessava a tal rede social que guiava o povo local.
- Senhor, aparentemente, o líder deles, o homem que levava o título de presidente, não passava muita confiança. Não sei ao certo se o termo correto é confiança. A tradução aqui não fica muito precisa. A ideia principal é que o tal presidente não era um grande líder, não tinha muita aceitação, tampouco sabia comandar uma nação. Sua chegada ao poder, parece ter sido um grande equívoco.
Acho que me recordo de algo parecido no diário do meu pai, o grande comandante Theof Limpzk. Lembro-me da história de uma reviravolta no poder desse povo. Algo que remetia a uma trama que sequer os maiores escritores poderiam imaginar. Um sucessor que apoiava desde o princípio o líder desse povo e que, em questão de pouco tempo, o derrubou e tomou o poder. O líder, que no caso era uma mulher, foi deposto. O povo contrariado se recusava a aceitar o que foi chamado de golpe. A governabilidade do tal traidor tornou-se insustentável. Sim, recordo-me disso e esse fato foi tema de diversos estudos no meu planeta Arizla quando meu pai, o grande comandante Theof Limpzk, trouxe esse relato ao voltar de uma expedição. Dentro da nossa cultura, é inadmissível um episódio como esse. O poder no planeta Arizla é direto à família que assumiu o comando. Isso é passado de pai para filho sempre. Atualmente, estamos sob o comando do primeiro ministro Kravotz III, filho do ex-primeiro ministro Kravotz II, neto do ex-primeiro ministro Kravotz I e bisneto do ex-primeiro ministro Krakrot IV. Somente com a morte do primeiro ministro que seu sucessor assume. Considerando que a expectativa de vida no planeta Arizla é de pouco mais de 900 anos, o poder perdura por bastante tempo sob o comando de um membro da família.
- Senhor – o soldado que fazia expedição em solo interrompeu meu pensamento. – Senhor, acreditamos que não se trata do mesmo homem. Pelo que checamos na tal rede social, ele foi deposto em seguida. O povo conseguiu que fizessem um novo processo para escolha do líder. O que estamos entendendo é que em meio a uma turbulência política, que somada à insatisfação geral do povo, um candidato encontrou brecha e se elegeu. Daí, a crise só se agravou quando constataram o grande erro cometido.
- Soldado, consultando anotações de meu pai...
- O grande comandante Theof Limpzk.
- Exato! Existia um ex-líder que ameaçava assumir o poder a qualquer momento. É deles que estávamos falando?
- Não, senhor! Estamos falando de outro. Uma personalidade exótica que, pelo visto, era completamente incompatível para o cargo em questão. Curiosamente, essa pessoa tem o mesmo nome muito comum em nossos animais de estimação.
- Bolsonaro?
- Não, Tiririca.
- Pelo generoso Houtrap, que destino tenebroso!
Mais do nunca era necessário fazer um enorme relatório da história daquele povo e como chegaram à sua ruína. Aliás, sobre a sua ruína, ainda não sabíamos como se iniciou a guerra. Sabíamos apenas que foi algo generalizado. Permaneci então aguardando novas atualizações da equipe em solo.
- Senhor, estamos procurando mais informações, contudo temos alguns detalhes que nos ajudam a montar esse quebra-cabeça. Ao que parece, a guerra teve princípio entre duas províncias que não identificamos ainda. Todavia, tudo alcançou maiores proporções quando uma região conhecida como sul tomou proveito da situação para declarar independência. Esse foi o estopim para que toda a nação se enfrentasse por motivos próprios e defendendo seus interesses.
Características como essas faziam nossos pesquisadores considerarem o povo desse planeta tão primitivo. Não eram leais aos seus líderes. Não existia uma hierarquia instituída desde o berço para ser seguida e determinar a posição de cada um nos pilares que sustentavam a sociedade. Meus soldados são filhos de soldados. Sua obediência e total devoção à nação estão em seu código genético. Sequer precisam ser lembrados disso. Tampouco necessitam ser orientados quanto a isso quando jovens. São como os felinos de estimação da Terra. Os felinos de estimação da Terra já nascem sabendo que precisam enterrar seus dejetos. Não precisam ser treinados em relação a isso. Nesse quesito, podemos considera-los mais evoluídos que os próprios homens. Aliás, muitos seres da fauna local devem ser considerados mais evoluídos que os humanos. Por incrível que pareça, existe uma ave que, instintivamente, utilizando apenas algo como terra molhada, constrói sua própria residência. Uma moradia mais resistente às forças da natureza que muitas construídas pelos humanos, mesmo após muitos anos de estudo e dedicação a esse tipo de arte. Sem falar nas ferramentas, tecnologias e materiais sofisticados que os humanos possuem à sua disposição.
Passado meu momento de reflexão, a equipe em solo informou que tinha feito uma considerável coleta de dados e pediu então permissão para voltar a bordo. Considerei que seria uma atitude apropriada para o momento. Não havia mais necessidade de expô-los naquele ambiente que poderia ser ocasionalmente tranquilo, mas, ao mesmo tempo, prestes a se tornar hostil a qualquer momento. Confiei na avaliação da minha equipe de considerar que já tinham coletado informações suficientes e autorizei o retorno para a nave.
Enquanto viajávamos de volta para o planeta Arizla, comecei a montar o relatório conforme ia organizando as informações coletadas. Era uma gama de informações impressionante. Muitas delas estavam codificadas em uma língua própria chamada Meme. Aparentemente, sarcasmos, indiretas e falsas informações eram as principais formas de se propagar conhecimento pela rede social. Eram tantas informações que, acredito eu, para uma maior capacidade de assimilação, os humanos sempre resumiam tudo a uma imagem com legenda. Qualquer coisa maior que isso recebia menos atenção, independentemente da sua real importância.
Após uma longa viagem até o planeta Arizla, finalmente encerrei o relatório de maneira completa. Além dele, uma ótima apresentação estava elaborada. Para completar, todo o texto explicativo estava decorado. Tudo pronto para contar ao primeiro ministro Kravotz III como aquela população foi dizimada em uma guerra civil. Uma triste história que se iniciou com a insatisfação de um povo com um golpe de estado e teve como principal estopim a desavença entre duas províncias, Rio de Janeiro e São Paulo, a cerca de um desacordo cultural sobre um termo técnico, biscoito ou bolacha.

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