As coisas não progrediam e, por mais
que isso me desagradasse, não podia reclamar. A situação atual e a forma como
tudo acontecia eram consequências diretas das minhas ações. Tudo resultado de
planos mal elaborados ou executados. Como se eu tivesse bolado algum plano esse
tempo todo, não é? A verdade é que, no lugar dos planos, estavam improvisos,
atitudes não pensadas e reações intempestivas. Resumindo, tudo culpa minha.
Mudar algo ou iniciar novas estratégias exigia coragem. Pois foi isso que
sacramentei em uma longa reunião comigo mesmo: coragem.
- Nossa, que surpresa – exclamou a
Isadora assim que abriu a porta e me viu. – O que faz aqui numa hora desta, meu
bad boy?
- Preciso de grana.
Veja a que ponto uma pessoa pode
chegar, precisar de muita coragem para pedir dinheiro emprestado para a pessoa
que mora na porta ao lado. Era a única pessoa que eu ainda conseguia convencer
com uma imagem diferente de um vaso quebrado colado faltando algumas partes.
Tratava-se da pior opção para se fazer isso e a única ao mesmo tempo.
Familiares e amigos eram palavras arrancadas do meu dicionário. Tatiana se
encaixaria como confidente, anjo da guarda ou qualquer definição piegas que faça
amolecer seu coração, por isto não está contida nos outros dois grupos.
Todavia, ela estava fora do estado a trabalho, tornando-se assim mais uma vez
inútil e me obrigando a tomar esta decisão drástica.
- Hum, que direto! Quanto?
- Cinquenta é suficiente!
Quem pede cinquenta reais emprestado?
Trata-se de uma quantia tão miserável que não resolve problema algum. É um
valor tão pequeno na atual conjuntura que até eu tenho na gaveta do meu
armário. Aliás, ter cinquenta reais na gaveta daquele troço de madeira que
chamo de armário o valoriza em 35%. Enfim, mesmo tendo, queria emprestado. Por
quê? Porque não queria gastar o meu dinheiro. Porque queria mais uma vez testar
a minha capacidade de envolver os outros. E talvez o mais principal dos
motivos, porque nunca iria pagar de volta.
- Cinquenta? Precisa de cinquenta para
comprar um vinho baixa renda de emergência?
- Não, preciso apenas para sair e me
distrair um pouco.
- E você não tem cinquenta reais?
- Tenho! Na verdade isso é uma
desculpa para vir aqui e poder olhar um pouco suas pernocas.
- Se quiser pode olhar meus peitos –
quando ela começou a abaixar o decote da blusa, eu a interrompi.
- Baby, sem distrações, por favor!
Preciso de cinquenta. É simples! Gastarei com diversão para relaxar.
- Ah – ela fez uma pausa exagerada
para enfatizar o deboche no meu vocativo oficial. – Baby! Você pode entrar e
ter tudo isso de graça.
- Ora, não me faças pensar que posso
lhe objetificar.
- Ah meu bad boy, quero ser seu objeto
sem peso na consciência.
Não posso negar, ela era ótima em
persuasão. Nas horas de trabalho, deveria ser um demônio. Dizer não a ela exigia
muita coragem. No meu caso foi fácil por motivos óbvios. Daí, voltei ao meu
apelo.
- Você pode me ajudar, ou não?
- Vou te ajudar, mas saiba que estou
muito decepcionada com a sua negativa à minha proposta.
- Ah, não me venha com melindres. Essa
não foi a primeira, tampouco será a última vez que rejeito os seus convites.
- Você me magoa tanto assim – ela
parou de falar para pegar o dinheiro na bolsa. – Saiba que vou cobrar juros.
- É mesmo? De quantos por cento?
- Vou cobrar em beijinhos, cafunés e
apertões. Ouvi falar que nisso você é muito bom.
- Você ficaria surpresa se soubesse no
que de fato sou bom – virei de costas e fui embora.
Para minha sorte, ela me deu uma nota
cinquenta e, assim que subi no ônibus, o cobrador disse que não teria troco. O
que ele disse mesmo foi que nem fudendo trocaria aquela nota na primeira
corrida dele. O fato é que não fiquei ofendido, nem preocupado. Pulei a roleta
e ainda consegui poupar alguns míseros reais.
Em poucos minutos lá estava no local
que criou a identidade que sou hoje, o ambiente que me deixava mais confortável.
Já frequentei várias cidades, estados e até países. Restaurantes com comida bem
servida, requintadas e de preço baixo. Praia, serra, floresta e fazenda fazem
parte da minha geografia histórica. Já estive no oito, no oitenta e qualquer
outro múltiplo de dois. E com toda essa pluralidade e opções extremas, o
submundo ainda assim me fascinava. Era meu lar, meu habitat, minha inspiração,
meu refúgio.
Millôr dizia “Família unida sempre,
reunida jamais”. Mesmo com toda aporrinhação de brigas, alfinetadas e
desavenças, família é onde muitos preferem estar. Outros, por exemplo, preferem
um estádio onde, mesmo com a agonia do tempo que não passa ou a tristeza da
derrota, é a sua válvula de escape. Eu precisava daquele cheiro de urina
misturado com bebida derramada, da confusão de músicas diferentes em um volume
desnecessariamente alto, da promiscuidade, da penumbra, do bizarro, da sarjeta,
das classes mais baixas e da falta de regras que gerava um equilíbrio invisível
que quando quebrado resultava em fatalidades. Eu precisava da Vila Mimosa.
Assim que entrei no Bar das Anjinhas,
procurei pelo dono: Seu Valdir. Quando meu viu, mesmo mais de dez anos depois,
ele me reconheceu. Abriu um largo sorriso e me chamou pelo apelido que apenas
lá respondia quando chamado: Insano. Um abraço, comentários mútuos sobre falta
de cabelo, rugas e barrigas salientes iniciaram a conversa enquanto nos
direcionávamos para a mesa vazia logo à porta. Se você vai à famosa VM, você precisa
ficar à porta. Ali você vê tudo e todos, se antecipa das possíveis merdas que
acontecem na rua e ainda consegue admirar o máximo de mulheres.
- Ainda tem a promoção da cerveja mais
o conhaque?
Pois é, para estar lá é preciso
obedecer aos costumes locais. Nada de Stellinhas, vinho, uísque ou Jack Daniel’s.
Na Vila Mimosa é cerveja nacional muito gelada acompanhada de conhaque para
ficar bêbado mais rápido. Como esse era um dos meus objetivos da noite, estava
unindo o útil ao agradável.
- Rapaz, tem uma garrafa pela metade
ali que vou deixar na sua mesa. Um presente por você ter voltado.
Enquanto ele voltava para o balcão
para pegar a tal garrafa, gritei para trazer uma gelada também. Exatamente, uma
gelada! Se você é cliente do submundo, você não pede pela marca. No submundo,
ou você confia no dono do bar, ou retorna para o boteco com etiqueta da zona
sul.
Já de volta, ele serviu um copo de
conhaque para cada um e a cerveja apenas para mim. Brindamos e o conhaque
desceu de um gole só. Ele sorriu. Eu franzi o rosto, estava enferrujado para
aquele ritual. Enquanto bebericava a cerveja comecei a perguntar pelas meninas
da minha época. Fernandinha? Juju? Paola? Dani Furacão? Val? Manú Cambeta? As
respostas foram as piores. Morreu. Virou evangélica. Foi assassinada por dever dinheiro
a um traficante! Casou e voltou para o interior. Sumiu e dizem que está com
AIDS internada em algum hospital público. Trabalha em beira de calçada na
baixada.
Nada daquilo era surpresa, porém não
deixava de ser triste. Eram boas meninas que participaram de uma parte da minha
vida. Virei muita madrugada ouvindo as lamentações delas ou histórias que me
calejaram mesmo sem ter vivenciado. Aqueles seis anos que trabalhei na noite terminando
o turno por lá para relaxar foi uma escola e elas foram, de certa forma,
professoras. Ouvir aquilo não era exatamente o que tinha em mente para aquela
noite.
- E saber que você queimou muita grana
com elas, não é mesmo?
- Nunca paguei um centavo para elas.
- Jura?
- Sim – confirmei enfático ao fim de
um gole. – Você sabe muito bem que não curto sexo por dinheiro.
- Tem razão – ele pausou para servir
mais uma dose de conhaque. – Mas nem naquela história do anão com a
Fernandinha?
- Aquilo foi diferente. Eu dei dinheiro
para a Fernandinha não trancar a porta enquanto fazia o programa com o anão,
pois eu queria ver a cena ao vivo.
- Você fazia muita merda, rapaz – ele soltou
uma risada e prosseguiu. – É estranho te ver depois de tanto tempo assim sério.
Um homem.
Talvez fosse ainda muito cedo para
quebrar o encanto da minha imagem que ele fez naquele momento. Pelo menos
enquanto ainda tinha conhaque grátis na mesa. Concordei assertivamente com a
cabeça e pedi outra gelada. No meio tempo que ele ia até o balcão, uma mocinha
se sentou ao meu lado e, pelo visto, algumas tradições não mudam por lá. A
abordagem era uma delas. Ainda bem:
- Oi, gato – ela disse repousando a
mão com vontade no meu pau. – Vamos gozar gostoso?
Qual homem diria não para uma proposta
como esta? É exatamente por isto que este local ficava lotado no início do mês.
Com dinheiro, os trabalhadores que lá frequentavam, seduzidos por uma proposta
tão direta, saiam com os bolsos vazios. No resto do mês, eles nem davam as
caras. Resistir, mesmo sem dinheiro era impossível e sempre existia uma boa
alma caridosa a cada vinte metros disposta a emprestar uma graninha a juros tão
obscenos quanto as propostas.
Fitei a mocinha por inteira e confesso
que ela era bem apessoada. Para os padrões locais, ela era um achado. Tanto que
meus olhos procuraram pelo Seu Valdir pelo bar. Quando o vi, ele gesticulou para
mim como quem diz “vai nessa que é a boa”. Não, não iria nessa. Ele sabe que
não pago por sexo.
- Baby – retirei calmamente sua mão da
minha virilha, a beijei para que não se sentisse tão rejeitada e a repousei
sobre a mesa. – Temos um problema aqui, pois procuramos coisas que um não pode
oferecer ao outro.
- Será mesmo? – Ela perguntou com a
convicção de quem consegue convencer qualquer um por lá apenas aproximando
muito seu rosto.
- Oh sim! Tenha certeza disto.
- Então me fale o que queremos e não
podemos oferecer?
- Eu quero uma companhia para beber e
conversar. Você quer um cliente.
Surpreendentemente, ela gesticulou
para o Valdir indicando que a garrafa estava vazia e que queria um segundo
copo. Ele prontamente a atendeu, nos serviu de conhaque e cerveja. Brindamos o
conhaque, bebemos de um gole só e, assim que colocou o copo na mesa, ela se
virou para mim e perguntou sobre qual assunto conversaríamos.
- Bem – ainda impressionado com a
iniciativa daquela menina, que deveria ter no máximo 22 anos, prossegui. – Podemos
começar perguntando o seu nome.
- Mariana.
- E como sua mãe lhe chama?
- Nunca conheci minha mãe, mas
acredito que me chamaria de estranha já que me abandonou na maternidade ao me
dar a luz.
- Ok – parei para dar um gole no resto
da cerveja em meu copo. – Vamos tentar manter a conversa menos constrangedora,
tá? E como consta seu nome no documento de identidade?
- É o mesmo! Não tenho nome de guerra.
Mariana ironicamente se chamava
Mariana mesmo. Estava presenciando uma geração de garotas de programa que
usavam o próprio nome no trabalho. Aliás, uma geração que preferia o termo
garota de programa a puta. Como a própria Mariana explicou, puta só poderia ser
usado no sexo, mas no diminutivo, pois putinha é música para os ouvidos.
Ela fugia de todos os clichês. Não
veio do interior, não foi abusada pelo pai, nem iludida por uma cafetina que prometeu
fama no programa Malhação. Mariana foi criada pela enfermeira que ajudou no seu
parto assim que sua mãe lhe abandonou. Estudou, fez o ensino médio, mas sempre gostou
de sexo e dinheiro. Descobriu que poderia ter os dois ao mesmo tempo, mas
também tinha consciência que não conseguiria trabalhar em algum puteiro mais
refinado. Sobre os clientes, que na sua maioria são operários suados com o pau
todo ensebado, ela diz que cobra caro com o consentimento do Seu Valdir que
concorda que ela é um achado por lá.
Conversamos por um bom tempo, mais
precisamente por dez garrafas de cerveja e a cortesia de conhaque do Seu
Valdir. Em determinado momento, sua mão novamente pousou sobre meu pau, apertando-o
com mais vontade. Senti certo ar de cobrança na sua fala:
- E aí, estrangeiro? – Ela cismou de
me chamar de estrangeiro por toda noite ao achar que não me encaixava naquele
ambiente. – Já falei e muito sobre mim. Não acha que é a hora de tirarmos nossa
roupa e passarmos nossa conversa para outro patamar?
- Baby, agradeço muito em ter ficado
comigo toda a noite, mas o seu problema continua na mesa. Eu não pago por sexo.
- Quem disse em pagar? Você foi gentil
comigo, me deu várias cervejas, ganhou minha atenção à noite toda e os possíveis
clientes foram todos embora. Nada mais justo que terminemos essa noite da
melhor maneira.
Não, eu não podia aceitar por vários
motivos. Motivos físicos, pois não tinha a menor certeza se meu pau subiria, se
teria condições de me manter acordado por todo o sexo ou se conseguiria gozar
ao final. Motivos éticos também, pois a envolvi na conversa de uma forma
covarde, assim como ela tentou me envolver para que fizesse o programa
inicialmente. A diferença está nos vários anos de experiência que tenho com
garotas de programa e sua conversa barata, além de uma década praticando
conversa com desconhecidas toda noite.
Agradeci e disse que ela era um ótimo
motivo para que voltasse a frequentar mais a Vila Mimosa. Puxei a nota de
cinquenta que Isadora me deu e coloquei sobre a mesa. Ficou bem claro naquele
momento que aquilo era tudo que eu tinha. Ela então perguntou como eu voltaria
pela casa. Respondi que pretendia ir de ônibus, mas dependia do Seu Valdir.
- SEU VALDIR – gritei acenando com a
nota de cinquenta. – VAI TER TROCO?
- Troco? – Ele riu. – Você vai ficar
me devendo uns quinze!
Cocei a cabeça e Mariana “coçou” a
bolsa. Sacou uma nota de cinco reais e me deu para que fosse para casa de
ônibus. É, eu ainda conseguia envolver os outros. Agradeci, anotei meu endereço
e a entreguei, ao tentar dar um beijo em seu rosto ela se virou. Nos beijamos e
deu para ouvir Seu Valdir falando que certas coisas não mudam. Fui depois ao
balcão me despedir dele. Prometi lhe pagar o que fiquei devendo e tudo que ele
pediu foi que eu não sumisse. O que um dia foi um cara legal estava virando um
velho foda.
Fui embora completamente bêbado e com
muita dificuldade consegui chegar à Praça da Bandeira. Ao parar no ponto de
ônibus, avistei um ambulante. Mostrei a nota de cinco reais e perguntei se me
venderia duas latas de cerveja. Ele disse que sim. Fui então a pé para casa com
as duas latas. Normalmente ir da Praça da Bandeira até a Lapa a pé é uma longa
caminhada. Cambaleando fica mais longo e cansativo ainda. As duas latas de
cerveja ajudaram a me manter ocupado durante todo o trajeto, não reparando assim
em mendigos, pivetes ou qualquer outra distração.
Após quase quarenta minutos de
caminhada trocando as pernas, trombando em postes e usando bancas de jornal
como pontos de apoio, cheguei em casa. O porteiro me ajudou a entrar e me
colocou no elevador. Chegando ao meu andar, usei o resto das minhas energias
para abrir a porta do elevador e desabei no meio corredor fazendo um barulho de
respeito. Enquanto ainda estava no chão, ouvi barulho de chaves. Isadora abriu
a porta.
- Meu pai – ela exclamou parada ao meu
lado com as mãos na cintura. – Como você consegue fazer isso? Aliás, como
consegue ficar assim com apenas cinquenta reais?
- Eu sou um cara de muitos talentos.
Ela assentiu e me ajudou a me
levantar. Ao invés de me colocar para dentro da minha casa, ela me levou para a
casa dela. Disse que eu estava em péssimo estado e, de fato, ninguém podia
contestar isto. Ainda durante uma série de exclamações envolvendo o quanto
estava surpresa em me ver naquele estado, ela foi tirando meus sapatos, meia,
calça e camisa. Em seguida me deitou em sua cama.
- Mocinha, você está se aproveitando
de mim e isto não está certo.
- Estou cuidando de você. Cala essa
boca!
Ela me calou com um beijo.
Aparentemente eu não era o único capaz de envolver os outros.