Negociação
Todos se lembram daquela manhã de
agosto quando o país parou. Os canais de televisão, as rádios, os sites, o
assunto era um só. As pessoas em casa, nos restaurantes, bares, lojas de
shopping e no trabalho pararam o que estavam fazendo para acompanhar o que
acontecia na até então desconhecida loja de material de construção do Seu
Aristeu. Ninguém acreditava no que estava presenciando. Jamais foi visto algo
do tipo. Vou até contar do início para que tenham uma ideia melhor da barbárie.
Não tinha nem vinte minutos que Seu
Aristeu abriu a loja e lá estava o Orlando. Ele era um freguês assíduo que, por
fazer muitos serviços na região, estava sempre por lá comprando material. Como
dizia, lá estavam Seu Aristeu, o Orlando, mais dois funcionários e quatro
clientes. O movimento ocorria dentro da normalidade, olha uma peça aqui, pede
outra, não tem, tenta uma segunda opção. Tudo ia bem até que em determinado
momento, esperando um dos funcionários voltarem com o joelho que pediu, Orlando
resolveu se distrair com o jornal que estava sobre o balcão. A primeira notícia
que viu lhe atordoou de tal maneira que ficou pálido, seu sangue esfriou, suas
pernas tremeram e seu olho esquerdo piscou várias vezes solitariamente, mas
isso era um tique nervoso que ele já tinha.
“Prefeito
e vereadores suspeitos de desviar dinheiro da saúde municipal.”
Conforme andava com seus olhos pela
matéria, um piscando mais rápido que o outro, seu sangue começava a esquentar e
sua mente fazia conexões com o passado recente. Tudo fazia sentido. Há três
meses ele ficara viúvo porque não tinha equipamento no hospital público do seu
bairro. Equipamentos que poderiam ter sido comprados com o dinheiro desviado
pelos políticos da reportagem. O sangue ferveu e invadiu o cérebro aos litros
tomando controle (ou criando a falta de) da situação:
- NINGUÉM SE MEXE NESSA BODEGA OU
CABEÇA DELE VAI ROLAR!
As pessoas na loja tomaram dois
sustos. O primeiro com o grito do Orlando e o segundo ao verem que ele estava
com uma serra de mão encostada no pescoço de um dos clientes. Com um pouco de
medo, mas ao mesmo tempo assustados com aquele momento inesperado do sempre
tranquilo Orlando, todos resolveram colaborar e se sentaram no chão. Orlando
então abaixou as portas da loja deixando apenas uma fresta e gritou para que
todos na rua pudessem ouvir:
- CHAMEM A POLÍCIA E A TELEVISÃO! ESTÁ
ACONTECENDO UM SEQUESTRO AQUI – E foi assim que tudo começou.
Em poucos minutos chegou a polícia e
logo depois a televisão. Vários canais estavam lá para fazer a cobertura que
até então não era ao vivo, pois parecia apenas um assalto que deu errado. A
atenção só ficou redobrada quando o negociador da polícia, o major Viega,
iniciou os trabalhos e divulgou as exigências do tal sequestrador:
- O meliante disse que não vai liberar
os reféns, mas que aceita fazer uma permuta por outras pessoas e daí iniciar
uma nova negociação com a instituição. – Ele parou, pois um repórter ao fundo
perguntou como seria a troca e logo depois deu prosseguimento. – Pois bem, ele
disse ter em sua posse sete reféns e quer trocar por sete políticos a sua
escolha. São eles, o prefeito, o presidente da câmara dos vereadores e outros
cinco vereadores.
Começaram então as especulações. Qual
o interesse nele nos políticos? Enquanto a cúpula da polícia se reunia para
decidir como agir, Orlando começou a gritar suas motivações e isso criou um
rebuliço maior ainda. Tínhamos novas especulações. Iria ele matar os reféns?
Quem está a favor dele? Quem está contra ele? Seriam seus motivos nobres? Era a
melhor maneira de combater a corrupção? Somo todos Orlando?
Imagino que estejam pensando que não
existe tanto motivo assim para o país se mobilizar com um sequestro com algumas
exigências com viés particular. De fato, é algo bem incomum, porém realmente
não justifica e nem os condeno por pensarem assim. A mobilização geral
aconteceu conforme a negociação deu prosseguimento. Aparentemente, Orlando não
esperava uma negativa e, como era uma pessoa de pouca instrução, sua capacidade
de negociação e improvisação acabou comprometendo o que viria a seguir. Logo, o
que era uma comoção nacional com uma causa até então nobre, virou um sensação
de pena coletiva por tamanho constrangimento:
- COMO ASSIM NÃO FARÃO O QUE PEDI?
- Sinto muito, mas o que pediu está
além da nossa jurisprudência e acima da nossa alçada – afirmou o major Viega. –
Mas podemos negociar a libertação dos reféns para que tudo termine bem para
ambos os lados.
- Como terminar bem para ambos os
lados? Não tem como terminar bem para o meu lado. Eu já estou viúvo. Quero que
não termine bem para o lado dos envolvidos na morte da minha Zildinha.
- Sentimos muito, senhor, mas
exatamente por isto não poderemos acatar à sua solicitação. Nosso objetivo é
garantir a integridade dos reféns. Trocá-los por outros que não terão a integridade
garantida não faz sentido.
- E o que faço então? Libero eles por
nada? Vocês estão loucos? Acham que sou bobo?
- Senhor, peço que seja razoável.
Podemos negociar algo que seja para amenizar a dor da perda da sua Gilda.
- ZILDA!
- Exato! Peça algo que a faria feliz.
- Algo que a faria feliz? Deixe-me
pensar. Só um instante. (pausa) Já sei! Eu quero o presidente da Colgate.
- Como?
- O presidente da Colgate. Aquela
marca de pasta de dente.
- Eu entendi, mas como assim você quer
o presidente da Colgate? Qual a relação?
- Ele arrasou os negócios da Zildinha ao
lançar pastas de dente com aqueles tubos largos de tampas grossas que ficam de
pé quando colocados de ponta cabeça. A minha Zildinha vendia aqueles trecos de
acrílico que você podia colocar até quatro escovas de dente e um tubo para deixar
na pia do banheiro. Agora, ninguém compra porque o tubo não passa mais por ali.
Para piorar, os estojinhos que ela vendia para levar pasta e escova de dente
para o trabalho também ficaram incompatíveis. Ficou tudo encalhado! TUDO!
- Podemos pensar algo para as
nécessaires.
- Nessa o que?
- Nécessaires! Os estojinhos! Podemos
tentar vender como estojo escolar.
- Não tem como! Está escrito em letras
grandes que é um porta kit dental. Tem até um dentes desenhados. Seria como
usar um pote de geleia como porta brincos ou quinquilharias. Não, ninguém vai
comprar! Eu preciso deste homem e suas ideias mirabolantes destruidora de
negócios alheios.
- É, meu senhor, não vai ser possível.
- Como não? Nada aliviaria mais a alma
da minha Zildinha do que isto!
- Eu sei, mas teremos de fazer outra
coisa para aliviar a alma da sua Gilda.
- ZILDA!
- Isso! Peça outra coisa, mas seja
razoável. Pense antes de pedir. Deve existir outra coisa que a faça feliz.
- Ok! Está bem! Eu quero falar com
alguém da Brastemp.
- Ah meu senhor! Mas tenha paciência.
O que foi agora? A geladeira quebrou e estragou a torta que ela fazia por
encomenda?
- Claro que não! Não deboche da minha
Zildinha.
- Ok, me desculpe. Então se explique.
- São essas novas malditas máquinas de
lavar em que o compartimento do sabão líquido não segura o produto, daí ele
escorre antes dela encher e mancha a roupa toda.
- Ok, meu senhor. Foram dadas as
oportunidades. Irei autorizar que o esquadrão faça a sua parte encerrando de vez
a negociação.
- NÃO! NÃO OUSE! ESTOU NERVOSO E
FRUSTRADO! EU ARREBENTO A GARGANTA DELE E DE OUTROS MAIS ANTES QUE CONSIGAM DAR
O SEGUNDO PASSO!
- Tudo bem! Tudo Bem! Sem exaltação! Vamos
retornar à negociação. O que podemos fazer por você?
- Como assim? Sou novo nessa área.
Nunca vi sequer filme de sequestro, logo não sei como agir.
- Normalmente pedem um helicóptero
para fugir.
- Mas eu não sei como dirigir com
troço destes.
- Ah, mas poucos sabem. Por isto pedem
sempre com um piloto.
- Tá bom! Tá bom! Só que mesmo com um
helicóptero para onde iria? Eu moro ali na esquina mesmo.
- Você pode ir para uma cidade perto e
se esconder na casa de um cúmplice. Ou ir para outro ponto distante, de lá
pegar um carro já fora do nosso alcance e fugir.
- Gostei da primeira ideia. Minha tia
Alzira mora na cidade de São João do Torrão de Fubá. Não é tão perto, mas é um
ótimo lugar para me esconder.
- Viu? E a quantos quilômetros fica
daqui?
- Por volta de 180, no máximo 200.
- Bem, se o helicóptero estiver com
tanque cheio, dá para ele te levar e voltar.
- Ótimo! Quero então um helicóptero
com tanque cheio e piloto.
- Não temos helicóptero disponível,
senhor. Terá de pedir outra coisa.
- AH, MAS VÃO TODOS PARA O INFERNO! EU
VOU MATAR ESTE CABRA E É AGORA!
- CALMA! CALMA! CALMA! VAMOS COLOCAR A
CABEÇA NO LUGAR! Que tal algo que lhe traga conforto? Algo que diminua essa
confusão na sua cabeça.
- Certo! Justo! Eu quero o Maurício!
- Maurício? Quem é o Maurício?
- O desenhista! O Maurício de Souza!
- Ah sim, claro! Imagino que tenha
sido uma referência na sua infância e falar com ele irá reconfort...
- Não! Nada disso! Eu tenho uma dúvida
mesmo. Nunca entendi aquelas histórias do Cebolinha com o Louco. Aquilo
acontecia mesmo ou era um delírio do Cebolinha?
Ou o Louco dava drogas para o Cebolinha e os dois viajavam juntos?
- Está bem, senhor! Encerramos aqui as
negociações. Nós vamos entrar!
- NÃO! NÃO! PAREM ONDE ESTÃO! EU VOU
CORTAR A GARGANTA DELE – E Orlando parou ao notar o desespero de seu refém,
olhou ao se redor e viu a mesma expressão nos outros que lá estavam sob seu
terror já infundado, por fim, passeou com os olhos pelas prateleiras reparando
em cada produto como se fosse a última coisa que veria antes de ser preso e
tomou a decisão. – OK, EU TENHO APENAS UM PEDIDO. APENAS UM!
- Pois então diga, senhor!
- Eu quero falar com o desgraçado que
mandou padronizar para essa maldita tomada de três pinos.