O
forte impacto da morte
É
inevitável fugir do clichê de que a vida é um interminável vestibular. Estamos
sendo colocados à prova o tempo todo e, apesar de muito nos prepararmos, nunca
estamos prontos. Vida escolar, vida amorosa, vida profissional, controle
financeiro, relacionamentos familiares e entre amigos, são diversas as esferas
que nos submetemos. A enorme variedade de possibilidade de eventos que podem
ocorrer em cada uma dessas esferas é tão imensurável que, até mesmo o membro da
mais família mais centrada e estruturada não chega perto de estar preparado. Ainda
assim, insistimos em nos preparar para algo que não podemos prever ou controlar
e, pior ainda, acreditamos estarmos suficientemente preparados para estes
eventos. A incerteza é a regra. E o único fato que é inquestionável, preferimos
acreditar na impossibilidade, a morte. Assim como o calor é o oposto do frio, o
empanzinamento é o oposto da fome e a traição é o oposto da fidelidade, a morte
é o oposto da vida. Contudo, não posso lhe garantir que vai sentir frio, fome
ou será traído, mas pode afirmar que irá morrer. E esta certeza é tão absoluta,
mas ao mesmo tempo tão delicada, que dentro da sua obviedade reside o medo de
estar certo. Como se pudéssemos errar uma tautologia.
Quando
perguntado como gostaria de morrer, qual seria primeira imagem à sua cabeça? Na
cama de seu quarto cercado pelos familiares? Em batalha como um herói? Vítima
de algum erro do sistema democrático no meio da rua? Sozinho em um leito de
hospital? Acredite, sou capaz de adivinhar sua resposta e ela foi: Prefiro não
morrer! Não o condeno por pensar assim, muito pelo o contrário, te entendo. Por
conta disto, acredito eu que ao tentar entender como melhor uma pessoa lida com
a morte, a melhor forma de perguntar é, qual a situação de morte que acha que
seria capaz de lidar? Assim, induzo a pensar na morte em uma terceira pessoa,
tornando a situação menos trágica, mas ao mesmo tempo mais fácil de lidar, por
mais honesto e egoísta que isto possa soar.
O
clima era originalmente tenso, mas naquele momento passara para níveis além dos
habituais. Um casebre de um único cômodo, sem banheiro ou cozinha. Pouco mais
de vinte metros quadrados cercados por paredes de madeira estufada. Chão de
barro, telhado de amianto, um colchão no chão, uma janela que obstruía o ar e a
claridade mais que qualquer outra coisa, uma privada manchada pela falta de
higiene e uma pia em igual estado. Dentro dele três jovens de aproximadamente
17 anos. Pelo menos duas vezes por semana eles subiam o Morro do Salgueiro para
comprar drogas e usavam aquele barraco abandonado no meio do restante matagal
do local para consumi-las. Era um hábito que se repetia já tinha quase três
anos. Começaram quando estavam no primeiro ano do ensino médio. Atualmente,
permanecem no mesmo ano escolar, assim como igualmente mantêm a mesma rotina.
Gustavo
estava sentado no colchão. Seu rosto era pálido, olhos vermelhos e mãos
trêmulas, parecia não acreditar no que estava acontecendo. Em seu colo estava
Fabio, no braço ainda estava a seringa vazia, ao lado a borracha de farmácia e
ele estava tão pálido quanto Gustavo, mas uma palidez diferente. Uma palidez de
quem se foi. Uma palidez de inexistência. Ao canto, espremido entre a privada e
uma das paredes, com a boca suja de restos de vômito e ainda na posição fetal
estava Farofa. Seu vínculo de amizade com eles era tão grande e ao mesmo tempo
tão confuso que sequer saberiam dizer seu verdadeiro nome.
Por
alguns segundos, os olhares de Gustavo e Farofa se cruzaram. Não precisaram
pronunciar uma palavra sequer, estava claro o que se passava em suas cabeças.
Como aquilo pode acontecer? E logo com o Fabio, o mais destemido, o que sempre
consumia mais e mais. Era o primeiro a começar e o último a terminar. A
clássica ironia de que quem não tinha limites, um dia alcança seu limite da
pior maneira e o ultrapassa sem direito à volta.
Os
pensamentos em um momento como este sempre se confundem. O que fazer? Para quem
ligar? Fugir? Gustavo e Farofa sequer conseguiam pensar em algo do tipo. Ainda
entorpecidos pela mesma heroína que matou Fabio, só pensavam em como foram
parar ali. Eram jovens de classe média alta da Tijuca. Ganhavam roupas caras e
as vestiam de tal maneira para que parecessem desleixados, quase marginais.
Vendiam a imagem de mais experientes, pois já tinham provados todas as drogas
disponíveis no mercado. E, apesar de estarem presos ao mesmo ano letivo, se
consideravam melhores que qualquer outra pessoa.
Farofa
não se conteve. Chorou. Era difícil se controlar com a morte ali à sua frente a
poucos metros e ainda evidenciada com o cheiro de dejetos que Fabio começava a
eliminar pelo corpo. Dizia que não era justo. Ainda mais daquela forma. Fabio
foi quem os levou para as drogas, não podia também ser o cara que os fizessem
passar por isso. Farofa se levantou, cambaleou e seguiu. Foi embora. Chorando e
com a marca do pico ainda expelindo um pouco de sangue. Não olhou para trás,
nem se despediu de Gustavo que ali permanecia catatônico.
Sentado
ainda na mesma posição, parecendo ainda em transe, Gustavo dava entender que
não se abalava pelo que acabara de acontecer. Ou estava mais do que abalado.
Ficou ali parado por longos minutos. Foi possível sentir a temperatura do corpo
de Fabio diminuindo aos poucos até não existir mais. Em determinado momento
piscou, voltou a ter um olhar vivo, como quem recobrava a consciência. Olhou
para Fabio ainda deitado em seu colo, levantou-se cuidadosamente o apoiando no
colchão. Pegou o celular de Fabio, ligou e ativou o serviço de localização por
GPS. Em seguida foi embora.
Dias depois, Farofa e
Gustavo se encontraram no colégio depois de seguidas faltas no colégio.
Prometeram nunca mais consumir drogas. Promessa essa que durou pouco mais de
duas semanas, quando voltaram a consumir com a desculpa que era necessário para
superar tal episódio. No curto período o qual permaneceram limpos,
constantemente se perguntavam onde tinham errado. A resposta era sempre a
mesma: ter entrado para este mundo das drogas. Mas essa visão é muito simplista
quando comparamos com o homem que morre de diabetes ou ataque cardíaco por
ceder às tentações da gastronomia calórica. Seu erro maior foi ignorar a
existência da morte, a possibilidade de ela acontecer em virtude de uma má
decisão ou uma medida exagerada. Enquanto desprezavam a possibilidade da morte
e continuaram achando que o erro era apenas uma decisão equivocada que poderia
ser consertada a qualquer momento, eles permaneciam indo na mesma direção do
Fabio. Quando começaram a considerar que ao final de cada estrada existe o
mesmo ponto final, a morte, puderam perceber que a chave não está na escolha da
estrada, mas na velocidade e como a percorre.