Escreveu, não
apagou, o pau...
Todos temos vícios, hábitos, manias
que de uma forma geral não nos incomoda, mas pode afetar outras pessoas. O
curioso é que a maior parte destes vícios são consequências de uma má-educação,
ou apenas a total falta de consideração pelos outros. Bem, pelo menos era isso
que Fernando pensava.
Fernando dava aula em uma faculdade,
de segunda à sexta, todas as noites. Como era em um andar com muito movimento e
aulas em todos os horários do dia, ao chegar, a sala estava sempre um caos.
Cadeiras espalhadas pela sala, papel no chão e o quadro completamente
preenchido por exercícios, conteúdos, gráficos etc.
Nas primeiras semanas até que ele
insistiu em arrumar as carteiras antes de liberar a entrada dos alunos, mas
facilmente foi vencido. Era evidente que aquele esforço em nada adiantava,
pois, assim que a boiada entrava, tudo voltava a ficar como era antes.
Carteiras eram arrastadas para as meninas ficarem juntas, outras viradas para
os rapazes colocarem as mochilas, quando não os próprios pés. Desistiu! A turma
que antes esperava sua autorização no corredor passou a entrar com ele.
A quantidade de folhas de caderno,
guardanapos, até latinha de refrigerante no chão era vergonhosa, mas nisso ele
nunca interferiu diretamente. Apenas tentava conscientizar a própria turma para
que não fizesse o mesmo. Sempre que iniciava uma aula, a mesma frase era dita:
– Senhores, agora que estamos no
chiqueiro, vamos provar que somos capazes de não piorar ainda mais essa
imundice!
De fato, suas turmas eram as poucas
que usavam exclusivamente a lixeira para despejar qualquer tipo de resíduo.
Já o quadro preenchido foi um fato
polêmico. No início, não o incomodava. Nem um pouco! Ele até gostava. Antes de
começar a apagá-lo, ficava parado admirando. Observava a técnica da escrita do
professor, o conteúdo, os exercícios. Chegava a desperdiçar quase cinco minutos
nesse processo.
Com o tempo foi ficando cansativo.
Principalmente quando era o quadro do professor Cequeira. Ele era responsável
pela disciplina Física II. Seu quadro era quase que inteiramente preenchido.
Usava canetas de todas as cores. Na hora de apagar ficava um borrão de
vermelho, com azul e preto. Era necessária muita força no apagador para que o
quadro voltasse a ficar o mais perto possível de cinza claro, pois o branco já
não era mais viável. O que Fernando não entendia era por qual motivo o
professor das disciplinas se negava a apagar o quadro ao término da aula. São
dois minutos! E ainda pode pedir para um puxa-saco qualquer fazer isso. Enfim,
essa rotina começou a irritá-lo seriamente. A sua primeira atitude foi colocar
na parede da sala, ao lado do quadro, um bilhete: “Caro professor, favor apagar
o quadro ao final da aula. O colega do turno seguinte agradece.” Mesmo assim,
não surtiu efeito. Todos os dias o quadro permanecia “sujo”.
Com duas semanas de bilhete na parede
e nenhuma mudança, Fernando reescreveu o mesmo bilhete, mas desta vez com o
tamanho da fonte dobrado e usando negrito. Agora eram dois bilhetes na parede,
o original e o mais chamativo. Resultado: nenhum.
Fernando se sentia impotente com
aquilo e para piorar, chegava em um horário no qual o professor anterior já
tinha saído de sala. Era sempre uma diferença de trinta minutos que não podia
ser diminuída, pois saía de outra instituição distante.
Certo dia uma aluna veio falar com
Fernando. Disse que chegou mais cedo que o normal e encontrou com o outro
professor ainda em sala. Também contou que esperou que saísse de sala e falou
para ele:
– Poxa, mestre, todo dia o meu
professor precisa apagar o seu quadro – mas foi interrompida pelo tal professor
que disse.
– Senhorita, fala para o seu professor
parar de melindres. É só um quadro para apagar – daí ele virou de costas e foi
embora.
Pelo dia da semana, Fernando não teve
dúvidas, era o Cequeira que destratou sua aluna. Ele sabia que o tal professor
tinha uma fama de lidar mal com os alunos, mas não imaginava algo do tipo. A
fama dele era principalmente de “crescer” como professor e fazer covardias e
terror psicológicos nos alunos, mas que fora do campus voltava a ser um carneiro
inofensivo. Fernando então tentou acalentar a aluna que foi solidária a luta
dele:
– Relaxa – disse ele com uma das mãos
em seu ombro. – Você fez o certo e ele foi um escroto. Agora é pessoal!
No mesmo dia fez um novo cartaz e
colocou acima dos outros dois, mas com a fonte maior ainda: “Prezado professor,
qual o motivo para não apagar o quadro que foi escrito por você mesmo?
Deficiência motora ou mental?”. O tal bilhete arrancou gargalhadas dos alunos.
Nos dias seguintes ele passou a se
deparar com o quadro limpo. Quero dizer, sem conteúdo, pois limpo mesmo ele não
ficava mais. Restava esperar passar uma semana exata para ver como Cequeira se
comportaria.
Chegado o dia, ele entra na sala e o
quadro está mais preenchido que o habitual. Muita coisa escrita, desenhada,
rabiscada. Fernando ficou possesso. Encarou o quadro por mais alguns minutos e,
antes de qualquer coisa, virou apenas o rosto para turma com uma expressão de
estupefato. E então a tal aluna fala:
– Fernando! O tal professor ficou
escrevendo no quadro enquanto a turma dele saía de sala e, quando me viu, disse
para avisar a você que lugar de palhaço era no circo e de fresco é na casa da
vovó.
Agora a coisa ficara feia. Fernando
anunciou para a turma que todos na semana seguinte chegassem uma hora mais
cedo, pois presenciariam o que ele iria fazer com o tal professor. A turma é
claro vibrou. Programa do Ratinho ao vivo na faculdade. Quem iria perder?
Exclamar para o colega ao lado que o professor era foda virou lugar comum naquele
momento.
Passada uma semana, Fernando sai bem
mais cedo da outra instituição e vai o mais rápido possível. Ele ainda não tem
a menor ideia do que vai fazer. Acredita que em horas como essas, a decisão
deve ser feita após a primeira resposta do oponente. Chegando à faculdade, o
estacionamento está lotado. Nenhuma vaga no quarteirão. Dá mais uma volta e
acha uma vaga. O flanelinha pede dez real (sic), ele diz de forma ríspida que
não vai pagar. Sua irritação começava a transparecer. O flanelinha dá um soco
nas costelas de Fernando e pega o dinheiro do seu bolso enquanto ele tenta se
recompor. Fernando não reage. Não há tempo para isso. Apenas diz ao flanelinha
que nunca mais apareça naquela rua, pois teria revide. Chegando ao corredor da
sala, a turma toda está a sua espera. Quando o avistam começam com o frenesi:
“Lá vem ele!” “É agora” “Vai lá, Fernandão!”. Ele sorri e pede que todos entrem
na sala. A turma imediatamente invade a aula de Cequeira que fica pasmo olhando
aquele mar de pessoas entrando e se posicionando como um teatro de arena. Após
o último aluno entrar, Fernando aparece na porta e Cequeira fica da cor que o
quadro deveria ser. Sua testa vira uma tampa de chaleira de tanto suor.
– Vou perguntar educadamente – diz
Fernando enquanto entra e se aproxima de Cequeira que permanece sentado e
petrificado. – Qual o seu problema em apagar o maldito quadro que você
escreveu?
– Bem – ele faz uma pausa que é meio
falta de ar, meio falta de coragem. – Quando eu chego também está escrito e tenho
o mesmo trabalho.
– E o que eu tenho a ver com isso? –
Pergunta Fernando.
– Ora – ele faz mais uma pausa
nervosa. – Estou apenas repassando o problema para frente. É assim que as
coisas funcionam.
– Então é assim que as coisas
funcionam – Fernando ironiza. – Cada um tem um problema, mas ao invés de
resolver, passa para o próximo?
– É – responde Cequeira quase
gaguejando monossílabo.
– Faremos assim então – ele se
aproxima ao máximo de Cequeira. – Acabei de levar uma porrada e me levaram
cinquenta reais do bolso. O que prefere? Que te dê um soco e depois me dê o
dinheiro, ou vai pegando o dinheiro enquanto te dou uma porrada?
– Peraí – fala Cequeira tentando se
afastar com as mãos levantadas.
– Olha só, eu tive esse problema hoje
e estou apenas passando para frente conforme a sua teoria. Como faremos?
Cequeira se levanta em silêncio, apaga
todo o quadro, pede desculpas e sai de sala. Os alunos de ambas as turmas vão
ao delírio. É possível ouvir seus gritos dos outros blocos. A história se espalhou
em uma velocidade absurda, fazendo com que as coordenações comunicassem a todos
os professores da regra de apagar o quadro ao final da aula. Cequeira pediu
transferência para fugir da vergonha, mas no outro campus descobriram o que
tinha acontecido com ele, fazendo com que pedisse licença. Nunca mais deu
aulas. Já Fernando virou uma referência como professor mais doido da casa. A
coordenação não concordava muito com essa fama, mas a garotada gostava dele,
então acabou ficando.