quinta-feira, 31 de julho de 2014

Poesia for dummies

Vem para rua

Passos, braços
Mãos levantadas, punhos cerrados
Estranhos, amigos
Uns lado-a-lado, outros abraçados
Lá vem todos eles, é uma multidão
Faixas e placas, cartazes grifados
Não gostam, não querem, insatisfação
Palavras de ordem, gritos cantados
Ideias, ideais, mobilização

Sem falas ou gestos, não podem opinar
Só resta esperar
Pra ver o que vai dar
São outros, são muitos, todos paus-mandados
Com ordens bem dadas, mas sem instrução
Nem preparação
Ação por impulsão
Estratégia traçada, aguardam parados
Aproximação

Gás de pimenta!

Não corre, corre, caos instaurado
Bombas no ar, porretes erguidos
Só sinto ardido, escuto zumbidos
Nos querem cegar
Pra não enxergar
A sua mentira, está tudo errado
Até que se espalhem, existe união
Já sabem a verdade, conscientização
Não irá demorar, iremos voltar
Em tamanho dobrado

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Entrevista de matar



Com exclusividade, pela primeira vez na história, nosso repórter conseguiu uma entrevista com a entidade mais temida de todas. Na reportagem de hoje, teremos um bate-papo com a Morte.
Repórter: Gostaria de iniciar agradecendo a sua presença, pois sabemos o quanto você é ocupada. Aliás, devemos nos remeter a você no feminino ou no masculino?
Morte: Bem, não deveria usar nem um, nem o outro. Por isso prefiro o inglês, pois sou um autêntico “it’. De qualquer forma, pode usar o feminino mesmo, fica mais elegante e charmoso.
Repórter: A primeira coisa que deve ficar clara é que, com você aqui, podemos de fato comprovar que você de fato existe.
Morte: Mas como assim? É claro que eu existo. A partir do momento que a moça faz o xixi naquele pauzinho, aparece a cor rosa dando que é positivo, a única certeza que aquele ser terá é que um dia vai morrer.
Repórter: Sim, não duvidamos disso. Talvez tenha me expressado mal. Quando digo você existir, falo literalmente da personalidade, da entidade, do ser. Até então, a imagem da morte como alguém que visita todas as pessoas nos seus últimos momentos de vida era algo difícil de acreditar. É como crer que existe Papai Noel e que ele visita todos os lares na noite de Natal.
Morte: Mas como assim? Você está me dizendo que Papai Noel não existe?
Repórter: Er... Na verdade quero focar em como faz para visitar todas as pessoas no final da vida delas.
Morte: Bem, eu costumo viajar em velocidades inimagináveis. Para que se tenha uma ideia, enquanto construía a sua última frase, estive em 185 lugares diferentes, levei 245 pessoas comigo e voltei. Inclusive sua tia Alzira.
Repórter: Oh não! Pobre Alzira.
Morte: Ela já era bem velhinha. Convenhamos.
Repórter: Tem razão. Mamãe vai ficar arrasada. Seguindo... Diga-me como começou nessa carreira.
Morte: Minha primeira oportunidade foi como incentivador de apedrejamentos. Como sabe, esse era um ritual muito comum há séculos. Meu papel era ficar estimulando as pessoas para que não parassem, inclusive, quando acabavam as pedras, eu conseguia mais. De fato, eu era sensacional nisso. Tanto que o patrão reconheceu e...
Repórter: Peraí! Patrão? Está falando de Deus?
Morte: Sim, ele mesmo. Meu chefe, patrão, o cara que manda, o dono de tudo, o pica das galáxias. Então... Ele reconheceu meu talento e me chamou para conversar. Naquela época, ele era ainda a versão do Antigo Testamento, colérico, vingativo, sádico e provocador do caos. Ele disse que queria montar um grupo de quatro entidades que se chamaria os Cavaleiros do Apocalipse. Esse grupo seria formado pelas quatro piores coisas que já pisaram na Terra. A formação original era composta por mim, a Morte, Time do Flamengo, Pagode e Operadores de Telemarketing. Mas daí, ele remodelou o projeto para algo menos aterrorizante chegando à formação que todos conhecem.
Repórter: Você sabe quantas pessoas levou até hoje?
Morte: Sim, mas é um número que não é possível expressar usando a matemática que conhecem.
Repórter: E se lembra de todos?
Morte: De todos que levei, sim. De todos que tenho de levar não.
Repórter: Você se esquece de levar pessoas?
Morte: Sim! Como explicar a Hebe ter vivido tanto tempo?
Repórter: Faz sentido. O Silvio Santos e o Cid Moreira também são casos esquecidos?
Morte: Não! O Silvio continua por escolha minha. Depois do Datena e todas aquelas tragédias, ele é meu programa favorito. Já o Cid, eu sou proibido de levar. Ele faz divulgação de material do patrão e aí já viu, né? Protegido e tal. Ninguém mexe com ele.
Repórter: Já que falou de protegido, vamos conversar sobre a Faixa de Gaza que é um tema do momento. Ali deveria ser um local protegido, mas aparentemente você tem atuado enfaticamente?
Morte: Eu não tenho relação alguma com aquele lugar. Ele fica fora da minha jurisdição.
Repórter: Pensei que trabalhava por todo o planeta. Existe isso de jurisdição?
Morte: Sim, existem alguns lugares que não me envolvo. Faixa de Gaza, Afeganistão, alguns países da África e Pavuna. Lá na Faixa de Gaza é por conta de todo um problema religioso. Sempre que levava alguém, aparecia uma dúzia de entidades metidas a superior para resmungar com o patrão. Era uma encheção de saco. Daí o chefe ficou puto e falou “para de se meter naquele lugar, deixe com aqueles teimosos que acham que conseguem se entender sozinhos”.
Repórter: Imagino que no Afeganistão seja a mesma coisa.
Morte: É parecido, mas não a mesma coisa. O problema lá basicamente é o chato do Alá. Ele promete uma porrada de coisas, os caras ficam se explodindo antes que eu chegue e depois pedem o que ele prometeu. Ah caceta! Que peçam para ele! Mas não! Ele sempre foge da raia e se faz de morto. O que é uma ironia na minha presença.
Repórter: E os países da África?
Morte: Ah, lá é de cortar o coração que não tenho. Tanta fome, pobreza, doença que nem tenho coragem de aparecer. Até porque, mesmo sem aparecer por lá, morrem dúzias por dia.
Repórter: E a Pavuna?
Morte: Já foi lá? Nem a porrada que coloco meus pés lá. Aquilo é uma desgraça na vida de uma pessoa.
Repórter: Ok, vamos falar de outras coisas atuais então. E esses aviões caindo e sumindo?
Morte: Confesso que desastre de avião não me agrada. É trabalho porco e preguiçoso. Mesmo assim, existem épocas do ano que estou longe da minha meta. Aí não dá! Preciso agilizar o resultado, né? Então apelo para avião, transatlântico com comandante italiano covarde, final de campeonato entre Flamengo e Vasco. Tudo que gere muitas mortes.
Repórter: Quem diria que você tem metas?
Morte: Sim, tenho. É muita pressão. Tem semanas que mal consigo dormir.
Repórter: Você dorme?
Morte: Não, foi uma piadinha, mas você não acompanhou. Prossiga!
Repórter: Ainda de atualidades. Por que levou três escritores brasileiros em uma distância tão curta de tempo? Ariano, Ruben e João Ubaldo de uma só vez não é demais?
Morte: Ora, eles não iriam fazer falta.
Repórter: Como não? São excelentes escritores aclamados pela crítica.
Morte: Ora, convenhamos. No seu país são poucas as pessoas que ainda leem livros. A molecada de hoje em dia só quer saber de Facebook. A única coisa que eles leem é manchete do Meia Hora e olhe lá. E ainda mais, estava de saco cheio desse título bobo de imortal. Peguei logo três para mostrar que de imortal eles não têm nada.
Repórter: Mas se for para pensar assim, podia ter levado o Sarney.
Morte: Mas ele não é querido por aí?
Repórter: Claro que não!
Morte: Não? Todo dia alguém fala sobre ele no Facebook e Twitter. O povo continua votando nele e por isso permanece onde está. Como que ele não é querido?
Repórter: É, faz sentido nessa perspectiva. Ainda sobre mortes coletivas em algumas áreas, lembro que levou um grupo de profissionais do esporte recentemente.
Morte: Sim, foram alguns. Luciano do Valle, aquele repórter da Globo que foi para a Record que posso até falar o nome, mas só vão reconhecer falando assim, o doutor Osmar, a dupla de ataque do Fluminense Casal 20, Kajuru...
Repórter: Epa! Kajuru? Ele não morreu, não? Eu vi um programa dele hoje.
Morte: Acredite, ele morreu. Basta olhar para ele. Só que o bicho é tão chato, tão mala, tão cricri, que o rejeitaram e o patrão autorizou que ele ficasse vagando por aqui.
Repórter: E qual o motivo para ter levado eles?
Morte: Eles que pediram. Eles imaginavam a vergonha que seria a Copa e daí imploraram para ir embora e não testemunhar aquele vexame.
Repórter: E você atende ao pedido de todos?
Morte: Claro que não! Imagine só, Brasil perdendo de 7, Vasco rebaixado duas vezes e Fluminense na terceira divisão. Se atendesse a todos os pedidos isso aqui estaria um deserto.
Repórter: Existe alguma morte que se orgulhe?
Morte: Sim, as misteriosas são minhas favoritas. Pessoas que somem, corpos sem evidência. Teve uma com potencial para ser perfeita. A morte do Tancredo Neves. Mas nos quarenta e cinco do segundo tempo apareceu a Gloria Maria e fudeu com tudo. Só de sacanagem fiz uma meia morte nela. Agora ela fica por aí, meio morta, meio viva, parecendo uma múmia de Botox.
Repórter: Todos têm a imagem da morte como um esqueleto humano com lençol preto cobrindo todo o corpo e uma foice na mão.
Morte: Essa é a imagem que o Maurício de Souza me popularizou. Até acho bonitinha, mas preciso passar algo mais imponente. Preciso causar impacto. Alguns filmes insistem em querer vender a minha imagem com algo poético. Não existe poesia na morte. Poesia é para as meninas abrirem as pernas e só.
Repórter: Pois bem, morte, adorei a conversa. Podemos marcar ao final do ano uma nova entrevista fazendo uma retrospectiva das mortes mais importantes do ano?
Morte: Claro que pode! Só que você precisa ter certeza que estará por aqui até o final do ano. Afinal, nunca se sabe, né? Ainda mais depois de me contar que Papai Noel não existe.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A casa dos Malavazi 1.3




Vagner entra correndo na cozinha e vê Sandra e Marlene abraçadas encostadas no balcão. Ele pergunta o que aconteceu e elas respondem que tinha um homem no meio da cozinha, mas que ele voltou para a sala. Vagner então corre na direção da sala, mas para na porta e grita:
- AH PORRA! QUER ME MATAR DO CORAÇÃO?
Ele apoia as mãos sobre os joelhos e balança a cabeça negativamente. Elas nada entendem e perguntam se o tal homem ainda está ali. Vagner com um gesto de cabeça sinaliza para que elas se aproximem.
- Podem vir – diz ele. – Esse é o Seu Nogueira! Ele é quem faz a manutenção da casa. Quase que um caseiro, ou zelador, não sei o nome ao certo.
Seu Nogueira é um senhor baixo, de cor mulata, poucos cabelos ao redor da cabeça e nenhum no topo dela. Com o perdão de todo preconceito que isso pode soar, ele aparenta ser uma pessoa ignorante, falo de poucos estudos, não do jeito de lidar com as pessoas. Além disso, sua pele mastigada pelo tempo indica que teve uma vida muito difícil. Sua expressão é dócil, fraterna, mas mesmo assim assustou as duas simplesmente por estar em um local onde elas não imaginariam poder ter outra pessoa. Ele, depois de apresentado a elas, as cumprimenta com um toque de formalidade, e ainda assim elas permanecem um pouco constrangidas com a cena que protagonizaram.
- Ora, não precisa se encabular por isso – ele diz a elas. – Eu mesmo me assusto pela manhã quando me olho no espelho.
Elas riem de forma contida, talvez agradecendo a gentileza que ele faz ao tentar minimizar a situação. Vagner então, para ajudar a cena a cair no esquecimento, puxa assunto com Seu Nogueira perguntando o que ele fazia por lá.
- Tava no andar de cima tentando resolver umas coisinhas nos canos. A água não caía direito em algumas torneiras da casa.
- E acha que resolveu?
- Não – ele responde balançando a cabeça também. – Parei porque escutei um barulho cá embaixo. Daí desci para ver o que era. Se soubesse que era vocês, nem teria parado.
- Me desculpe, Seu Nogueira. Trouxe a trupe toda para ver a casa e, como é domingo, jamais imaginaria que você estaria aqui trabalhando. Bem, devia desconfiar com as marteladas que escutamos. Ah! – Vagner exclama ao ver Artur entrar na cozinha com Julia no colo. – Aqueles são meus filhos, Artur e Sandra.
- Olá, princesa!
- Olá, vovô.
Com todos novamente descontraídos, Vagner sugere que a visita prossiga para o segundo andar. Ele ainda convida Seu Nogueira para acompanhá-los, que aceita e brinca que será o guia turístico da casa. Os dois então vão na frente. Marlene e Sandra ficam paradas para Artur passar com Julia no colo. A mãe fala para o filho.
- Gostei de ver.
- Do que está falando, mãe?
- Você sabe – ela responde apontando com os lábios para Julia. – Assumindo o papel de irmão protegendo ela.
- Que nada, patroa – Marlene se intromete. – Ele é frouxo mesmo! Foi se proteger com a pequena.
- Ah tá – ele responde. – Ah tá!
Os dois então passam e as duas mulheres seguem atrás. Marlene fala no ouvido de Sandra que também achou bonita a ação de Artur. Sandra responde que o menino é bom na essência, apenas está passando por uma fase e nem por isso não podem deixar de dar umas sacudidas nele.
O passeio pelo segundo andar, logo após subir as escadas, começa em uma espécie de pequena sala que dá acesso a todos os cômodos do andar. Eles entram primeiro na suíte. Acontece a tradicional gracinha em que cada um diz que aquele vai ser seu quarto. Os argumentos são sempre estapafúrdios, não porque estão se esforçam atabalhoadamente para convencer os demais, mas porque querem fazer graça mesmo. Seu Nogueira não resiste e entra na brincadeira:
- Se for para brigar, eu fico nesse quarto. Tudo pela família feliz.
- Boa iniciativa, Seu Nogueira. – Vagner intervém colocando a mão sobre o ombro do velho. – Mas, aparentemente, você já fica na casa toda. Daí é covardia.
A família prossegue para o quarto exatamente em frente à suíte. Sandra anuncia que ali será o quarto de Julia. Marlene gosta da informação porque o quarto é aparentemente espaçoso o suficiente para que caiba uma cama para ela também. No apartamento atual, Marlene dorme naquelas camas de deslizar que fica embaixo da cama de Julia.
Eles em seguida passam rapidamente pelo segundo banheiro da casa e depois entram no último quarto. Artur não gosta da ideia de esse ser seu quarto. Na sua concepção, é o menor de todos.
- E onde que você precisa de um quarto maior? – Pergunta Sandra. – Você só tem essa bermuda esfarrapada que usa todos os dias, algumas camisas e seu celular maldito. Acho que podíamos até inverter, transformar o banheiro em seu quarto e o seu quarto em banheiro. Aí a Marlene terá um banheiro enorme para tomar banho e brincar de diva.
- Ah, eu acho muito justo, patroa.
- Vocês duas estão muito engraçadinhas hoje. Depois não sabem por que estou sempre de mal humor.
A família retorna à área comum de acesso a todos os quartos. Vagner vai em direção a uma porta que fica em frente à escada que leva ao térreo e saca o molho de chaves. Ele comenta que, quando foi conhecer a casa pela primeira vez, não estavam todas as chaves com o corretor, mas hoje, como pegou todas, vai poder abrir a tal porta. Sandra pergunta o que tem ali e, antes que Vagner responda, Seu Nogueira se antecipa dizendo que é uma escada dando acesso ao sótão, que nada tem ali e é perda de tempo.
- Seu Nogueira – diz Vagner. – Você que conhece a casa como ninguém, qual dessas trocentas chaves é a desta porta?
- Não sei, Seu Vagner. Não sei.
O velho muda o tom simpático, fica com a expressão séria e se afasta dizendo que tem outras coisas por fazer na rua. Ele então se despede de todos e desce as escadas, deixando a família ali esperando que Vagner finalmente acerte a chave da porta.
- Consegui – comemora Vagner.
Todos os cinco sobrem para o terceiro andar que é composto por um único salão do tamanho dos dois outros andares. O teto é baixo, o cheiro de poeira e de coisas velhas se sobressai e, para completar, é uma escuridão total. Vagner até tenta acender a luz apertando o interruptor, mas parece que está sem lâmpadas ou as lâmpadas estão queimadas.
- Que escuridão, Jesus – exclama, Marlene. – Alguém pega o celular para iluminar isso aqui.
Vagner pega o dele, mas está sem bateria. Ele pede o de Sandra, mas também está sem bateria. Artur não se conforma:
- Os dois sem bateria? Quantas vezes já falei para deixar o celular carregando durante a noite? Agora, se alguém quiser falar com vocês já era.
- Filho – Vagner responde. – Eu tenho o hábito de deixar o celular espetado no computador o dia todo no trabalho. Sua mãe também. Só que ontem foi sábado, não trabalhamos. Daí esquecemos e já viu.
- Eu não entendo como pode essa tamanha complicação dos velhos com eletrônicos.
- Filho – agora Sandra quem fala. – Pare de reclamar e nos dê a honra da luz do seu poderoso celular que carrega toda noite como se fosse uma usina nuclear.
Artur tira o celular do bolso de trás da bermuda e percebe que também está sem bateria. Os três implicam com ele que se justifica dizendo que passou a noite toda conversando por mensagens e acabou se esquecendo de colocar para carregar. A gozação com ele continua. Até Julia, sem saber do que se trata brinca:
- Cabeção!
Sem luz nas lâmpadas e o recurso alternativo de celular indisponível, Marlene toma a frente de todos e vai até uma das janelas para tentar abri-las.
- Não dá para abrir – ela diz. Estão lacradas com umas “táubuas”.
- Umas o quê, Marlene?
- Você entendeu, garoto. Larga de ser pentelho.
- Entendi não, Marlene. Qual a dificuldade de falar tábua? Ou falar registro?
- Qual a dificuldade em cicatrizar a testa do cascudo que vou te dar?
Artur fica rindo e vai na direção oposta a de Marlene tateando o caminho, pois nada consegue ver. Vagner e Sandra ficam parados na entrada com Julia ao lado deles. Os pais alertam para tomarem cuidado com pregos, farpas ou outras coisas que podem machucar. Marlene vai tateando em outra direção.
- Trombei em algo!
- O que, Marlene?
- Parece um monte de cano empilhado, patroa.
- Deve ser o tal conserto que o Seu Nogueira falou.
- Não, patroa. Não é cano não! São camas velhas de ferro. Uma sobre a outra.
Vagner comenta que no dia da primeira visita, o corretor disse que alguns móveis dos antigos proprietários estavam amontoados por lá e que deveriam ser jogados fora ou doados. Sandra estranha e retruca que não faz sentido tanta cama assim. Ele rebate dizendo que nem devem ser tantas assim, provavelmente o escuro enganou Marlene. Além disso, ele prossegue constatando que ali mesmo com eles serão quatro camas, portanto era possível outra família ter quatro ou cinco camas.
- Ih caralho – resmunga Artur. – Caguei a porra da mão toda.
- Olha o vocabulário, meu filho – sinaliza Sandra. – Sua irmã está aqui.
- Desculpa, mãe. Mas acabei me apoiando em um monte de caixas empoeiradas aqui. Parece que tem mais coisas da outra família para jogar fora.
Sandra anuncia que chega de passeio no escuro. Eles precisam ir embora porque ela ainda tem de fazer as compras para o almoço de domingo. A família então desce a escada, com Vagner por último comentando que precisa marcar as chaves.
- Coroa, larga de ser lerdo. É só deixar a portas de dentro abertas. Para quê tanta chave?
Vagner concorda com a observação do filho e segue com a família para o térreo. Eles saem da casa e, enquanto esperam o pai trancar a porta principal no pequeno pátio que separa a casa do muro, Artur coloca a mão no bolso de trás, saca o celular e fica parado olhando para ele.
- O que foi, garoto?
- Ele está vibrando, Marlene.
- Então atende! Qual o problema?
- É a bina! Olha – ele mostra o celular para ela. – Que número estranho! Zero, zero, zero, jogo da velha, zero, jogo da velha.
O celular para de vibrar. Vagner termina de trancar a porta e abre o portão que dá acesso à rua. Sandra é a primeira a sair e vai para o carro apressada pedindo que todos andem logo, pois o mercado fecha logo. A família vai atrás e, antes que Artur entre no carro, Marlene o segura pelo braço e comenta:
- Peraí, garoto. Seu celular não estava sem bateria?
(Continua em 2.1)

domingo, 20 de julho de 2014

Amargura por Extenso

Mentirosos
Ariano Suassuna sempre assumiu publicamente sua fascinação pelos mentirosos. Pelos doidos também, mas isso fica para outro momento. Em sua declaração, ele fazia uma ressalva excluindo um tipo específico de mentiroso. Para ele, os que mentiam para obter ganho prejudicando outra pessoa não mereciam o seu respeito. O mestre admirava apenas os que mentiam por amor à arte da mentira. Não discordo de Ariano, como também engrosso o grupo de pessoas que admite a importância do personagem mentiroso para o folclore diário que chamamos de vida. Todavia, cabe ir um pouco além, pois a divisão dos que mentem em apenas dois grupos é muito simplório.
A maior virtude de um mentiroso é ser capaz de identificar outro mentiroso pela sua fala, e aí reside uma ironia. Ele é capaz de reconhecer o ator, mas não o ato. Como disse, eles se reconhecem, mas não possuem facilidade em identificar mentiras. Isso se dá porque existem diversos tipos de mentirosos. Isto é, existem muitos tipos de artistas nesta rústica produção cultural. Daí, o mentiroso reconhece o outro artista, entende o que ele está fazendo, mas não sabe até que ponto é ação corriqueira e até que ponto é arte de mentir. Existem três tipos de mentirosos, o por motivo, o por natureza e o por objetivo.
Dentre os mentirosos por motivos, existem os mentirosos por pressão. São aqueles que mentem apenas sob pressão, como subterfúgio em uma situação desesperadora, o chamando “panicar” (odeio neologismos, mas são úteis para atrair a atenção das pessoas que usam a linguagem informal). Eles, por só mentirem em situações como essas, não possuem muito talento e desenvoltura no assunto.
- Dona Eurenice, você está três horas atrasada.
- Desculpe, patrão, mas precisei levar minha avó ao clube de swing.
Outro tipo de mentiroso por motivo é o mentiroso por réplica. Ele precisa rebater algo que não gostou e então mente na tentativa de se sair por cima. Na maior parte dos casos, como acontece em uma dinâmica além da sua capacidade de raciocinar, eles costumam ser incoerentes.
- Tobias, você foi o meu pior namorado! Aceite isso! Eu fingi todos os meus orgasmos!
- Pois saiba, Heloísa, que, com você, eu também fingi todas as minhas gozadas!
Ainda nos mentirosos por motivo, temos o mentiroso por culpa. Eles alguma vez na vida comentaram algo que não era verdade, uma mentira inocente, corriqueira. Daí, se sentindo culpados por isso e com medo que descubram a fraude, eles revisitam a mentira várias vezes na esperança que vire uma verdade incontestável, mesmo que as pessoas não deem a mínima para o fato.
- Sabe aquela menina que conheci no feriado de finados em Mangaratiba?
- Claro que sei. Todo dia você fala dela. Todo dia você conta algo novo. Primeiro a conheceu, depois chamou para sair, finalmente saiu, daí transou com ela. Qual a novidade agora?
- Estava reparando, ela tem algo entre as nádegas.
- Claro que tem! Isso se chama cu – a pessoa reage impaciente.
- Não é disso que falo. É uma pequena mancha de nascença.
- E por que, raios, está me falando isso?
- Porque somente uma mulher que realmente existe possui uma característica própria como essa.
- Ah foda-se você, essa mulher e essa marca de bosta que ela ainda não limpou na bunda.
O último caso de mentiroso por motivo é o mentiroso por agrado. Pessoas desse tipo têm medo de falar a verdade e fazer com que os outros fiquem ofendidos. No intuito de serem simpáticos, eles mentem, mesmo piorando a situação.
- Querido, tem certeza que ficou bem em mim? Não me faz parecer gorda?
- Claro que não, amor. Talvez esteja um pouco justo, mas esse top ficou muito bem em você.
- Paulo Sérgio, isso é um vestido!
Os mentirosos por natureza possuem uma característica em comum, eles mentem por necessidade. É algo hormonal, químico, patológico, quase uma vocação. A forma como fazem isso os dividem em duas categorias. A primeira é a categoria amadora. No objetivo de saciar seu desejo por mentir, esse tipo de mentiroso não mede as coisas e pesa na mão, mesmo correndo o risco de ficar óbvio para os outros.
- Eu sou médico, né?
- Jura? Que especialidade?
- Sou obstetra.
- E tem muito tempo isso?
- Ah tem! Sou médico há mais de 40 anos!
- E ainda pratica?
- Claro! Já fiz o parto da Sasha e recentemente fiz o do filho do Neymar.
- Que interessante! Bem, eu fico por aqui, ok?
- Claro! A corrida deu R$ 18,90.
- Aqui está! Pode ficar com o troco e obrigado, seu taxista.
A segunda categoria é a profissional. Trata-se da categoria dos bons mentirosos, aqueles que não são pegos. Sua maior virtude é contar pequenas mentiras, coisas bobas e sem valor. Assim, eles aliviam a necessidade de mentir sem maiores problemas.
- Cara, hoje vi uma mulher muito gostosa.
- É mesmo? E como era?
- Ah, era muito gostosa. Só isso mesmo.
O último tipo de mentiroso é o mentiroso por objeivo, e se divide em três. O mentiroso mercenário tem sido o mais famoso ultimamente. São tantos, que fica cada vez mais fácil identifica-los. Eles mentem apenas para obter ganhos.
- Este homem não, irmãos – diz o pastor.
- TENHA PENA DELE, SENHOR! – Grita a multidão.
- Vejam! Ele está andando – afirma o pastor minutos depois.
- GRAÇAS AO SENHOR! – Grita a multidão.
- Agora ele já consegue até jogar bola – avisa o pastor dias depois.
- É UM MILAGRE, SENHOR! – Grita a multidão em seguida.
- Ele foi convocado pelo Felipão – anuncia o pastor semanas depois.
- Por culpa do seu milagre perdemos de sete a um – fala um futuro ex-fiel enquanto sai do culto.
Outro mentiroso por objetivo é o bem-sucedido. Ele mente, passa isso para o papel, escreve livros, contos, crônicas, peças, filmes, tudo por prazer. Seu sucesso está no fato das pessoas se importarem com isso. Elas compram seus livros, pedem autógrafos, tiram fotos, fazem entrevistas. Mesmo sem ter como meta inicial, ele com suas mentiras obtêm dinheiro e sucesso.
- Eu sou um novelista, mas podem me chamar de autor de não-ficção se preferirem.
Por fim, dentre os mentirosos por objetivo, existem os mentirosos fracassados. São exatamente como os mentirosos bem-sucedidos, mas sem a grana e a fama. Exatamente como eu.