quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Amargura por Extenso




Golpes e ofensa
Dependendo da sua geração, com certeza você teve o prazer de assistir a algum capítulo da série para TV do Batman protagonizada por um barrigudinho e excêntrico Adam West. Aliás, justiça seja feita, poucas são as gerações que não puderam se divertir com as aventuras do homem-morcego e do garoto prodígio em carne e osso.
Alguns amigos, que se intitulam especialistas no Cavalheiro das Trevas, garantem que, desde o início, o propósito da série era fazer algo descaradamente ridículo, beirando à tosquice (perdoem o neologismo necessário). Tanto que era comum ver cenas dos dois em trajes normais surfando, escalando paredes em posições estranhas, dancinhas pitorescas, dentre outras bizarrices que só quem assistiu sabe do que estou falando.
A minha parte favorita era das lutas. Tratava-se de algo nunca antes imaginado. Era uma espécie de coreografia estilo Bud Spencer e Terence Hill, como objetos e pessoas voando com o mais simples golpe. Além disso, como se não fosse suficiente, eles criaram a sonoplastia impressa, a cada porrada dada, aparecia em enormes letras estilizadas e coloridas o som da pancada. Eram SOC, POW, PAF, CRASH, TUM e o sempre incompreensível WAM. Don Martin devia morrer de inveja dessas cenas com tantas onomatopeias rústicas.
Com tantos anos assistindo a essas cenas, fiquei na cabeça com a ideia de que isto deveria ser possível na vida real. Foi um bom tempo a cada movimento fazendo um sonzinho que se tornou uma coisa irritante, primeiro para os outros, depois para mim. Daí, pensei, por que não poderíamos expressar nossos golpes com palavras? E a resposta veio de imediato. Se fosse para expressar um golpe, que fosse com uma ofensa. Nada era tão compatível quanto isso, o problema estava em escolher o par perfeito: golpe e ofensa.
O primeiro golpe que me veio à cabeça foi o tapa. Clássico nas novelas, filmes e discussões acaloradas. Seu ruído estalado e agudo é espalhafatoso, ocupa todo o ambiente chamando a atenção de quem está ao redor. Precisava de alguma ofensa que fosse similar a sua sonoridade. A escolha de babaca foi óbvia por conta da sua igual pronúncia estalada. O problema consistia nas pessoas que insistem em chamar tapa de tabefe. Para elas, e apenas para elas, abrimos uma exceção. Por usar um termo tão cafona e piegas, autorizamos substituir a ofensa pelo também canastrão patife, que ainda assim tem som estalado.
Nas brigas entres homens, o chute no saco talvez seja o mais eficiente de todos os golpes. Para esses casos, o mais ideal é o ofensivo filho da puta. Contudo, para que se tenha sucesso nessa combinação, é necessário que o golpe esteja perfeitamente alinhado com a ofensa. Enquanto carrega o chute, o homem deve pronunciar o “filho”, durante o deslocamento da perna fala-se o “da” e no momento do golpe acertado em cheio solta-se apenas a sílaba “pu” de puta e na retirada da perna termina pronunciando a sílaba “ta”. Isso deve ser feito exatamente dessa forma, pois no momento do fatídico encontro do peito do pé do agressor com as joias da família do agredido, inevitavelmente o futuro eunuco irá uivar de dor, logo, ele ajudará na sonoridade da pronúncia da sílaba “pu”. O resultado final será um belíssimo dueto de imagem e som em perfeita sintonia. Palmas e gritos de “bis” são sempre escutados quando feito com precisão, apesar do agredido relutar em repetir a cena.
Já nas brigas entre mulheres temos o sempre inevitável puxão de cabelo. Não adianta. Mulher que vai brigar, puxa sempre o cabelo. Mesmo sendo comigo, elas puxam o cabelo, só que o do peito, pois sou careca. O que dói muito mais, diga-se de passagem. Para esse tipo de golpe, a sugestão fica para o sempre difamador piranha. Todavia, devemos ressaltar que a combinação neste caso, se assemelha ao caso dos homens recém citado. A sonoridade precisa estar alinhada com o golpe, para tal, basta seguir estes passos. Ao encher a mão com o cabelo da sirigaita, você, donzela educada e fina, pronuncia apenas a sílaba “pi”. Depois, durante toda trajetória de puxar o cabelo dela até encostar a cabeça dela no chão, você deverá prolongar ao máximo a sílaba “ra”. Se estivermos falando de uma mulher de um metro e oitenta, é esperado que essa sílaba demore aproximadamente 10 segundos para ser totalmente pronunciada. A sílaba final “nha” deve ser falada no momento que larga o crânio parcialmente descabelado e careca da rameira no chão.
Em um último minuto, recebi uma notificação dizendo que seria discriminação não colocar a opção de briga entre homossexuais. Portanto, fui obrigado a escrever o próximo e último parágrafo.
Na briga entre gays (já é considerado pejorativo usar este termo?) raramente temos agressão direta entre os interlocutores exaltados. Na maioria dos casos, o que temos são objetos arremessados. E, por mais irônico que pareça, a ofensa que aqui melhor se encaixa (sem trocadilhos) é vai tomar no cu, mesmo soando mais como sugestão que qualquer outra coisa. O propósito é que a cada objeto arremessado seja pronunciada uma sílaba da ofensa e como, em média, temos cinco objetos disponíveis em uma mesa a situação fica bem adequada. Fala “vai” e joga a carteira, depois “to” jogando o paliteiro, em seguida “mar” arremessando o saleiro, depois “no” jogando o porta-guardanapos e finaliza com o “cu” jogando o cinzeiro (aposto que imaginou um cu arremessando um cinzeiro). Note que necessariamente o último objeto precisa ser o mais pesado, não apenas para encerrar com um golpe contundente, mas também para ficar com passível com “cu” que pede algo enfático. Em alguns casos temos mais de cinco objetos disponíveis, para tal aconselhamos o uso de variantes como vai tomar no olho do seu cu, ou vai tomar no prolongamento final do olho do seu cu caso esteja na casa da avó que insiste em deixar a mesa cheia de quinquilharias à sua disposição. Em hipótese alguma deve-se usar o termo meio, pois algumas pessoas têm dificuldades na separação de sílabas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Histórias Reais Inventadas por Mim

Dilemas juvenis
Ela deitada na própria cama de barriga para cima mexendo no celular. Ele sentado no chão, encostado na cama. Os dois falavam amenidades e futilidades o dia todo. Alguns momentos de silêncio, nada muito longo, eram sempre quebrados por um comentário qualquer que gerava um longo assunto. Era assim por toda à tarde.
- Como está a minha avaliação?
- Ahn?
- A minha avaliação no Lulu – ele repete se prolongando. – Aquele aplicativo que vocês avaliam os caras com quem saem. Acho que andaram detonando a minha nota.
- Jura? Peraí – ela responde sem tirar os olhos do celular. – Vou ver para você.
- Aposto que foi aquela dentuça de merda – ele seguia falando, quase que sozinho, pois ela não tirava os olhos do celular. – Muito babaquinha. Incrível! Não aguentou a brincadeira que fizemos no shopping outro dia e agora está nessa de me fuder nessa parada.
- Ih rapaz!
- O que foi? Caiu muito?
- Não, peraí.
- Ela me detonou, né?
- Não, merda – ela gesticula com a mão para que ele faça silêncio. – Deu uma merda aqui.
- Como assim? O que houve?
- Não está mais aparecendo você.
- Como não?
- Vou procurar de novo?
- Será que meu perfil bombando derrubou o servidor?
- Não! Para, porra!
- Então?
- Não aparece na lista de homens. Será que trocaram seu sexo no Facebook?
- Ei, pode parar! A sapata aqui é você!
- Ah tá – ela gesticula com o dedo médio para ele. – No seu cu arrombado!
- Pare de perder tempo vendo perfil de mulher de biquíni e me ache aí.
- Não estava vendo nada disso.
- Claro que estava! Daí o programa achou que era uma sapata e não deixa mais ver homens.
- Onde que estava vendo menina de biquíni?
- Aquela menina estranha de biquíni na beira da praia com uma frase do Gonzaguinha que ironicamente tinha alergia à areia.
- A minha prima?
- Sei lá! Ela tinha um corpo estranho em forma de moringa!
- Era minha prima, porra! Não fala assim dela!
- Mas ela é assim!
- Nada disso. Ela é muito bonitinha, tá?
- Você pegaria?
- Claro que não!
- Viu? Baita canhão!
- Eu não pegaria porque não sou lésbica!
- Sapata!
- Lésbica! Odeio esse termo. Tão ofensivo.
- Ficou ofendida?
- Claro!
- Lésbica sensível!
- Imbecil! Fiquei ofendida por achar que sou lésbica, não pelo termo que usou. Ah porra! Vai pedir para outra pessoa ver então.
- Foi mal! Veja aí!
- Não está aparecendo! Sumiu!
- Você escangalhou o meu Lulu!
- Não! Eu não!
- Você quebrou o meu Lulu, sua invejosa?
- Por que disso agora?
- Isso é por que fiquei com alguma menina que você gostava?
- Não, merda!
- Então por qual motivo escangalhou meu Lulu?
- Nunca nem cheguei perto dele, tá?
- Como fico com um Lulu com defeito?
- Sei lá!
- Não precisava fazer isso.
- Para!
- Cruel! Cruel demais da sua parte!
- Não fiz nada! Pede pra outra menina ver o seu Lulu!
- Como? Como que ela vai ver meu Lulu, se ele está escondido? Você afugentou o meu Lulu! Ele já não era grandes coisas, mas pelo menos divertia algumas meninas.
- Cara, não estou achando.
- Pois continue procurando, você quem perdeu. Agora não tenho nem mais o primeiro L de Lulu. Como pode fazer algo do tipo com meu Lulu?
- Eu não cheguei perto dele! Só não sei onde está!
- Pode procurando! Chame a Madre Vasconcelos.
- Quem?
- Madre Vasconcelos.
- Quem é?
- A minha mãe costumava chamar a Madre Vasconcelos quando perdia algo.
- Nunca ouvi falar. Funcionava?
- Ela usava com frequência. Devia funcionar.
- E acha que a Madre Barcelos é capaz de...
- Vasconcelos!
- Sim, a Madre Vasconcelos é capaz de achar seu Lulu?
- Falando assim soou meio heresia.
- Eu uso São Longuinho.
- O dos pulinhos?
- Sim, parece mais simpático também. Madre Vasconcelos é um nome muito sério. Acho que depois que ela mostrar onde está o que perdi, vai dar um sermão sobre ser relaxada e tal. São Longuinho é mais bonzinho. Nem cobra os três pulinhos.
- Então pede para qualquer um. Ache o meu Lulu que você não sabe onde enfiou.
- Ei, não enfiei seu Lulu em lugar algum.
- Nem chegou perto?
- Nem um pouco.
- Nem gosta?
- Não! Nadinha!
- Sapata!
- Babaca.
- Vai, pode procurando.
- Por que procuraria?
- Porque você quem perdeu. Toda relaxada.
- Sou nada relaxada.
- Claro que é! Olha esse armário abarrotado de roupa! Tem quatro blusas em cada cabide.
- Eu tenho muitas.
- Que seja. Olha essa gaveta toda torta com excesso de peso que nem fecha. Vazando calcinha para todo lado. Parece o Titanic afundando e as calcinhas tentando fugir. “Hope e Victoria Secrect’s primeiro!”.
- Larga de ser exagerado.
- “Capitão, as calcinhas da Marisa e da C&A estão presas no fundo da gaveta.”.
- Para!
- “Salve todas! Menos as furadas e com freada!”.
- Não tem calcinha furada, nem com freada na minha gaveta!
- Ali! Toda esgarçada! Não serve nem para polir carro.
- Nenhuma calcinha serve para polir carro. Todo homem sabe disso.
- Sapata!
- Vai se foder. Não vou mais procurar coisa alguma.
O silêncio retorna ao quarto. Ele, no mesmo lugar, dá umas tímidas batucadas no joelho. Ela, agora de bruços na cama, continua mexendo no celular.
- Ih, achei!
- Viu? E aí?
- Caiu mesmo sua nota.
- Dentuça arrombada! Já falei que ela tem uma queda por você?
- Jura?
- Sapata!

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: A sorte que um dia sorrirá para nós


Matrícula
Certa vez, um amigo canadense ficou assustado quando comentei que, mesmo pagando impostos altíssimos, preciso pagar taxa de bombeiros, iluminação pública e conta de água. Eu sei que a comparação é injusta, afinal o Canadá é quase uma propaganda de margarina que saiu do controle do cenário da cozinha, espalhando-se pela sala, quartos, quintal e tomou posse de todo o país. Como não queria chocá-lo mais ainda, sequer mencionei que, mesmo pagando separadamente pela água, ainda assim preciso de um filtro eficiente, ou posso morrer caso beba a água que sai da torneira.
O fato é que estamos constantemente sendo roubados e não percebemos. Ou percebemos e somos tão bonzinhos quanto os canadenses, com a única diferença que aqui não é um comercial de margarina. Estamos mais para um eterno cenário de propaganda de Pick-up Offroad emprestado para gravações de propaganda de cerveja, se possível da Nova Schin para que a metáfora fique no mesmo nível da realidade. De qualquer forma, alguns roubos estão tão inseridos na cultura geral que sequer mais notamos. Foi o caso de Fabiano.
Ele abre a porta de vidro e deixa duas meninas de aparentemente vinte anos saírem. Elas vestem calças legging que desenham seus corpos abaixo da cintura. Detalhadamente, se é que me entendem. Fabiano, ainda parado na porta, dá aquela checada no “indo” delas, pensa alguma besteira e finalmente entra. Ele se aproxima do balcão, espera a jovem que está arrumando uns papéis lhe dar atenção. Ao notar a presença dele, ela pergunta em como pode ajudá-lo:
- Vim fazer a minha inscrição na academia.
- Ah claro – diz a menina já pegando alguns folhetos para mostrar. – Aqui estão os horários das atividades, o horário da casa e os serviços extras disponíveis.
- Serviços extras?
- Sim – ela responde sorridente. – Sauna, sala de repouso, piscina.
- Puxa, que bom.
- Aqui é a melhor do bairro – afirma enfaticamente. – Já sabe os valores?
- Ah sei – Fabiano responde pegando a carteira. – Liguei ontem. A mensalidade é R$ 150, certo.
- Isso mesmo. Com direito a tudo.
- Posso pagar em cheque?
- Sim, sem problemas.
Fabiano então preenche o cheque. Faz as perguntas de sempre sobre cruzar o cheque, deixar nominal, escrever algo no verso. A menina responde tudo pacientemente. Após preenchido, ele entrega o cheque para ela que confere:
- Perdão – ela devolve o cheque. – O valor está errado!
- Não custa R$ 150?
- Sim – ela diz mostrando alguns valores no folheto. – Mas você precisa pagar mais R$ 90 de matrícula. São R$ 240 no total.
- Matrícula?
- Sim, matrícula.
- Mas a mensalidade não cobre tudo?
- Cobre todas as atividades, menos a matrícula.
- E a que a matrícula me dá direito?
- A se matricular na academia.
- Preciso pagar R$ 90 para você me falar que sou bem-vindo e o mais novo associado da academia?
- Não – ela responde gesticulando como quem quer amenizar. – A matrícula é uma taxa para você fazer a inscrição na academia.
- Então vou pagar R$ 90 para você preencher meus dados em um formulário?
- Basicamente.
- Ora, não precisa – ele diz se apoiando sobre o balcão para enxergar melhor o monitor do computador que ela opera. – Você vai preencher um formulário em Word. Eu sei lidar com o Word. Tenho uma ótima digitação. Olha que legal, vou poupar seus dedos. Evitaria que pergunte oitocentas vezes como se escreve meus dois sobrenomes de origem polonesa. Você não vai passar a vergonha de escrever o nome errado da minha rua, pois provavelmente não sabe que desembargador é com esse e ainda economizarei meus R$ 90.
- Ahn?
- Exato!
- Não, não pode – ela agora fala em um tom agressivo. – Você precisa pagar a matrícula, ou não faremos a inscrição.
- Ok – diz ele com as sobrancelhas levantadas. – Pagarei a matrícula.
- Viu? Bem mais simples.
- Mas apenas se souber me explicar o que estou comprando com esses R$ 90.
- Comprando?
- Claro – ele abaixa as sobrancelhas. – Existem duas situações nas quais dou espontaneamente dinheiro para terceiros. Doação ou quando compro algo. Aqui não parece um orfanato, asilo, nem uma instituição tocada por padres Franciscanos descalços, logo meu dinheiro está sendo entregue para você em troca de algum bem ou serviço. Regra básica da economia.
- Ahn?
- Compliquei, né? Posso falar com quem consiga me convencer o que estou comprando?
A menina sai atordoada tentando entender metade do que Fabiano falou. Ela vai para uma sala, fica por lá por alguns minutos e volta acompanhada de um homem que aparenta ter pouco mais de quarenta, mas se veste como um garoto de quinze, bermuda, camiseta regata e um boné parcialmente encaixado na cabeça.
- Pois não?
- Você é o gerente?
- Pode ser – ele diz para depois se vangloriar. – Sou o dono da academia também.
- Ok, talvez isso seja embaraçoso, porque possivelmente você seja formado em educação física e não tenha a menor noção do que se tratam valores, bens, serviços, mas na ausência de um gerente, que deveria ser, em tese, um administrador, acho que você pode ajudar.
- Ahn?
- Já temos um padrão no atendimento pelo visto, não é mesmo?
- Perdão?
- Esquece – Fabiano gesticula com as mãos. – Estou com um problema sobre a matrícula.
- Sim, qual o problema?
- É que quando pago por algo, gosto de saber o que vou levar. Aqui supostamente estou fazendo uma doação de R$ 90.
- Não, você está pagando pela matrícula.
- E o que é a matrícula?
- É a sua inscrição na academia.
- E o que é a inscrição na academia?
- São seus dados salvos para nosso controle.
- Então tenho de pagar R$ 90 para que salvem meus dados? Você não acha que isso seria o mínimo de vocês?
- Ahn?
- Você não acha que cadastrar os meus dados deveria ser algo que vocês fariam inerente ao pagamento de matrícula?
- Não, o pagamento da matrícula te dá o direito de se inscrever na academia, cedendo seus dados, endereço, foto, tudo para que tenhamos o máximo controle de quem está frequentando o mesmo ambiente que o senhor.
- Mas isso não é um precedente básico para abrir um negócio? Você mesmo controlar quem frequenta seu estabelecimento é um dever seu!
- Senhor – o homem coloca a mão sobre o balcão indicando impaciência. – Não estou entendendo aonde quer chegar.
- Bem, pelo menos agora não sou o único a não entender algo por aqui – Fabiano diz colocando a mão sobre o balcão indicando deboche. – Eu só quero saber pelo quê estou pagando R$ 90, porque pagar essa quantia para que você apenas escreva meus dados em um papel é um despautério!
- Senhor, em concursos públicos se paga matrícula também para preencher seus dados e ninguém reclama.
- Não – Fabiano coloca as mãos na cabeça. – Em concurso público pagamos a matrícula para ter o direito a fazer a prova e disputar uma das vagas. A coleta dos dados é feita pela instituição, sem taxas, para controlar quem vai fazer a prova.
- Ok – o homem retira a mão do balcão e se afasta um pouco. – Foi um exemplo ruim.
- Péssimo!
- Que seja!
Os dois homens ficam calados se entreolhando. A menina, ao fundo, continua sem entender muito. Ou pelo menos achando que o futuro cliente é um louco.
- Vamos fazer o seguinte – Fabiano se aproxima pacificamente do balcão. – Pagarei apenas a mensalidade e não precisa fazer o meu cadastro, ok?
- Senhor, se não pagar a matrícula, não poderá frequentar a academia.
- Somente pagando a matrícula posso frequentar a academia?
- Exato.
- Ok – ele finge estar convencido para em seguida contra propor. – Pagarei APENAS a matrícula então, pois ela me dá direito a usar a academia.
- Não, senhor – o homem fala com as mãos na cintura. – A mensalidade que dá o direito à academia, logo precisa ser paga.
- Então a matrícula e a mensalidade dão direito à academia?
- Não, apenas a mensalidade.
- Então não pago a matrícula!
- Daí não poderá frequentar a academia.
- Senhor – Fabiano fala enquanto aproxima lentamente o rosto do balcão -, você tem ideia do que é um paradoxo?
- Como o senhor mesmo fez questão de falar, sou professor de educação física e nada sei de economia.
- Ahn?
Diz a lenda que eles ficaram nesse diálogo por quase três horas, até que Fabiano se cansou e foi embora sem se inscrever na academia. O dono e a menina ficaram fazendo piadas sobre o pobre homem burro que não conseguia entender o que era uma matrícula. Fabiano desistiu da carreira de advogado e abriu uma consultoria para pessoas reivindicarem o pagamento de matrículas em academias, escolas e outros estabelecimentos comerciais. Atualmente ele tem uma rede enorme de clientes, conta com três funcionários na elaboração de roteiros argumentativos e fatura mensalmente mais que o dono da academia com matrículas em um ano inteiro.


Próximo conto da coleção: Almoço e mentiras

terça-feira, 26 de novembro de 2013

O fabuloso imaginário do absurdo

Conto anterior da coleção: Invocação danada

Seu Cosme das florestas
O homem é um bicho engraçado mesmo. Vive reclamando de ir ao shopping com a namorada/esposa/peguete, um programa simples e tranquilo. Por lá, é possível caminhar em um ambiente agradavelmente refrigerado e sentar-se para descansar um pouco em um dos vários bancos. Caso sinta sede, poderá se refrescar com diversas bebidas e, ao final, ainda tem a chance de comer um delicioso hambúrguer cheio de doenças cardíacas associadas. Mas não, reclamam e reclamam. O que me incomoda nisso é que, ainda que reclamando, mesmo com todas as opções citadas, ele não se opõe nem um pouco a fazer aquela trilha bacana na floresta quando quer pegar a gatinha eco-esportiva. Na trilha, você anda como uma mula, geralmente em um calor úmido insuportável, não tem onde parar para descansar, tão pouco se aliviar. No caso de sede, contente-se com a água estupidamente quente do cantil profissional que comprou para impressionar e, ao final, vai ter de se deliciar com o saboroso sanduíche de broto de vagem que ela fez para você. Imperdível, não?
Nunca cogitaria fazer um programa desse tipo, mesmo tendo um algo a mais em jogo na parada. Nem mesmo se fosse a Carolina Dieckman. Aliás, a minha única chance de ter algo com a Carolina Dieckman no meio da floresta seria se resolvessem batizar com seu nome alguma doença provocada pela picada de um inseto tropical.
De qualquer forma, o tempo ocioso somado ao tédio no induz a ideias estúpidas. Bem, foi essa a desculpa que dei quando resolvi fazer uma caminhada sozinho na Floresta da Tijuca em uma manhã de quinta-feira. Não foi muito diferente do que descrevi, exceto por estar só e ter me perdido. Sim, mesmo com um caminho desenhado no meio da floresta, consegui sair da trilha, ir mata adentro e me perder. Pois é, pessoas com alto nível de ansiedade não conseguem seguir um caminho pré-determinado, elas precisam sair do trajeto, mas isto é papo para outra história. No meio do nada, tentando achar o caminho de volta, ouço um som familiar, um choro.  Já ouvi falar de peixes que possuem língua em formato de minhoca para atrair sua presa. Também já li sobre insetos que possuem estampas nas asas que enganam, insinuando que são menores, daí outro inseto desavisado se aproxima e, catapimba, vira janta. Mas não me lembro de ter escutado sobre animais carnívoros tijucanos capazes de imitar o choro humano para fazer uma emboscada na sua vítima. Fui lá conferir.
Era um senhor, muito velhinho, vestindo uma calça jeans surrada, uma camisa de malha branca e humildes sandálias estilo franciscanas. Estava sentado ao pé de uma árvore e chorava como uma criança, uma das mãos cobrindo o rosto e com soluços ininterruptos. Perguntei o que tinha acontecido.
- Eu fracassei – ele respondeu sem tirar a mão do rosto. – Eu fracassei, meu filho.
- Não, não fracassou – disse sem ter a menor certeza do que estava falando até perguntar. – Fracassou em quê?
- Na minha tarefa. Deu tudo errado. Fracassei na minha missão.
Admito que, quando ia à direção daquele senhor, esperava algo como ele estar perdido, ou deu uma volta para espairecer sobre a perda de um parente, ou só estava cansando de ser torcedor do Botafogo. Não estava preparado para lidar com o fracasso de um estranho. Aliás, não sou nem um pouco indicado em lidar com esse tipo de situação. Para dizer a verdade, tirando o lado humano da coisa, não sei por qual motivo perguntei em seguida de qual missão estava falando.
- Zelador – ele respondeu. – Fracassei como zelador.
Dificilmente se reflete sobre respostas em momentos como esses. O esperado é que seja ágil nos argumentos que irão confortar a pessoa em questão. Não consegui. Era mais forte do que eu e, quando me dei conta, estava tentando imaginar como um zelador pode falhar. Deixou um estranho entrar no prédio? Não atendeu o interfone antes do terceiro toque? Não socorreu o vazamento no banheiro da dona Alzira do 402? Colocou a ordem de atraso de pagamento do condomínio na caixinha do apartamento errado?
- Está tudo destruído! Nada mais será como antes – ele faz uma pausa. – Não tem volta, nem correção. Agora é tarde.
- Do que está falando? Não entendi.
- Sou o zelador da Terra, meu filho.
Olhei atentamente para as mãos dele. Não pareciam mãos de jardineiro. Não consegui entender o que significava ser zelador da terra. Estaria ele delirando? Perguntei novamente do que se tratava.
- Não, meu filho – ele olhou calmamente para mim e, apontado para tudo ao seu redor, continuou. – Sou zelador do planeta Terra.
Estava ali uma variável que não considerei ao criticar essa ideia demente de fazer trilha, encontrar um velho louco no meio da mata e ter de consolá-lo. Um senhor supostamente enviado pelo criador para cuidar do planeta estava em plena Floresta da Tijuca em uma crise existencial depressiva.
- Enviado, não – ele me corrigiu. – Fui contratado.
- Como?
- A cada geração, ele seleciona uma pessoa para cuidar do planeta. Zelar pelas riquezas e a vida passa a ser a nossa missão.
- Ele quem? O senhor está me dizendo que Deus te contratou para ser o faz-tudo do planeta?
- Sim!
- E como ele te achou? Anúncio de jornal?
- Em uma quermesse.
- E não tiveram outros candidatos? Entrevista? Dinâmica?
- Sim, éramos vinte candidatos. Apenas eu fui escolhido.
- E imagino que o seu diferencial tenha sido a mente aberta e sã.
- Também.
- Teve mais?
- Sei imitar vários pássaros.
- Ah, isso deve ajudar muito, não?
- Claro que sim. Falo com eles todos os dias.
- E eles entendem?
- Sim, me respondem sempre.
- E o senhor entende?
- Claro que não, meu jovem. Eles são pássaros! Onde já se viu entender o que um pássaro diz.
- Faz sentido – cocei os olhos como quem quer recobrar a consciência ou acreditar naquilo. – E a contratação?
- O que tem?
- É carteira assinada? Ele paga em dia?
- Não, acordo de cavalheiros.
- E acredita nisso?
- Ele é Deus, meu filho! Como não acreditar nele?
- Mas não é meio que um contrato de risco? Metas ambiciosas demais?
- Está insinuando que ele foi tendencioso?
- Não, jamais – ele tinha reagido com um tom áspero, precisei recuar. – Apenas acho pouco provável você obter sucesso nessa missão.
- Eu sei – ele concordou abaixando a cabeça. – Fui ingênuo.
- Foi otimista!
- Pode ser – ele concordou colocando a mão sobre um dos meus ombros. – Quer um trago?
- É maconha?
- Pura – disse ele esticando o cigarro suspeito para mim. - Mas cuidado, dá onda errada.
- Eu percebi. Eu percebi.

Próximo conto da coleção: Projeto Brasil YYY