quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Volúvel

Mariana
- Merda!
Coloquei a chave na fechadura e nem precisei girar, ela já estava aberta. A cabeça não andava boa já tinha um tempo, mas sair de casa e não trancar a porta era muita bobeira. Não estava voltando de mais uma noitada inesperada que justificasse sair tão afobado. Não, muito pelo contrário. Quando fui para a rua disposto a resolver algumas coisas nem eram onze da manhã. Como não estava apressado, não fazia sentido ter cometido esse deslize. Talvez a hora explique a distração, afinal estar acordado tão cedo é sempre uma boa desculpa. Ok, dez da manhã não é muito cedo, só que, para os meus padrões, o horário é equivalente ao de um assalariado convencional.
Pois bem, lá estava eu seis horas depois que deixei a minha casa inteiramente vulnerável. Afinal, para quem não sabe, o trinco da maçaneta está quebrado, logo, ou você tranca com chave, ou qualquer sopro faz a porta se abrir. Como não tranquei, com o mínimo esforço, empurrei a porta com a ponta do dedo indicador. A sala que agora se revelava era bem diferente da que quando saí pela manhã.
- Merda!
Bagunça e caos na minha sala. Era exatamente o que esperava encontrar, porém me deparei com o oposto, uma sala com tudo no lugar. Nada de cobertor largado no sofá, livros entreabertos por todos os lados, garrafa de vinho vazia no chão e camisas no encosto da poltrona. Alguém esteve por aqui. Ou melhor, alguém ainda estava por aqui, pois nenhum daqueles dois quadrúpedes louros que moram comigo estavam à porta me esperando. Talvez fosse a faxineira. Não, era uma terça-feira e ela só aparece às quartas-feiras.
Talvez não devesse dizer isso, pois todos diriam que era algo previsível, mas eu tenho um péssimo hábito de dar cópias da chave da minha casa para metade da cidade. Portanto, cedo ou tarde era esperado que alguém aparecesse na minha casa sem ser chamado. Bem, poderia ser pior. Alguém sem ser chamado chegar à minha casa em um momento inoportuno. Não era o caso, o qual confesso que ainda assim pode ser pior ainda. Essa pessoa ser alguém que eu não queria ver em hipótese alguma. Pois é, não bastante o complexo de São Pedro solidário, tenho o terrível defeito de não pedir de volta a chave quando não faz mais sentido. Isto é, alguns desafetos meus, que provavelmente desejam muito o meu mal, podem com facilidade entrar na minha casa. Fui para o quarto esperando o menos pior, algo como uma cabeça de cavalo em minha cama.
- Merda
- Você é muito desbocado!
A cena era impressionante. Acho que, assim que terminei de pronunciar a última vogal, fiquei com a boca aberta por quase dois minutos. Frio na barriga, pernas tremendo, a terrível sensação de não saber o que fazer e um instantâneo flashback na cabeça para entender por qual motivo seria merecedor daquilo. Lá estava ela deitada na minha cama. À primeira vista, era uma imagem Nabokoviana. De bruços, com os pés cruzados para o alto e com o corpo posicionado de maneira invertida em relação à cabeceira, era a personificação da tentação que ela sempre foi para mim. Um dos meus gatos dormia ao seu lado, o outro, acordado, recebia cafunés na barriga. Que inveja dele. As unhas dela têm poderes inexplicáveis.
- Você – fiz uma pausa para ainda me recuperar da cena. – Você arrumou a minha sala?
Ela se levantou da cama e a covardia se fez por completa. Short jeans desfiado curto, apenas meias nos pés e uma T-Shirt com golas, mangas e barra cortadas, bem larga e despojada. A tatuagem ao lado do peito escapando pela lateral da blusa como um sol que invade pela fresta da cortina foi o golpe de misericórdia. Ela estava do jeito que adorava e assim me quebrava as pernas. Aliás, do jeito que ela sabia que eu adorava e assim, propositalmente, me quebrava as pernas. Mesmo sendo uma das melhores cenas da minha vida, sabia que em poucos minutos estaria totalmente fodido. Nada sai impune ao ver sua musa te esperando de uma maneira rusticamente sexy em sua cama. Não comigo, pelo menos.
- Você demorou muito, seu wi-fi estava ruim e o sinal do meu celular estava fraco. Fiquei sem ter o que fazer, então acabei arrumando sua sala.
- Você tinha dois gatos para interagir e ainda assim optou por colocar ordem em um apartamento que era um total caos? E, pelo que vejo pendurado no banheiro, foi suficiente para ficar suada. Então tomou banho, se arrumou novamente e ficou estonteante à minha espera. Pois bem, então imagino que tenha algo bem violento vindo em minha direção. Como estou sem a menor noção do que se trata, considerarei que sou uma lambreta com o farol quebrado em um túnel indo de encontro a um caminhão carregado de ogivas nucleares.
- Sabe o que sempre mais admirei em você?
- Hum.
- Sabe o que me chamou a atenção e me cativou?
- Desculpe, mas o hum foi exatamente uma deixa para responder.
- A sua inteligência e capacidade de perceber as coisas.
- E o caminhão acelera... – ela me interrompe.
- Cala boca – quero dizer, ela me interrompe com vontade. – E sabe o que mais odeio em você?
- Eu quero saber?
- Só os idiotas respondem uma pergunta com outra pergunta.
- Esqueci que, mesmo mais nova, você também é da geração Chaves.
- Bem mais nova!
- A minha idade é o que mais odeia?
- Não, não é! Odeio o fato de você não saber quando usar essa inteligência e sagacidade. Insiste em só usar em sarcasmo e respostas ácidas. Na maior parte das vezes nos momentos errados. Nos momentos certos, você se cala. Ou pior, some! Aliás, corrigindo, você só usa nos momentos errados.
- Mas esse é o meu charme!
- É, mas na página doze começa a irritar.
Já tinha esquecido como odiava quando ela abria a boca. Não, ela não é daquelas de sempre, com a cabeça vazia que a cada palavra pronunciada você reflete a real necessidade de estar com ela. Ela sabe me ler e dar respostas que fico sem reação. Por que, raios, ela não podia ser apenas um rostinho bonito em um corpo perfeito? O pior nessa história é que apesar do rostinho, do corpo e do jeito sonso de ser, foi exatamente esse talento odioso que ela tinha que me chamou a atenção. Obviamente, se ela tivesse acesso a este meu pensamento diria que é mentira. Sim, não deixa de ser em partes. A primeira vez que a vi pensei que se tratava de uma dor de cabeça que tive alguns anos atrás. A única menor de idade que me relacionei. Ela tinha 17 e eu 25, mas não é assunto para agora. O fato é que cedo ou tarde ela se revelaria o que é hoje, causando assim a mesma fascinação que disse antes. O problema é que, para se ter uma musa, faz-se necessário ser um poeta, um pintor, um músico ou um sábio. Eu sou apenas um idiota com alguns dotes capazes de impressionar meninas que ficam fascinadas com diálogos de filmes água com açúcar. E isso nem chega perto de ser uma característica dela.
- Baby, o que você está fazendo aqui? Por que arrumou a minha casa?
- Não sei.
- Você não sabe o motivo de estar aqui há pelo menos umas duas horas...
- Quatro – ela me interrompe.
- Que seja! Você não sabe o motivo por estar quatro horas aqui?
- Isso eu sei! Não sei te explicar sobre ter arrumado sua casa. Talvez seja meu subconsciente que queria muito arrumar sua vida. Ou quem sabe um antecipado complexo de culpa querendo compensar o que vim fazer.
- O que você veio fazer?
Eu não tinha certeza se queria saber, mesmo tendo uma ligeira suspeita. Havia quase uma semana que não nos falávamos. A última vez foi naquela traumática noite que as poucas lembranças que tenho indicam que potencialmente devo ter sido um escroto com ela. Estava em um evento na Lagoa quando a Biazinha me ligou dizendo estar com a Mariana no Só Kana, um bar famoso na Tijuca. Como de costume, já tinha bebido além da conta e meu discernimento tinha sido eliminado em algumas mijadas atrás. Não pensei duas vezes, abandonei o evento, peguei a moto e fui ao encontro delas. Cheguei mais louco do que nunca. O sacolejo do trajeto com a adrenalina da alta velocidade exacerbou o álcool que em mim residia. Lá estavam as duas na mesa acompanhadas de outros dois caras. Era óbvio que isso não ia dar certo. Sou competitivo e a Biazinha sabia que me morderia de ciúmes ao ver alguém dando em cima da Mariana. Sem a menor cerimônia, sentei-me à mesa e comecei a minar a cantada dos garotões. Não durou sequer quinze minutos. Essa geração bunda mole é muito suscetível.
Ficamos apenas os três na mesa. Biazinha, com aquela sensação de missão cumprida, disse que iria ver o namorado do momento e nos abandonou na mesa. Agora era só eu e ela, minha cena favorita. Para melhorar, ela parecia contrariada com tudo aquilo. Eu, como estava bêbado como sempre, abstraí sua deflagrada expressão de insatisfação e prossegui no que poderia ser considerada uma ação de marcação de território. Ela odiou. Foram mais algumas horas de cerveja. Eu no meu ritmo Mad Max e ela ao som de Rain Drops Keep Falling on My Head. Não sei por que estou falando sobre isso. Foi um dia que deveria ser esquecido por mim. Fiz tudo errado e ainda assim ela ficou do meu lado. Dormi desmaiado no meio do sexo e ela não tentou me matar asfixiado com o travesseiro. Acordei algumas horas depois com ela vestida dizendo que tinha de ir embora. Ainda estava completamente bêbado com tudo rodando, ofereci dinheiro para ela ir de taxi e sou grato por ela não ter devolvido aquela nota de cinquenta pelo meu reto. Desde então nunca mais a vi ou trocamos uma mensagem.
- Baby – a demora dela em responder estava me agoniando, então resolvi dar prosseguimento. – Você veio pelo que aconteceu naquele dia? Se foi, me desculpa mesmo. Era um dia para nunca ter existido, ainda mais com você. Vou te entender se veio aqui para discutir comigo, fazer barraco e quebrar tudo.
- Arrumar a casa para depois quebrar? Não sou tão sádica assim. Nem estou com tanta raiva quanto imagina.
- Vai ver arrumar a casa seja exatamente o equivalente a quebrar tudo na minha conturbada casa.
- O patético é que isso faz até sentido. Pior vai ser quando descobrir que não somente arrumei seus livros, como o fiz em uma ordem totalmente aleatória.
Olhei em pânico para a estante e ela riu. A desgraçada me conhece. Lá estavam bibliografias misturadas com livros de contos e livros técnicos. Sem falar que alguns estavam de cabeça para baixo, em posição invertida ou deitados sob livros de pé. Ela fez isso de propósito e pensando em cada detalhe. O que ela quer? Que eu fique mais apaixonado ainda?
- Pare de rir. Isso não tem graça – disse enquanto ajeitava um ou dois livros. – Você ao invés de perder tempo com isso, deveria aproveitar e extravasar essa raiva fazendo sexo selvagem comigo até me levar a exaustão.
- Dois minutos não serão suficientes para mim.
- Você está com raiva mesmo. Ir na ferida é seu diferencial que sempre gostei, mas nunca foi de mentir.
- Está bem! Quatro minutos!
Cretina. Ficamos nos encarando por alguns minutos. Ela estava com aquela expressão de xeque-mate que eu habitualmente cortava avançando no lábio inferior dela. Infelizmente o momento não era oportuno para isso. Tudo que me restava era apenas admirar aquela cena que provavelmente seria a última vez.
- Você está indo embora, não é?
- Sim – ela me abraçou como sempre, criando uma sensação confusa na minha cabeça. – Eu era louca por você. Você me tinha na mão e preferiu me usar como diversão. Uma peteca.
- Mas como resistir se a vontade de dar uns tapas na sua bunda é mui... – ela me interrompe.
- Lembra-se de quando falei sobre usar a inteligência de maneira errad... – eu que a interrompo agora.
- Ah, eu sei! É que nas horas de constrangimento isso dispara.
- Então fica calado, tá?
- Me ajude a ficar calado. Me beije.
- É, você não é tão inteligente assim.
De fato eu só comprovava isso. Burradas atrás de burradas me fizeram perde-la. Não suficiente, no que será o último dia, eu insisto em ser espirituoso ao ver de lutar na tentativa de reverter a situação. Não, não é que eu não seja inteligente. É que sou um idiota ao mesmo tempo.
Ela chegou cedo e esperava me encontrar dormindo provavelmente no sofá para me acordar de forma gentil. Só que viu o apartamento vazio e, confusa sem ter como fazer a boa ação que antecederia ao meu pé na bunda, decidiu arrumar a sala. Isso acabou soando patético e nada parecido com ela. Se tivesse que adivinhar esta cena novamente, seria com a sala ainda toda desarrumada e ela deitada no sofá bebendo a última garrafa da minha cerveja favorita. Ficaria infinitamente mais sexy se ela estivesse bebendo algum vinho premiado da minha adega, mas ela não é tão fã de vinho a este ponto. Entretanto, era um dia de semana, e ela jamais tocaria em uma garrafa de cerveja no início da tarde. Viu como sou de fato inteligente?
- Ok, já consigo imaginar o motivo de ter arrumado a sala. Quero entender por que se deslocar até aqui.
- Você ainda não sabe o que estou fazendo aqui?
- Sexo!
- Estou falando sério! Você tem ideia do que eu vim fazer aqui?
- Sexo!
- Por que não consigo falar ser... – ela se interrompe, me solta e se afasta. – Você está de pau duro?
- Desde o primeiro segundo que te vi.
- E isso não dá gangrena?
- Agora está preocupada? Quando ficava me usando por longos quatro minutos nem se comovia.
- Você é muito cretino – ela voltou a me abraçar. – Eu vim para dizer tchau. É a coisa certa. Começou no portão da minha casa, nada mais justo que terminar na sua.
- Começou no portão da sua casa com a minha mão por debaixo da sua saia. Você poderia ao menos terminar com a mão dentro das minhas calças.
- Ok – ela de fato a colocou me deixando sem reação. – Posso continuar agora?
- Pode continuar o que você quiser agora, baby.
- Obrigada – ela cerrou um pouco mais a mão de uma maneira que entendi como um recado para não abrir mais a boca. – Estou indo embora. Você teve todas as chances do mundo comigo e as jogou fora. Eu entendo que, dentro das circunstâncias atuais, me assumir publicamente seria catastrófico para sua carreira. Nunca te pedi isso. Só que mesmo em sigilo tínhamos potencial para dar certo. Fazíamos os nossos programas de maneira discreta como sempre. Voltávamos para sua casa e enrolávamos o resto do dia na cama. Você não quis. Eu queria. Queria muito e para valer. Agora não quero mais.
Ela tirou a mão de dentro das minhas calças e, na ponta dos pés, laçou seus braços por trás do meu pescoço. Engoli a sua cintura fina com meus braços e ficamos ali por alguns minutos. Rosto lado a lado. Apenas a respiração próxima ao ouvido. Ela mexeu a cabeça para trás, ensaiou que me daria um beijo, mas refugou. Logo em seguida se afastou.
- Eu era doida por você, mas você é um idiota – ela disse de uma maneira tão gentil que parecia até um elogio. – E você é péssimo em geografia.
Ela foi embora. Não tinha o que falar. Sequer teria motivos para tentar refazer um contato em breve. A velha desculpa de aparecer para entregar as coisas que foram esquecidas na minha casa não poderia ser usada. Não existiam coisas dela por lá. Nunca dei a abertura para chegar a esse ponto. Ela foi embora. A minha musa foi embora e sequer relutei um minuto. Não discuti, não fiquei zangado, não quebrei copo, não demonstrei tristeza. Tudo que fiz foi alguns comentários cretinos no início e depois uma passividade que não fazia jus ao quanto não queria que ela fosse embora. Eu sou um idiota mesmo.
- MERDA!
Outro conto da coleção? Leia Viviane

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Idiota, hormonal e clichê

Canelinha
Eu sei que vocês vão me recriminar por isto, mas tenho os meus motivos. Faz parte do senso comum que falar mal de outra pessoa é algo deselegante e recriminável. Eu discordo. Ainda mais depois de saber que Ariano Suassuna também pensava igual a mim. Ele dizia que o problema não era falar mal da pessoa, mas fazer isso na presença dela. Afinal, criar-se-ia um clima desagradável. Caso a pessoa não estivesse por perto para ouvir, daí, sim, podia falar mal à vontade. Até porque é algo revigorante. Palavras dele. E, agora, minhas também.
O que irei falar é sobre o Canelinha. Provavelmente vocês não o conheçam, mas eu sim. Convivo com ele desde os oito anos de idade, época em que ele recebeu esse apelido. Tenho tantos anos de amizade com o Canelinha que posso dizer com propriedade que ele é um idiota.
Seu nome é Ricardo. No ano em que nos conhecemos, nossos pais disputavam uma pelada toda terça-feira à noite em um campo de futebol na região da Penha Circular. Nossos pais costumavam nos levar e, enquanto jogavam futebol, ficávamos do lado de fora chutando bola um para o outro. Eventualmente, parávamos o que estávamos fazendo para ficar no alambrado com os outros adultos da “de fora” assistindo à partida. Como de hábito, esses adultos adoravam incendiar a partida com gritos de ordem do tipo “Vai!”, “Lança!”, “Chuta!” e por aí ia. Em outros momentos, para desconcentrar os adversários, eles gritavam coisas como “Pega!”, “Quebra!”, “Dá no meio dele!”, dentre outros incentivos que deveriam ser tolerados em debates políticos na televisão. Canelinha, ainda Ricardo na época, curtia esses momentos e gritava junto com os outros adultos. Como se tratava de uma criança de oito anos, ele era muito fofinho e ingênuo, logo, tudo que ele gritava era “Na canelinha! Na canelinha dele!” e assim surgiu o apelido.
Com o tempo, Canelinha foi deixando de ser fofinho e ingênuo para então começar a dar sinais de ser idiota. Aos dez anos, já colecionávamos álbuns de figurinhas. Contudo, para o Canelinha, a óbvia lógica implícita naquela tarefa parecia complexa. Ele ignorava números e as coleções. Em sua cabeça, fazia total sentido ir colando as primeiras figurinhas nas primeiras páginas conforme ia comprando. Quando a primeira página estivesse completa, ele finalmente começava a colar as novas figurinhas que chegavam na segunda página e assim por diante. O resultado era caótico, absurdo e, ainda assim, ele parecia ser incapaz de perceber que algo não fazia sentido ali. Inclusive quando tinha em seu álbum da Copa do Mundo de 1990 uma seleção da União Soviética com três louros, dois ruivos, dois orientais, quatro goleiros, três negros, um Homem-Aranha e uma Ferrari. Como tinha dito, sequer as coleções ele respeitava.
Já no início da segunda fase do ensino fundamental, época que era chamada de ginásio também, Canelinha foi se aprofundando na arte de ser idiota. Ele precisou faltar por uma semana à escola por um motivo qualquer e, na semana seguinte, quando voltou, pegou várias matérias pela metade. Uma delas foi história, que estava falando sobre a Segunda Guerra Mundial. A parte que ele ouviu foi a que dizia sobre as invasões do exército alemão e a liderança de Hitler. Canelinha ficou fascinado com aquela personalidade. Achou impressionante a eloquência do fuhrer e sua capacidade de mobilizar uma população inteira em prol de sua luta. Para ele, Hitler era um líder nato que deveria ser copiado pelos principais chefes de estado, técnicos de esportes e gestores de grandes corporações. Eu só soube disso no mesmo dia que o restante da nossa turma e professora de história, senhora Creuza, também souberam. Em uma apresentação valendo ponto, ele desenvolveu um longo texto sobre suas convicções e o leu na frente de todos. Ao final, com a turma ainda boquiaberta, a senhora Creuza disse que talvez não fosse uma boa ideia que, particularmente, ele idolatrasse o líder alemão. Quando questionado pelo Canelinha por qual motivo não deveria fazê-lo, a senhora Creuza respondeu dizendo “Porque provavelmente, pelo seu sobrenome Schultzartz, você deve ser judeu.”. Canelinha então se calou e achou melhor pesquisar sobre as aulas que tinha faltado.
Já no meio da adolescência, uma das coisas que mais afligia o Canelinha era a sensação de se sentir um estranho fora do ninho. Como se isso fosse exclusivo dele, não é, não? De qualquer forma, a sua sensação de exclusão era baseada em um motivo idiota, como era de se esperar. Ele achava que não tinha uma risada que desse uma personalidade a ele. Considerava sua risada muito comum e, por isso, não se destacava dentre os demais. Ainda mais quando o Mauricinho estava por perto. O Mauricinho era um dos maiores contadores de piadas do colégio. Bastava ele parar em uma roda de pessoas e as gargalhadas eram ininterruptas. Ocasionalmente, quando estava por perto, o Canelinha se sentia constrangido de rir, mesmo que fosse uma piada sensacional. Por isso, decidiu testar várias risadas até achar uma que combinasse com sua personalidade. Começou com uma risada com os dentes serrados escapando o ar. Depois, foram tentativas com risadas de bocas escancaradas. As que usavam as vogais u e o foram rapidamente descartadas porque considerava que harmonizavam melhor vilões de desenho animado. Tentou imitar risadas famosas, dentre elas a do Eddie Murphy. Mas não a risada original do ator, mas a da dublagem da Hebert Richards. Depois de tanto trabalho, achou a sua risada. Ela revezava as vogais a e i em uma frequência tremida. Finalmente, se sentindo identificado com o resultado final, Canelinha mal esperava a hora para estrear sua risada. Foi quando viu uma rodinha com o Mauricinho no meio falando. Lá vem uma piada das boas, pensou o Canelinha. Ele foi se aproximando do grupo e, quando finalmente chegou, Mauricinho terminou a última frase. Canelinha soltou sua nova risada e ganhou a atenção de todos na roda. Depois de retomar o fôlego, ele perguntou qual era o problema e se eles não tinham gostado na nova risada dele. Foi então que o Mauricinho respondeu “Cara, estou contando aqui da minha avó que está no hospital com câncer.”. Desde então Canelinha começou a pesquisar novas maneiras de chorar.
A esperança de que, com o tempo, Canelinha ficasse menos idiota foi sendo descartada. Mais velho, já na faculdade, ele começou a tender para a esquerda. Não, não estou insinuando que isso é sinal de que ele é idiota. Você precisa ser menos ansioso. Como dizia, ele começou a tender para a esquerda e desenvolver um gosto pelas teorias do comunismo. Resolveu então escrever uma tese relacionando o comunismo com a comunidade de formigas da espécie Ranheira, muito comum no estado de Minas Gerais nas proximidades da cidade de Muriaé. Canelinha acreditava que se a organização social fosse estruturada da mesma forma que as formigas Ranheiras, o comunismo seria infalível. Na sua teoria, ele reforçava que não existia hierarquia entre as formigas. Todas eram iguais e, assim, com direitos iguais na comunidade. Inclusive a formiga principal, que não levava o nome de rainha, pois Canelinha era contra a monarquia. No dia da sua defesa, ele recebeu nota dez da banca avaliadora que considerou o trabalho muito bem escrito e a relação entre comunismo e comunidade de formigas impecável. Todavia, Canelinha acabou abandonando o projeto quando soube por um dos membros da banca que as formigas Ranheiras, assim como as formigas de qualquer outra espécie trabalhavam dia e noite à vida toda.
Uma das coisas que mais afetava o Canelinha por ele ser idiota era o seu senso de compatibilidade. Ele nunca entendia quando uma coisa não era compatível com outra. Ele não conseguia ver a coerência nas situações e entender que certas ações não combinavam com determinados eventos. Isso ficou bem claro quando ele chegou atrasado num encontro da galera em uma churrascaria rodízio. Ao ser perguntado sobre o motivo do atraso, ele disse que perdeu muito tempo almoçando.
Com quase vinte e cinco anos, Canelinha resolveu se aventurar na carreira de pintor. Antes fosse pintando casas, apartamentos e fachadas. Não, ele queria ser pintor artístico e expressar seus sentimentos em telas, quadros e painéis. Ele, de fato, tinha certo talento para o desenho. Infelizmente, não era isso que ele queria. Canelinha queria inovar. Pretendia lançar um novo estilo de pintura. Dizia que se sentia muito atraído pelo estilo de Polok, mas não pretendia imitá-lo. Não queria jogar tinta direto do balde na tela ou respingar a tinta a partir dos pinceis. Canelinha queria inventar a técnica da pintura por arremesso. Ela seria feita com objetos mergulhados na tinta que depois seriam arremessados na tela formando então a arte. Na quarta tela ele desistiu, pois tinha constatado que usar pedras portuguesas não seria uma boa ideia.
Com tantos anos sendo idiota, e mesmo sem saber disso, Canelinha foi ficando com a autoestima abalada. Estava já em um patamar que fazia a carência de outrora por uma risada com identidade parecer uma frescura. E era, né? Ele tinha uma necessidade de se sentir parte das coisas que aconteciam ao seu redor. A falta de histórias significativas em sua vida e experiências marcantes, fez com que ele começasse a desenvolver um cacoete mentiroso. As pessoas contavam um episódio de suas vidas e ele concordava dizendo “Sei bem como é. Passei por isso recentemente e senti na pele.”. Certo dia, a galera estava reunida na casa do Zeca. Quando Canelinha chegou, o Mauricinho estava contando uma história. Todos o ouviam atentamente. Calejado pelo lamentável episódio lá na adolescência, Canelinha esperou o fim da história e a reação do pessoal para, enfim, se aproximar. Quando ele terminou, ninguém riu. Canelinha então percebeu que não era piada e entrou na roda de amigos dizendo seu cacoete mentiroso. O grupo espantado olhou para ele que, antes que pudesse dizer algo, foi questionado pelo próprio Mauricinho como era possível. Canelinha persistiu dizendo que tinha acontecido de verdade com ele. Mauricinho então rebateu “Como aconteceu com você se estou contando que a minha avó acabou de perder a luta contra o câncer essa semana?”.
Pois bem, como dizia, sou da filosofia que se falarmos mal de uma pessoa na ausência dela, não existe coisa alguma de errado. Portanto, vou aproveitar que o Canelinha não está por aqui para dizer uma coisa sobre ele. Eu posso até estar enganado, mas acho que ele nunca gostou da avó do Mauricinho.

Próximo conto da coleção: Artimanhas