Conto anterior da coleção: DR
Barbearia à moda antiga
Douglas sempre foi uma pessoa desinteressada
com modismos, alienado caberia como um melhor adjetivo. Caso este conto seja
publicado em algum livro famoso, é bem possível que ele não tome conhecimento
e, por isso, não possa concordar comigo. Ao menos estará confirmando a minha
teoria. Sabe-se lá como, um dia ele tomou conhecimento da febre das barbearias
retrô. Novos salões de cabeleireiros montados com altíssimos investimentos,
design moderno e ambientação estereotipada em uma estética viril, tudo com a
desculpa para cobrar uma fortuna por algo que qualquer outro salão faria, mas
que seu cliente em potencial teria vergonha de frequentar para não afetar sua
masculinidade. Um cenário que gasta toda a criatividade dos seus gestores,
deixando claro que nada restou de novo e, portanto, o produto final do
estabelecimento será limitado a três modelos apenas. Muito cabelo com gel em
uma parte e máquina zero em outra te deixando parecido com um jogador de
futebol da geração atual. Barba cheia para te dar um ar de lenhador autêntico,
a não ser que se lembre que não existe a possibilidade de um lenhador autêntico
que more no meio da floresta tenha uma barba tão bem desenhada usando apenas um
machado ou facão. Rabicó tímido ao topo da cabeça que preferem chamar de futuro
coque samurai, quando deveria ser conhecido como Xuxa nos tempos áureos. Ao
menos, para justificar o preço exorbitante, oferecem um chope de cortesia
acompanhado de uma fina crosta de cabelos sobre ele. Menos pior que os cabelos
serão seus mesmo.
Quando explicaram ao Douglas do que se
tratava, foram breves. No seu entendimento, na essência tratava-se de um salão
à moda antiga. Para ele, isso soaria como música para seus ouvidos. Perto de
sua casa tinha um salão classificado como “de antigamente” e o preço era
compatível com seu orçamento. Sem relutar, Douglas foi dar um tapa no visual no
Salão do Licínio, tradição entre taxistas de Rocha Miranda. Sua entrada, com
portas de alumínio com vidro, permitia que os pedestres vissem seu interior.
Chão de pastilhas pequenas azuis, parede com madeira na metade de baixo e tinta
azul na parte restante ocupavam um lado do curto e estreito salão, enquanto uma
bancada de madeira e um longo espelho preenchiam o outro lado. Ao fundo, na
parede restante, recortes de jornais a forravam com notícias de importância
duvidosa em papéis amarelados.
Ao entrar no salão, Douglas notou que à
sua direita, na parte do balcão com espelho, tinha três poltronas para
atendimento e apenas um homem de pé entre elas. Era um homem aparentando seus
sessenta e muitos anos. Bigodes bem grisalhos, cabelos nem tanto. Vestia um
jaleco que um dia foi totalmente branco. Ele, ocupado organizando a sua
bancada, não percebeu a entrada de Douglas. Não querendo interromper o homem,
Douglas virou-se para sua esquerda. Um comprido banco de couro preto desgastado
e sem encosto ocupava o outro lado. Nele, dois senhores estava sentados entre
revistas e jornais espalhados. Um senhor mulato de enorme bigode negro e grosso
que lia uma parte do jornal também sequer notou a presença de Douglas. O outro,
totalmente careca, com pintas negras em seu couro cabeludo indicando uma longa
vida de exposição ao sol, portanto careca há bastante tempo, que se ocupava com uma revista de palavras-cruzadas levantou o rosto para ver quem entrava ao
recinto. Douglas então perguntou a ele se estava esperando para ser atendido.
- Esperando para ser atendido? –
perguntou o senhor careca. – Só se for para o Licínio pegar esses cabelos no
chão e colar na minha cabeça. Você ouviu essa, Licínio?
O barbeiro não respondeu, sequer se
virou. Douglas ficou parado sem graça esperando alguma reação dos outros dois
homens no salão. Nada aconteceu. Decidiu então se sentar. Enquanto se
aproximava do banco e começava a se abaixar, o homem careca o interrompeu.
- CUIDADO!
- O que? – Douglas se assustou, voltou à
posição totalmente ereta e deu um passo atrás.
- Cuidado... tratamento... com onze
letras – prosseguiu o homem careca.
- Perdão? – Douglas permanecia sem
entender o que acontecia e antes que o senhor careca o respondesse, o senhor
mulato interviu sem tirar os olhos do jornal.
- Facilita para o menino, Raul.
- Onze letras. Começa e termina com a
letra a.
- Não é disso que estou falando, Raul –
o senhor mulato indicou impaciência ao virar o rosto para o senhor careca. – Facilita
para ele que está perdido.
- Ah, sim – disse o senhor careca
chamado Raul. – Pode-se sentar. Eu não vou ser atendido.
- Entendi. Obrigado – Douglas agradeceu
ao Raul e depois se dirigiu ao senhor mulato. – Está esperando?
- Não – o senhor mulato fez uma pausa e
depois prosseguiu. – Assistência.
- O senhor presta assistência aqui? –
Douglas perguntou.
- Não, rapaz. É com ele que falo – o senhor
mulato apontou para o Raul ao seu lado. – Raul, cuidado e tratamento com onze
letras é assistência.
Com um sorriso no rosto, Raul agradeceu
ao senhor mulato e escreveu a palavra com um sorriso no rosto. Já o senhor
mulato retomou sua atenção ao jornal. Douglas ficou esperando alguma
movimentação por parte do Licínio que, apenas uns dois minutos depois, parou de
mexer em sua bancada e se virou para o rapaz. Sem dizer uma palavra, ele
ajeitou uma das poltronas, bateu com um pano nela e encarou o Douglas como quem
o convida para se sentar. O rapaz então se levantou e, a caminho da poltrona,
escuta a voz do senhor mulato.
- Você conhece o Raposão?
- Quem? – Douglas perguntou antes que
fosse interrompido pelo Licínio.
- Ninguém conhece o Raposão, Albeci.
Você vive inventando personagens.
- Não é invenção – disse o o senhor
mulato que atendia por Albeci. – Ele era o dono de uma loja de ferramentas ali
na Silveira Martins.
- Não existe loja de ferramentas na
Silveira Martins, Albeci – Licínio retrucou.
- Claro que existia – o Albeci persistiu.
– Esqueci o nome dela. Era... Era... Era...
- Ato de desespero – falou o Raul.
- Qual loja de ferramentas se chamaria
ato de desespero, Raul? – Licínio perguntou.
- Não – prosseguiu o Raul. – Ato de
desespero com oito letras.
- Então – Albeci cortou o Raul. – Vocês falam
que não existia loja, nem Raposão, mas deixem-me contar o que...
- Suicídio – Douglas falou.
- Viram? – Albeci apontou para o rapaz. –
Não disse que ele, o Raposão, existia e alguém o conhecia? O homem não aguentou
a crise e se matou. Tomou uma caixa inteira...
- Desculpe, – Douglas interrompeu o
Albeci – estava respondendo ao que ele perguntou. Ato de desespero com oito
letras.
O silêncio tomou o salão. Licínio cobriu
o peito de Douglas com um enorme avental de fechar na nuca. Depois abriu uma
gaveta para pegar tesouras e um pente. Daí, Albeci voltou a falar:
- Então, ele tomou uma caixa inteira de
chumbinho. Foi encontrado praticamente cinza. Parecia uma árvore velha.
- Como você quer, rapaz? – Licínio se
direcionou secamente ao rapaz fazendo com que Albeci se calasse.
- Pode tirar um pouco de volume, mas não
muita coisa. É para poder continuar jogando para o lado.
- Prossiga – disse o Licínio.
- Como dizia, foi suicídio – Albeci seguiu
sua fala. – É muita coragem mesmo. Precisa de muita coragem para poder...
- Albeci, eu não falei com você. Deixe o
menino acabar de falar, por favor. Preciso saber como ele quer o corte. –
Licínio cortou Albeci mais uma vez.
- Até parece, Lícinio – Albeci retomou a
palavra. – Você só sabe fazer o mesmo corte, desde a época que serviu o
exército e pegou aquela mamata de barbeiro do batalhão para não precisar ir
para a guerra.
- Não me difame na frente de um cliente
novo, Albeci. Eu não admito.
- Ele tem razão – Raul deu razão ao
Albeci. – Tem anos que frequento esse salão e nunca vi um corte diferente. Por
isso que só venho pelo social. Caso nunca tenha reparado, em todos esses anos,
nunca cortei o cabelo com você.
- Claro que não – Licínio retrucou. –
Você já era careca quando começou a frequentar o meu salão. Aliás, você nasceu
careca como qualquer bebê, mas duvido se em algum momento deixou de ser careca.
Douglas sentado na cadeira estava
desconfortável. Não sabia se eram amigos implicando entre si ou se discutiam de
verdade. Tampouco conseguia decodificar se os comentários feitos eram uma dica
para ele pular fora antes que fosse tarde demais. Ele demorou a se decidir, titubeou e, por mais que quisesse ir embora, Licínio deu-lhe uma tesourada em
seu vasto topete.
- Acredite em mim, rapaz – o barbeiro
lhe disse com voz firme. – São anos de experiência. Nunca ouvi uma reclamação.
Sem reação e percebendo que talvez fosse
tarde demais, só restou ao Douglas aguardar pelo estrago final. Ao menos, o
silêncio retornou ao salão permitindo que ecoasse o som do tique tique da
tesoura em seus cabelos. Não querendo parecer preocupado e, ao mesmo tempo, tentando
colaborar com o tal barbeiro de dotes questionáveis, Douglas ficou de cabeça
baixa olhando de canto de olho tudo pelo espelho. Via os movimento nada
discretos do Licínio. Notava também, por cima de um dos seus ombros, a
concentração de Raul com sua revista de passatempo. Por cima do outro ombro,
percebia a insatisfação de Albeci a cada linha lida no jornal. Sua cabeça
balançava negativamente. Em algum momento, a insatisfação chegou a um limite
que o fez quebrar o silêncio.
- Relator da CPI entrega seu parecer. –
disse o Albeci. – É tudo ladrão!
- O relator disse isso? Que coragem! – Licínio
exclamou.
- Não! Claro que ele não disse isso. Eu estava
apenas lendo o jornal... – Albeci foi interrompido pelo Raul.
- Aporrinhação!
- Olha só, Raul – Albeci demonstrou
impaciência. – Não quer falar de política, vai dar uma volta. Vai beber no
boteco com aqueles pinguços que só falam de futebol.
- Mas então estava escrito no jornal que
só tinha ladrão? – Licínio perguntou. – Não é muita ousadia do editor?
- Não, né, Licínio? – Albeci demonstrou
impaciência com o barbeiro. – Você acha que algum jornal escreveria algo do
tipo? É óbvio que foi um comentário complementar meu. Você não consegue prestar
atenção na conversa e...
- Por falar em prestar atenção – foi a
vez do Raul cortar a conversa. – Aporrinhação com nove letras.
- Empadinha – disse uma voz que entrou
no salão.
- Empadinha? – Douglas perguntou em voz
alta sem notar a entrada do homem. – Qual a relação de aporrinhação com
empadinha?
- Não tem – Licínio respondeu secamente.
- Empadinha quentinha – prosseguiu o
homem que segurava uma caixa de isopor. – Empadinha de carne, de queijo, de
presunto, de camarão...
- Empadinha de camarão é uma boa –
Albeci interrompeu o homem.
- Vai querer uma, Albeci?
- Não – ele respondeu. – Queria dizer
para o garoto que a sua empadinha de camarão pode ser uma boa justificativa para
associar com aporrinhação. Afinal, achar o camarão aí no meio de monte de massa
seca é tarefa árdua. Veja aí se não cabe empadinha, Raul. Faz todo sentido.
- Não – Raul respondeu alheio com os
olho fixados na revista. – A palavra termina com a letra o.
- Poxa vida – Albeci lamentou com ar de
deboche. – E saber que a resposta poderia estar bem aqui, não é mesmo,
Valtenir?
- Muito engraçadinho – respondeu o homem
das empadas que se chamava Valtenir. – Sabe que você pode ter razão? A
resposta pode estar entre nós como falou. Aliás, pode estar bem na sua cara.
Pense bem, Albeci. Aporrinhação com nove letras terminada com a letra o. Só
pode ser casamento.
- Não entendi onde quer chegar, Valtenir.
Não faz sentido.
- Não faz sentido mesmo – Raul prosseguiu.
- Obrigado, Raul.
- Digo que não faz sentido como resposta
para a revista. É óbvio que o que o Valtenir disse faz sentido. Seu casamento é
um porre, Albeci.
- Até você, Raul? Como se o seu fosse
uma maravilha.
- Mas o meu é!
- Aham – Albeci ironizou a resposta do
Raul. – Se fosse uma maravilha, não passaria o dia todo aqui.
- É mesmo, Raul – Licínio seguiu com a
temática enquanto cortava os cabelos de Douglas. – Por que fica tanto tempo
aqui? Você não corta os cabelos, não faz a barba, sequer lê o meu jornal. Fica
sempre com essas revistas que traz de casa. O que tem em casa que te faz
preferir ficar aqui.
- Chateação – respondeu o Douglas.
- Respeito, garoto – Raul foi enfático. –
Você é novo aqui! Não vai se sentar na janela, não.
- Não, senhor – Douglas apaziguou. – Digo
da sua revista. Aporrinhação com nove letras terminada com a letra o.
Chateação.
- Opa! Obrigado, garoto – Raul agradeceu.
- Chateação – Licínio exclamou em voz
alta com um sorriso de canto de boca. – Chateação é tudo que eu tenho aqui com
vocês dois.
- Mentira – discordou o Albeci. – É exatamente
o que não tem conosco aqui.
A coisa prosseguiu nesse ritmo até o
Douglas ir embora. O corte até que não ficou tão ruim. Muito pelo contrário.
Tanto que foi elogiado pelos colegas que perguntaram onde ele tinha feito. Ele
respondeu que em uma barbearia à moda antiga perto da sua casa. Um de seus
amigos tentou corrigir o Douglas dizendo barbearia retrô. Foi aí que Douglas
afirmou que eram coisas distintas. E, quando perguntado qual a diferença, ele
até tentou descrever com detalhes. Acabou desistindo e resumiu dizendo que era
algo como uma experiência assistida com terceiros para avaliar sua sanidade
mental. Os amigos se assustaram perguntando se era tão traumático assim.
- Sim, é – Douglas respondeu concordando e prosseguiu. – Só que, depois
que você entende o funcionamento, você quer voltar todo dia. Mesmo que seja
totalmente careca.
Próximo conto da coleção: Amiga de verdade