terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Cretinice homeopática

- Amiga, fui ontem ver a pré-estreia do tal Star Wars novo.
- E aí? Gostou?
- Nhé! Foi legalzinho. Filme nerd, né? Senti falta daquele tal de Vader.
- Ai sua monga! Esse é o vocalista do Pearl Jam!

sábado, 12 de dezembro de 2015

Refúgio

As coisas não progrediam e, por mais que isso me desagradasse, não podia reclamar. A situação atual e a forma como tudo acontecia eram consequências diretas das minhas ações. Tudo resultado de planos mal elaborados ou executados. Como se eu tivesse bolado algum plano esse tempo todo, não é? A verdade é que, no lugar dos planos, estavam improvisos, atitudes não pensadas e reações intempestivas. Resumindo, tudo culpa minha. Mudar algo ou iniciar novas estratégias exigia coragem. Pois foi isso que sacramentei em uma longa reunião comigo mesmo: coragem.
- Nossa, que surpresa – exclamou a Isadora assim que abriu a porta e me viu. – O que faz aqui numa hora desta, meu bad boy?
- Preciso de grana.
Veja a que ponto uma pessoa pode chegar, precisar de muita coragem para pedir dinheiro emprestado para a pessoa que mora na porta ao lado. Era a única pessoa que eu ainda conseguia convencer com uma imagem diferente de um vaso quebrado colado faltando algumas partes. Tratava-se da pior opção para se fazer isso e a única ao mesmo tempo. Familiares e amigos eram palavras arrancadas do meu dicionário. Tatiana se encaixaria como confidente, anjo da guarda ou qualquer definição piegas que faça amolecer seu coração, por isto não está contida nos outros dois grupos. Todavia, ela estava fora do estado a trabalho, tornando-se assim mais uma vez inútil e me obrigando a tomar esta decisão drástica.
- Hum, que direto! Quanto?
- Cinquenta é suficiente!
Quem pede cinquenta reais emprestado? Trata-se de uma quantia tão miserável que não resolve problema algum. É um valor tão pequeno na atual conjuntura que até eu tenho na gaveta do meu armário. Aliás, ter cinquenta reais na gaveta daquele troço de madeira que chamo de armário o valoriza em 35%. Enfim, mesmo tendo, queria emprestado. Por quê? Porque não queria gastar o meu dinheiro. Porque queria mais uma vez testar a minha capacidade de envolver os outros. E talvez o mais principal dos motivos, porque nunca iria pagar de volta.
- Cinquenta? Precisa de cinquenta para comprar um vinho baixa renda de emergência?
- Não, preciso apenas para sair e me distrair um pouco.
- E você não tem cinquenta reais?
- Tenho! Na verdade isso é uma desculpa para vir aqui e poder olhar um pouco suas pernocas.
- Se quiser pode olhar meus peitos – quando ela começou a abaixar o decote da blusa, eu a interrompi.
- Baby, sem distrações, por favor! Preciso de cinquenta. É simples! Gastarei com diversão para relaxar.
- Ah – ela fez uma pausa exagerada para enfatizar o deboche no meu vocativo oficial. – Baby! Você pode entrar e ter tudo isso de graça.
- Ora, não me faças pensar que posso lhe objetificar.
- Ah meu bad boy, quero ser seu objeto sem peso na consciência.
Não posso negar, ela era ótima em persuasão. Nas horas de trabalho, deveria ser um demônio. Dizer não a ela exigia muita coragem. No meu caso foi fácil por motivos óbvios. Daí, voltei ao meu apelo.
- Você pode me ajudar, ou não?
- Vou te ajudar, mas saiba que estou muito decepcionada com a sua negativa à minha proposta.
- Ah, não me venha com melindres. Essa não foi a primeira, tampouco será a última vez que rejeito os seus convites.
- Você me magoa tanto assim – ela parou de falar para pegar o dinheiro na bolsa. – Saiba que vou cobrar juros.
- É mesmo? De quantos por cento?
- Vou cobrar em beijinhos, cafunés e apertões. Ouvi falar que nisso você é muito bom.
- Você ficaria surpresa se soubesse no que de fato sou bom – virei de costas e fui embora.
Para minha sorte, ela me deu uma nota cinquenta e, assim que subi no ônibus, o cobrador disse que não teria troco. O que ele disse mesmo foi que nem fudendo trocaria aquela nota na primeira corrida dele. O fato é que não fiquei ofendido, nem preocupado. Pulei a roleta e ainda consegui poupar alguns míseros reais.
Em poucos minutos lá estava no local que criou a identidade que sou hoje, o ambiente que me deixava mais confortável. Já frequentei várias cidades, estados e até países. Restaurantes com comida bem servida, requintadas e de preço baixo. Praia, serra, floresta e fazenda fazem parte da minha geografia histórica. Já estive no oito, no oitenta e qualquer outro múltiplo de dois. E com toda essa pluralidade e opções extremas, o submundo ainda assim me fascinava. Era meu lar, meu habitat, minha inspiração, meu refúgio.
Millôr dizia “Família unida sempre, reunida jamais”. Mesmo com toda aporrinhação de brigas, alfinetadas e desavenças, família é onde muitos preferem estar. Outros, por exemplo, preferem um estádio onde, mesmo com a agonia do tempo que não passa ou a tristeza da derrota, é a sua válvula de escape. Eu precisava daquele cheiro de urina misturado com bebida derramada, da confusão de músicas diferentes em um volume desnecessariamente alto, da promiscuidade, da penumbra, do bizarro, da sarjeta, das classes mais baixas e da falta de regras que gerava um equilíbrio invisível que quando quebrado resultava em fatalidades. Eu precisava da Vila Mimosa.
Assim que entrei no Bar das Anjinhas, procurei pelo dono: Seu Valdir. Quando meu viu, mesmo mais de dez anos depois, ele me reconheceu. Abriu um largo sorriso e me chamou pelo apelido que apenas lá respondia quando chamado: Insano. Um abraço, comentários mútuos sobre falta de cabelo, rugas e barrigas salientes iniciaram a conversa enquanto nos direcionávamos para a mesa vazia logo à porta. Se você vai à famosa VM, você precisa ficar à porta. Ali você vê tudo e todos, se antecipa das possíveis merdas que acontecem na rua e ainda consegue admirar o máximo de mulheres.
- Ainda tem a promoção da cerveja mais o conhaque?
Pois é, para estar lá é preciso obedecer aos costumes locais. Nada de Stellinhas, vinho, uísque ou Jack Daniel’s. Na Vila Mimosa é cerveja nacional muito gelada acompanhada de conhaque para ficar bêbado mais rápido. Como esse era um dos meus objetivos da noite, estava unindo o útil ao agradável.
- Rapaz, tem uma garrafa pela metade ali que vou deixar na sua mesa. Um presente por você ter voltado.
Enquanto ele voltava para o balcão para pegar a tal garrafa, gritei para trazer uma gelada também. Exatamente, uma gelada! Se você é cliente do submundo, você não pede pela marca. No submundo, ou você confia no dono do bar, ou retorna para o boteco com etiqueta da zona sul.
Já de volta, ele serviu um copo de conhaque para cada um e a cerveja apenas para mim. Brindamos e o conhaque desceu de um gole só. Ele sorriu. Eu franzi o rosto, estava enferrujado para aquele ritual. Enquanto bebericava a cerveja comecei a perguntar pelas meninas da minha época. Fernandinha? Juju? Paola? Dani Furacão? Val? Manú Cambeta? As respostas foram as piores. Morreu. Virou evangélica. Foi assassinada por dever dinheiro a um traficante! Casou e voltou para o interior. Sumiu e dizem que está com AIDS internada em algum hospital público. Trabalha em beira de calçada na baixada.
Nada daquilo era surpresa, porém não deixava de ser triste. Eram boas meninas que participaram de uma parte da minha vida. Virei muita madrugada ouvindo as lamentações delas ou histórias que me calejaram mesmo sem ter vivenciado. Aqueles seis anos que trabalhei na noite terminando o turno por lá para relaxar foi uma escola e elas foram, de certa forma, professoras. Ouvir aquilo não era exatamente o que tinha em mente para aquela noite.
- E saber que você queimou muita grana com elas, não é mesmo?
- Nunca paguei um centavo para elas.
- Jura?
- Sim – confirmei enfático ao fim de um gole. – Você sabe muito bem que não curto sexo por dinheiro.
- Tem razão – ele pausou para servir mais uma dose de conhaque. – Mas nem naquela história do anão com a Fernandinha?
- Aquilo foi diferente. Eu dei dinheiro para a Fernandinha não trancar a porta enquanto fazia o programa com o anão, pois eu queria ver a cena ao vivo.
- Você fazia muita merda, rapaz – ele soltou uma risada e prosseguiu. – É estranho te ver depois de tanto tempo assim sério. Um homem.
Talvez fosse ainda muito cedo para quebrar o encanto da minha imagem que ele fez naquele momento. Pelo menos enquanto ainda tinha conhaque grátis na mesa. Concordei assertivamente com a cabeça e pedi outra gelada. No meio tempo que ele ia até o balcão, uma mocinha se sentou ao meu lado e, pelo visto, algumas tradições não mudam por lá. A abordagem era uma delas. Ainda bem:
- Oi, gato – ela disse repousando a mão com vontade no meu pau. – Vamos gozar gostoso?
Qual homem diria não para uma proposta como esta? É exatamente por isto que este local ficava lotado no início do mês. Com dinheiro, os trabalhadores que lá frequentavam, seduzidos por uma proposta tão direta, saiam com os bolsos vazios. No resto do mês, eles nem davam as caras. Resistir, mesmo sem dinheiro era impossível e sempre existia uma boa alma caridosa a cada vinte metros disposta a emprestar uma graninha a juros tão obscenos quanto as propostas.
Fitei a mocinha por inteira e confesso que ela era bem apessoada. Para os padrões locais, ela era um achado. Tanto que meus olhos procuraram pelo Seu Valdir pelo bar. Quando o vi, ele gesticulou para mim como quem diz “vai nessa que é a boa”. Não, não iria nessa. Ele sabe que não pago por sexo.
- Baby – retirei calmamente sua mão da minha virilha, a beijei para que não se sentisse tão rejeitada e a repousei sobre a mesa. – Temos um problema aqui, pois procuramos coisas que um não pode oferecer ao outro.
- Será mesmo? – Ela perguntou com a convicção de quem consegue convencer qualquer um por lá apenas aproximando muito seu rosto.
- Oh sim! Tenha certeza disto.
- Então me fale o que queremos e não podemos oferecer?
- Eu quero uma companhia para beber e conversar. Você quer um cliente.
Surpreendentemente, ela gesticulou para o Valdir indicando que a garrafa estava vazia e que queria um segundo copo. Ele prontamente a atendeu, nos serviu de conhaque e cerveja. Brindamos o conhaque, bebemos de um gole só e, assim que colocou o copo na mesa, ela se virou para mim e perguntou sobre qual assunto conversaríamos.
- Bem – ainda impressionado com a iniciativa daquela menina, que deveria ter no máximo 22 anos, prossegui. – Podemos começar perguntando o seu nome.
- Mariana.
- E como sua mãe lhe chama?
- Nunca conheci minha mãe, mas acredito que me chamaria de estranha já que me abandonou na maternidade ao me dar a luz.
- Ok – parei para dar um gole no resto da cerveja em meu copo. – Vamos tentar manter a conversa menos constrangedora, tá? E como consta seu nome no documento de identidade?
- É o mesmo! Não tenho nome de guerra.
Mariana ironicamente se chamava Mariana mesmo. Estava presenciando uma geração de garotas de programa que usavam o próprio nome no trabalho. Aliás, uma geração que preferia o termo garota de programa a puta. Como a própria Mariana explicou, puta só poderia ser usado no sexo, mas no diminutivo, pois putinha é música para os ouvidos.
Ela fugia de todos os clichês. Não veio do interior, não foi abusada pelo pai, nem iludida por uma cafetina que prometeu fama no programa Malhação. Mariana foi criada pela enfermeira que ajudou no seu parto assim que sua mãe lhe abandonou. Estudou, fez o ensino médio, mas sempre gostou de sexo e dinheiro. Descobriu que poderia ter os dois ao mesmo tempo, mas também tinha consciência que não conseguiria trabalhar em algum puteiro mais refinado. Sobre os clientes, que na sua maioria são operários suados com o pau todo ensebado, ela diz que cobra caro com o consentimento do Seu Valdir que concorda que ela é um achado por lá.
Conversamos por um bom tempo, mais precisamente por dez garrafas de cerveja e a cortesia de conhaque do Seu Valdir. Em determinado momento, sua mão novamente pousou sobre meu pau, apertando-o com mais vontade. Senti certo ar de cobrança na sua fala:
- E aí, estrangeiro? – Ela cismou de me chamar de estrangeiro por toda noite ao achar que não me encaixava naquele ambiente. – Já falei e muito sobre mim. Não acha que é a hora de tirarmos nossa roupa e passarmos nossa conversa para outro patamar?
- Baby, agradeço muito em ter ficado comigo toda a noite, mas o seu problema continua na mesa. Eu não pago por sexo.
- Quem disse em pagar? Você foi gentil comigo, me deu várias cervejas, ganhou minha atenção à noite toda e os possíveis clientes foram todos embora. Nada mais justo que terminemos essa noite da melhor maneira.
Não, eu não podia aceitar por vários motivos. Motivos físicos, pois não tinha a menor certeza se meu pau subiria, se teria condições de me manter acordado por todo o sexo ou se conseguiria gozar ao final. Motivos éticos também, pois a envolvi na conversa de uma forma covarde, assim como ela tentou me envolver para que fizesse o programa inicialmente. A diferença está nos vários anos de experiência que tenho com garotas de programa e sua conversa barata, além de uma década praticando conversa com desconhecidas toda noite.
Agradeci e disse que ela era um ótimo motivo para que voltasse a frequentar mais a Vila Mimosa. Puxei a nota de cinquenta que Isadora me deu e coloquei sobre a mesa. Ficou bem claro naquele momento que aquilo era tudo que eu tinha. Ela então perguntou como eu voltaria pela casa. Respondi que pretendia ir de ônibus, mas dependia do Seu Valdir.
- SEU VALDIR – gritei acenando com a nota de cinquenta. – VAI TER TROCO?
- Troco? – Ele riu. – Você vai ficar me devendo uns quinze!
Cocei a cabeça e Mariana “coçou” a bolsa. Sacou uma nota de cinco reais e me deu para que fosse para casa de ônibus. É, eu ainda conseguia envolver os outros. Agradeci, anotei meu endereço e a entreguei, ao tentar dar um beijo em seu rosto ela se virou. Nos beijamos e deu para ouvir Seu Valdir falando que certas coisas não mudam. Fui depois ao balcão me despedir dele. Prometi lhe pagar o que fiquei devendo e tudo que ele pediu foi que eu não sumisse. O que um dia foi um cara legal estava virando um velho foda.
Fui embora completamente bêbado e com muita dificuldade consegui chegar à Praça da Bandeira. Ao parar no ponto de ônibus, avistei um ambulante. Mostrei a nota de cinco reais e perguntei se me venderia duas latas de cerveja. Ele disse que sim. Fui então a pé para casa com as duas latas. Normalmente ir da Praça da Bandeira até a Lapa a pé é uma longa caminhada. Cambaleando fica mais longo e cansativo ainda. As duas latas de cerveja ajudaram a me manter ocupado durante todo o trajeto, não reparando assim em mendigos, pivetes ou qualquer outra distração.
Após quase quarenta minutos de caminhada trocando as pernas, trombando em postes e usando bancas de jornal como pontos de apoio, cheguei em casa. O porteiro me ajudou a entrar e me colocou no elevador. Chegando ao meu andar, usei o resto das minhas energias para abrir a porta do elevador e desabei no meio corredor fazendo um barulho de respeito. Enquanto ainda estava no chão, ouvi barulho de chaves. Isadora abriu a porta.
- Meu pai – ela exclamou parada ao meu lado com as mãos na cintura. – Como você consegue fazer isso? Aliás, como consegue ficar assim com apenas cinquenta reais?
- Eu sou um cara de muitos talentos.
Ela assentiu e me ajudou a me levantar. Ao invés de me colocar para dentro da minha casa, ela me levou para a casa dela. Disse que eu estava em péssimo estado e, de fato, ninguém podia contestar isto. Ainda durante uma série de exclamações envolvendo o quanto estava surpresa em me ver naquele estado, ela foi tirando meus sapatos, meia, calça e camisa. Em seguida me deitou em sua cama.
- Mocinha, você está se aproveitando de mim e isto não está certo.
- Estou cuidando de você. Cala essa boca!
Ela me calou com um beijo. Aparentemente eu não era o único capaz de envolver os outros.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Cretinice homeopática

Fui jantar pela primeira vez com a família da minha nova namorada. Acabou sendo pior que imaginava. Não sabia que o irmão dela trabalhava como flanelinha. Ele me pediu R$ 10,00 para me sentar em um lugar que ele supostamente guardou para mim no sofá da sala. Falei que pagaria quando fosse embora. Em determinado momento me levantei para ir ao banheiro. Ao voltar, o estofado do meu lugar estava todo rasgado. Tive de pagar um sofá novo para a mãe dela. Saudades de quando namorava a filha de um miliciano.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Início... ou fim

Meu prato favorito é língua. Língua defumada com molho madeira, batatas levadas ao forno e feijão manteiga com paio. Depois, em segundo lugar, está fígado acebolado com fritas bem sequinhas, ou com purê, e feijão. Sei que muitos farão careta para pelo menos um dos pratos sem ter provado sequer uma vez na vida. Que pena. Não dá para dizer que algo é ruim sem antes experimentar. Obviamente não preciso comer merda para falar que é ruim. Não vamos generalizar também. Talvez por isso exista o tabu de tentar relações com o mesmo sexo. Quem suportaria o peso de mudar toda a forma de ver um dos principais alicerces da vida antes renegado por pura teimosia? Bem, no meu caso eu concentrei toda a minha coragem provando língua. Acredito que tenha sido emoção suficiente.
Estranhamente, essa teimosia de dizer que algo é ruim sem provar ou que algo é muito bom sem tentar enxergar por outra perspectiva me acompanhou por toda a vida. Talvez esteja sentimental pelo momento, mas o fato é que hoje olho para trás e vejo como insisti em pensamentos teimosos. E como fiz merda na vida também, mas isso fica para outro momento.
Nunca achei que diria isso, mas a Lapa é uma merda. O bairro que tanto frequentei, idolatrei e fiz de quintal da minha vida é a pior coisa que pode existir. Acredito que antes tinha uma imagem tão distorcida porque sempre chegava entorpecido pela euforia da expectativa de mais um dia de total descompromisso com a responsabilidade e, quando a transe eufórica dava sinais de ceder a ponto de me mostrar a realidade, já estava quimicamente tomado pelas coisas de sempre. É como uma criança chegando a um aniversário de algum coleguinha. Aquela empolgação de ter vários amigos para correr aleatoriamente em recreações com regras sem sentido. Com o tempo, você, de tanto suar, vai desidratando, resolve repor calorias consumindo refrigerantes e doces, seu nível de açúcar sobe descontroladamente e você começa a agir como um maníaco. Fica então incapaz de notar que o homem de meia idade fantasiado de super-herói é patético, que você arrancou sapatos de estranhos por pontos imaginários em uma gincana sem valor e depois vai lutar pela vida para ganhar um saquinho com lembranças que, de tão ruins, você sequer ganharia no dia de Cosme e Damião em alguma comunidade carente. É uma furada óbvia, mas você está iludido pelas circunstâncias, não enxerga o todo e se contenta com a felicidade superficial momentânea. Em casa, depois com o corpo recomposto, você olha para aquele monte de porcarias monocromáticas e se pergunta “Céus, o que eu fiz?”. O mesmo vale para mim, só que no dia seguinte. Com um corpo que parece ter sido surrado, usando todo o esforço possível, abria os olhos, olhava ao meu redor e exclamava “Ah, mas que merda!”.
Não bastante, o argumento da criação equivocada de um mito não pode se limitar às condições químicas ludibriadoras das conexões nervosas do cérebro. O fator sazonalidade também é preponderante no que tange o argumento. Sim, porque quando se passa a frequentar um local com mais assiduidade, tudo fica evidente, principalmente os defeitos. É como um namoro. Você encontra a gatinha apenas nos finais de semana. Sexta rola aquele cinema ou barzinho depois do trabalho. Sábado praia com almoço. Domingo, no máximo, um churrasco com amigos. Nem vou citar sexo. Depois retornam aos dias úteis à distância. Não é uma maravilha? Só que um dia se casam, passam a se ver todos os dias, inclusive nos que um dos dois não está disposto, motivo que antes, no namoro, era suficiente para suspender a programação. Mas agora que é tarde. Tudo que não conseguia ver em algumas horas, agora são esfregadas na sua cara sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia. Talvez isso faça sentido para mim porque sou um pessimista com casamento, mas a teoria é fundamentada para o caso em questão.
Enfim, o fato é que a Lapa é uma merda. Antro de mendigos e cracudos, frequentado por travestis, putas baratas e traficantes de merda que topam de tudo por qualquer dinheiro. Além de feder a mijo a qualquer hora do dia, o bairro, não necessariamente os profissionais citados. Não me falem sequer de Carnaval! O comércio local é decadente, exceto pelos bares. Não existe uma loja que não tenha prateleiras cheias de poeira com produtos velhos sendo vendidos por um funcionário no mais baixo patamar da carreira profissional, à beira de desistir e entrar para um dos personagens citados no início deste parágrafo. Os prédios são pombais frequentados também por tudo isso que já falei. Tanto que é aconselhável fazer um buraco na parede e na porta principal para passar uma corrente e prender com cadeado. Se as pessoas soubessem o que acontece por aqui, teriam medo de andar de chinelos. Ou sandálias rasteirinhas, como as gatinhas fazem na noite.
Eu sei que é muito amargor por minha parte, só estou vendo o lado ruim, mas, na essência, não há o que contrapor. Estou morando aqui tem seis meses e quero me matar. É sério. Cheguei aqui reconhecendo que era o fundo do poço para mim. Joguei todas as oportunidades que me deram fora. Destruí vínculos profissionais, afastei amigos, esmigalhei relacionamentos amorosos e me transformei em uma bomba relógio. Estou só, sem saúde, falido e tudo que tenho é um caderno que poderia me vangloriar dizendo que é de folhas recicladas, mas na realidade é um caderno velho de páginas amareladas que peguei em uma prateleira encardida de uma papelaria mequetrefe qualquer do bairro. Não tenho o que beber e fumar. Trepar atualmente é um verbo eticamente proibido no meu dicionário. Fui vítima da minha própria frase feita. Achei que estava no fundo do poço, mas sempre aparece um filho da puta para começar a cavar e achar um porão.
Saudades de comer língua, beber a minha cerveja favorita, desmaiar bêbado de vinho no sofá. Daria tudo para ter qualquer livro em minha estante, inclusive aquelas merdas que sempre odiei gratuitamente. Sinto falta de poder me dar ao luxo de tomar café na padaria, almoçar na esquina para não sujar louça (mentira, não sei cozinhar) e ficar andando impaciente pela casa ouvindo as ladainhas de sempre da minha mãe ao telefone. Queria ter minha ex-mulher aqui comigo, a única mulher que me conheceu na totalidade e ainda assim me amou de verdade. Tenho vontade de voltar no tempo, mas também tenho medo de acabar repetindo tudo igualmente. O que eu fiz? Vou te contar desde o princípio. Espere-me apenas atender o interfone, a única pessoa que ainda fala comigo chegou. E pelo tom de voz de quando me ligou, depois de hoje, nem mais ela terei por perto.
Continua em Recomeço

sábado, 14 de novembro de 2015

Recomeço

Capítulo anterior Início... ou fim
- Porra!
Talvez não seja a resposta imediata esperada a uma campainha sendo tocada, mas foi espontâneo. Só podia ser uma pessoa, afinal apenas ela sabia que estava morando ali. O espanto foi porque poucos minutos atrás nos falamos ao telefone, dei o meu novo endereço e lá estava ela em tempo recorde. A curiosidade muitas das vezes é um grande motivador para certas ações.
- Você foi rápida – disse assim que abri apenas uma fresta da porta. – Pensei que estava na sua irmã.
- Eu estava. Peguei um taxi. Posso entrar?
- Taxi? Era só pegar o metrô. Você é burra?
- Estava com pressa e curiosa. Dá para me deixar entrar?
- Pressa? Você sabe que eu fiz um contrato de 30 meses, não sabe?
- Ah jura? Pensei que era de um dia e a casa se autodestruiria na manhã seguinte. POSSO ENTRAR NA MERDA DESTA SUA CASA SECRETA?
- Não sei se quero essa atitude deflorando os ares puros da minha nova residência.
- Ares puros? Você está aí não faz nem 24 horas e tenho certeza que já levou uma puta, vomitou na sala e peidou o quarto todo.
- Que horror você pensar isso de mim. Sabe bem que jamais peidaria no meu quarto – ela riu e eu também. – Enfim, qual a palavra mágica para entrar?
- IDIOTA!
- Não, não é essa, mas tem sorte que estou apertado.
Saí em direção ao banheiro deixando para que ela abrisse a porta e entrasse. Já de frente ao vaso escutei Tatiana espantada perguntando em voz alta se tinha alugado um apartamento ou um almoxarifado. Não podia condená-la, a sala era uma interminável pilha de caixas que por si só impressionava, mas ao lembrar que levei apenas minhas coisas de necessidade básica tornava-se uma cena exagerada. Se tivesse que incluir algo, seria a moto, que estava na rua obviamente.
- Ei, achei um sofá atrás das caixas – é, tinha um sofá na sala. – Ele está meio sujo.
O sofá veio com o apartamento, ou sempre existiu ali e construíram um prédio ao redor dele. O fato é que se tratava de um sofá muito velho que permiti que fosse deixado, caso contrário não teria onde dormir. Sim, foi uma decisão de desespero, inclusive depois de ouvir o porteiro Pereira dizer que, na época que o apartamento estava vazio, levou muita faxineira para trepar naquele sofá. Naquele momento optei por não imaginar a cena dele com outra pessoa suando e respingando fluidos corporais naquele estofado que um dia já foi bege e hoje é cinza. Assim como também escolhi não imaginar como um homem de 1,90 metro de altura como eu dormiria em um sofá de dois lugares. Como disse, foi uma decisão de desespero. Ou era o sofá, ou era o chão.
- Por que você trouxe um sofá velho imundo?
- Eu não trouxe, ele já estava aqui – respondi voltando para a sala e pulando nele. – Faz algo de útil na sua vida e pega uma água para mim.
Tatiana foi para a cozinha e, depois de alguns segundos de silêncio, gritou que não tinha geladeira. Não dei corda esperando os próximos gritos que aconteceram como esperava:
- NÃO TEM FOGÃO – ela gritou para depois repetir as duas constatações juntas. – Essa casa não tem geladeira, nem fogão.
- Você tem certeza?
- Bem, eu acho – ela respondeu ainda da cozinha.
- Quanto tempo a mais você precisa para confirmar isso em uma cozinha de 15 metros quadrados?
Tinha acabado de me mudar para um quarto-sala minúsculo. A sala tinha espaço para um sofá, uma pequena mesa para colocar um computador para trabalhar, um pequeno móvel para uma televisão e um armário de uma porta para meus livros, restando apenas ao centro um espaço para brincar apenas de guarda do Palácio de Buckingham, ou qualquer movimento me faria esbarrar em um dos itens móveis recém listados. A cozinha era menor ainda, sendo que sequer tinha área de serviço. Era tudo junto e apertado. Já imaginava com antecedência que, quando chegassem os eletrodomésticos, para abrir o forno, teria de colocar a máquina de lavar na sala e a geladeira na casa da vizinha. Ainda bem que não cozinho, logo o fogão vai servir apenas para fazer café e acender cigarro dos outros.
Tatiana concordou que a cozinha era de fato pequena e depois contemporizou dizendo que para um solteiro era mais que suficiente. De lá, ela voltou para a sala e foi para o quarto, de onde gritou que estava vazio. Claro que estava vazio. Se tivesse cama, não estaria deitado naquele sofá repleto de resíduos de terceiros. E se tivesse um armário, minhas roupas não estariam amontoadas em caixas.
- Então qual o sentido em um monte de caixas amontoadas aí na sala obstruindo a passagem e escondendo o sofá com tanto espaço aqui no quarto?
- Tanto espaço?
Não tinha como evitar, o quarto era pequeno em proporções minimalistas à sala. Com muito esforço e criatividade, colocarei uma cama de casal e um armário suficiente para a quantidade necessária de roupas para um cara sem vaidade que só usa jeans e camisas pretas.
- Tem razão – ela concordou. – Tanto foi espaço foi exagero. Mas me explique tudo amontoado aí na sala e espaço aqui.
A ideia era deixar o quarto vazio para pintar, depois levaria tudo para o quarto e pintava a sala. E isso enquanto os móveis não chegavam. Depois de explicado, ela se ofereceu para ajudar a pintar. Dispensei, afinal o rodapé era do mesmo material do piso frio, logo não precisava ser pintado.
- SENHOR – ela gritou, imaginei eu, do banheiro. – ISSO AQUI É MÍNIMO! É UM BANHEIRO DE PLAYMOBIL?
O banheiro era um detalhe à parte no quesito medidas ridículas daquela casa. Acredito que a privada estar posicionada exatamente de frente para a porta era uma solução logística para que a pessoa já entrasse de costas com as calças arriadas e bunda com a mira apontada. Não bastante, tinha um box que, em tamanhos e estética, parecia uma geladeira velha. Era impossível passar shampoo na cabeça sem bater com o cotovelo na torneira. Tampouco podia abrir a água com vontade, caso contrário ela passaria por cima da porta de acrílico (sim, sequer era um blindex) e inundaria rapidamente o pequeno banheiro.
- Me explica – ela disse assim que voltou para a sala, parando em frente ao sofá. – Por que um apartamento tão pequeno?
- Cadê a minha água?
- De onde vou tirar água? Da privada? Não tem geladeira aqui!
- Já pensou em pegar no filtro?
- Que filtro? Onde tem filtro?
- Vou te dar uma dica: começa com “tor” e termina com “neira da cozinha”.
Logo após me chamar de idiota, ela se virou de costas para mim e seguiu para cozinha. De lá, Tatiana gritou espantada com minha torneira abóbora que, segundo ela, era ridícula. Bem, naquele momento estava realizado porque ela reparou em todas as coisas bizarras da minha nova casa, poupando assim meu tempo.
- Não tem copo nessa casa – depois que ela me alertou que me lembrei que faltava esse item da lista das coisas bizarras: a casa não tinha louça ou talheres. – Como vou servir água?
Tatiana voltou para a sala e perguntou em qual caixa estavam os copos. Expliquei que em nenhuma. Nada de copos, pratos, talheres, panelas, potes ou qualquer objeto útil para a alimentação de um ser humano civilizado.
- E o que tem nessas caixas?
- Roupas e livros.
- Só?
- Pois é, foi o que consegui trazer. E, veja bem, quase que nem isso eu consigo.
- Céus! Para que tanta caixa então, se trouxe tão pouca coisa?
- Para brincar de forte e esconder esse sofá imundo.
A verdade era que eu tinha muitos livros e a minha ex-mulher não queria aqueles trambolhos ocupando espaço na casa dela. Por isso consegui trazer todos. O resto das caixas era ocupado com as minhas roupas que poderiam ter sido acomodadas em metade delas se eu fosse um mínimo cuidadoso ao organizar. Leia-se no lugar de organizar, jogar dentro das caixas.
- Ah sei lá – ela ainda queria divagar sobre as caixas. – Podiam estar com outras coisas.
- Tipo o que? Minha louça chinesa? Meu jogo de jantar francês? Minhas panelas profissionais de cerâmica?
- Seus pirus de borracha em diversos tamanhos e cores.
Tínhamos uma diferença de quase dez anos de idade e parecíamos duas crianças de onze anos conversando. Nossos diálogos eram rasos e comumente terminavam com ofensas gratuitas ao reto alheio. Ao olhar de outras pessoas, tínhamos uma relação nada saudável. Muitas das vezes, para quem era novo, ficava a sensação de que estávamos brigando. Não, nunca brigávamos, apenas implicávamos gratuitamente um com o outro da maneira mais covarde e fora dos padrões possível. Talvez as pessoas tivessem razão em dizer que não era algo saudável, mas nossa amizade se sustentava nisto e estava funcionando perfeitamente.
- Quando chegam as coisas?
- Que coisas?
- Como que coisas? Não percebe que estão faltando algumas coisas nesta casa? Tipo um porta-retrato, um recipiente para colocar a escova de dente – ela faz uma pausa, revira os olhos e prossegue. – A geladeira, idiota! Fogão! Cama! E um lança-chamas para incinerar esse nojo de sofá.
- Ah tá – apesar de não colar mais com ela, adorava me fazer de idiota. – Ainda não comprei.
- Como não comprou?
- Sei lá – dei com os ombros. – Estava sem saco. Precisava tirar as medidas das coisas, pesquisar preço e rever necessidades.
- Larga de ser idiota – ela foi até a cozinha e acenou para o vazio que lá existia. – Vai ficar vivendo como índio até quando? Essas coisas demoram a ser entregues. Quanto mais para tempo comprar, mais tempo sem isso.
Disse que não estava com saco de abrir computador e conectar com o celular, pois não tinha internet na casa ainda. Essa foi outra coisa que a levou à loucura, não ter contratado uma tv a cabo e internet. Eu disse que faríamos tudo isto outro dia, naquele dia não. Ela aceitou facilmente dizendo ser problema meu mesmo. Então se sentou no braço do sofá e, depois de um tempo me olhando com uma expressão pensativa, sapecou a pergunta:
- E como está a sua cabeça com a separação?
- Ai caralho! Pega o notebook naquela mochila preta. Vamos comprar as coisas.
- Vou pegar seu cu, se continuar desconversando. Jamais imaginaria que...
- Está com fome?
- O que? O que isto tem a ver com a história?
- Responde! Já almoçou?
- Não. Por quê?
- Vamos comer na rua. Lá conversamos.
Sempre consegui desconversar com a Tatiana, mas hoje dificilmente o faria. Estava à mesa uma quantidade de assuntos do interesse dela. Quando digo interesse, estou me referindo à curiosidade dela. A separação era um deles. Ela sempre apostou que terminaria a vida casado com a Maria Fernanda. Até eu imaginava isso no início, mas depois que o tempo foi passando, somente uma idiota otimista como ela poderia acreditar nisso.
Saindo do prédio, poucos passos depois tinha um restaurante com jeito de arrumado, espirito de pé sujo e preço dentro do meu orçamento. Estava sacramento que, na sua maioria das vezes, ali seria a minha cozinha. Sim, porque não sabia cozinhar sequer um ovo frito, logo almoço e janta ficariam sob a responsabilidade da Adriana, a simpática garçonete que me atenderia pela primeira vez naquele dia.
- Olá – Adriana estava de volta logo após nos deixar lendo o cardápio por alguns segundos. – Já escolheram?
- Eu vou querer a língua com purê – tomei a iniciativa dos pedidos. – E, para ela, preciso de uma carne de segunda mal passada que exija ser mastigada muitas vezes e assim evitar que fique falando.
- Idiota – a Tatiana me interrompe. – Eu quero o frango grelhado com fritas.
- Ok! Frango com fritas para ela. Eu continuo com a língua. É possível que seja servida a língua dela?
Adriana saiu rindo, mal sabia ela o que aturaria pelos próximos meses. Tatiana, depois de misturar risada com alguma ofensa a mim, voltou a tocar no assunto. Primeiro, afirmando que jamais esperava aquilo. Pois é, ela é bastante repetitiva. Depois perguntando o que disse quando saí de casa, o que ficou acordado, como a Maria Fernanda ficou e outras coisas. Para a sorte dela, pratos do cardápio demoraram muito para ficar prontos, então deu tempo de responder tudo no detalhe.
Era óbvio que poucas pessoas não ficaram surpresas com a notícia. Quase ninguém sabia do inferno que estavam sendo os dois últimos meses. A saída foi rápida para diminuir a dor. Comuniquei à Maria Fernanda que estava para sair de casa. Durante os três dias que dormi na sala por escolha, procurei apartamentos pela região, no quarto dia me mudei. Estávamos no quinta dia, ou primeiro oficial de separado. Nada foi acordado. Indiscutivelmente, a Maria Fernanda ficou na merda. Proibiu-me de cogitar levar qualquer coisa. Saí de casa com o básico como já dito. Confesso que não foi inesperado. Orgulho ferido misturado com ódio. Ela precisava me atingir de alguma forma. Claro que me fudeu com isso, mas não foi dessa forma que me atingiu.
- Como você está com isso tudo?
Não sabia responder. Era algo que já vinha se consolidando por tanto tempo que acabou sendo imperceptível. Era necessário. Eu precisava daquilo, mesmo sabendo que não queria. Precisava de espaço, de individualidade e de paz. As pressões eram cada vez maiores. Muitas dessas pressões eram naturais e esperadas em uma vida adulta de casado. Eu sei! Não ligava para elas. Cresci em uma vida apertada de merda. O que estava ficando cada vez mais intolerável era o ciúme pelas coisas erradas. Sim, diversas alunas sem noção de limites se ofereciam das diversas maneiras possíveis, mensagem pelo celular, redes sociais, festas do colégio etc. Não, nunca me relacionei com elas. Não com estas que davam pistas, balançavam bandeiras ou acendiam os holofotes sobre elas. Sempre fui maluco, mas nunca burro.
- Acha que a Juliana acabou influenciando nisso?
Juliana era uma aluna do terceiro ano do supletivo no colégio que lecionava na Pavuna. Tatiana sabia das intermináveis trocas de e-mails, olhares e carícias entre nós dois. Ela foi minha aluna por quatro anos, desde os 18 quando decidiu retomar e terminar os estudos. No primeiro dia que a vi, ela mexeu comigo. Séria, cabeça boa para idade dela e, para completar, linda. Seu sorriso era hipnotizador.
- Claro que não! Nunca ficamos. Nem selinho aconteceu.
- Nunca? E aquele monte de conversas que me mostrou? Os dois estavam tão apaixonadinhos.
- Pois é – talvez tivesse pesado muito na mão nas minhas mensagens na tentativa de envolver a Juliana, mas uma parte do que dizia era verdade, sim. – Ela nunca ficaria com um homem casado.
- Sempre fui fã dessa garota. Ela tem cabeça! Gostei dela de vez.
Claro que tinha gostado dela. A Tatiana pode ter vários defeitos, mas não posso dizer que ela não veste a camisa. Neste caso, ela veste a minha camisa. Aconteça o que acontecer, ela sempre está do meu lado. Era do fã clube da Maria Fernanda sem nunca ter a conhecido. Larguei a Fernanda, falei da Juliana, o slogam mudava para “Vai, Juliana!”. Bastaria não dar certo que ela a odiaria mesmo sem motivo. A retardada era muito fiel mesmo.
- E quando vão ficar então?
- Sem ser neste sábado, mas no outro, será a formatura dela. Fui convidado para a festa. Acho que vai ser lá.
- Lá? Na frente de pais e amigos? Você é louco?
- Sim, sim e sim.
- Por que não a chama antes para sair?
- Porque tenho coisas mais urgentes para resolver.
- Mais urgentes que ficar com a pivô da sua separação?
- Ela não foi pivô.
Não era justo jogar esta carga de responsabilidade nas costas da Juliana. Ela já era especial demais para mim naquele momento, mas estava longe ser a motivação. No lugar dela poderia ser qualquer outra. Podia inclusive não existir outra. O casamento estava inegavelmente fadado ao fracasso.
- Tá! E quais são as coisas mais urgentes?
- Contar para os meus pais...
- Eles não sabem?
- Sabem, mas não por mim.
Assim que a caminhonete que aluguei para levar aquele monte de caixas chegou, Fernanda foi para a rua para não presenciar o momento. Talvez entediada, desorientada ou em busca de consolo, ela ligou para minha mãe. Deve ter sido uma tragédia aquela ligação. Fernanda era tudo para minha mãe. Era Deus no céu e ela na Terra. Fazia tudo por ela, inclusive inventar dívidas inadmissíveis para realizar o sonho da Fernanda de se casar em uma igreja e ter uma recepção digna do evento. Elas se amavam desde o dia que as apresentei. Meu pai também tinha um carinho enorme por ela, além de depositar todas as suas fichas nela como solução para me colocar definitivamente nos eixos.
- Bem, o fato é que liguei rapidamente para minha mãe hoje e no sábado iremos almoçar. Daí, conversaremos com calma.
- Ok, seu sábado estará comprometido com seus pais. E nos outros dias? O que vai fazer de tão urgente para não poder antecipar o desastre de ficar com a Juliana pela primeira vez na formatura?
- Pintar apartamento, arrumar as coisas das caixas, comprar e receber móveis.
- Meu Deus, precisamos comprar os móveis.
Ótimo, consegui desconversar. Pedi a conta, agradeci à Adriana e saímos. Passamos na padaria antes para comprar umas cervejas para bebermos enquanto fazíamos as escolhas. Já em casa, com notebook ligado e conectado pelo celular, começamos a procurar em sites e escolher móveis e eletrodomésticos. Tatiana se meteu em todas as escolhas com comentários idiotas e sugestões escalafobéticas. Foi horroroso!
- Você é chata para caralho!
- A cala a boca ou não divido o sofá com você hoje e te coloco para dormir no chão.
- Você vai dormir aqui?
- Aham!
Foi terrível!
Continua em Aflição de mãe

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Histórias reais inventadas por mim

Sem solução
- Não! Não! Esquece! NÃO!
- A larga de ser chato. É para me ajudar. Por favor.
- Não, isso é patético.
- Patético é ter um amigo que não está disposto a te ajudar.
- Cadu, eu te ajudo com várias coisas. Vou te ajudar em tudo que pedir. Só que isso é demais.
- Por quê? O que tem de especial no que te pedi para ficar tão ofendido?
- Como não sabe? Não vou brincar de mulher.
- Não, Cesinha! Não quero que brinque de mulher. Quero apenas encenar um diálogo com você, no qual você finge que é a mulher. Eu não sei chegar em mulher na noite. Você é o rei da noite! Três palavras e a calcinha já caiu. Por favor! Diga-me onde estou errando.
- Quer saber onde está errando? Está errando ao ficar num sábado de noite com um macho na sua casa pedindo para ele fingir ser mulher.
- Eu não pedi isso. Para também, Cesinha! Vai! Colabora!
- Cara, isso é muito constrangedor. Vamos a um bar, chegamos em dupla em duas amigas e vemos como você se sai.
- Não, nem pensar! Eu vou falar besteira, gaguejar, te envergonhar e provavelmente provocar uma golfada nos seus pés.
- Como você pode provocar uma golfada puxando assunto?
- Uma vez esbarrei com uma mulher saindo do banheiro daquele pub irlandês. Ela estava tampando o nariz. Daí disse para ela: “Está reclamando do cheiro? Precisa ver o cagalhão boiando na privada do masculino.”.
- Porra, Cadu? Você mordeu o cagalhão? Comeu no café-da-manhã com Sucrilhos? Quem puxa assunto falando de merda?
- Pois é, eu sei! Eu fico nervoso e falo a primeira coisa que me vem à cabeça.
- Você deve ter alguma deficiência ou demência. Não é possível que, uma pessoa, ao se deparar com uma mulher, pense antes de qualquer outra coisa em merda.
- É que fazia sentido a deixa dela com as mãos cobrindo o nariz.
- NÃO! NÃO FAZIA SENTIDO! Fazia sentido oferecer uma bebida para ela aliviar o sofrimento. Fazia sentido comentar sobre seu pescoço cheiroso. Fazia sentido até falar para ela cheirar a sua virilha.
- Nossa que grosseria.
- Jura? Grosseria? Sério mesmo, senhor cagalhão boiando?
- Então! É isso que quero que me ensine. Quero ter um raciocínio rápido para situações em que me aproximar de uma mulher e puxar assunto de maneira adequada. Não quero falar de cagalhões, velório da minha avó, cálculo diferencial, tipos de animais que mais comumente são atropelados nas estradas ou possíveis doenças provocadas pelo consumo excessivo de amendoim.
- Quem puxa assunto falando sobre cálculo diferencial?
- Jura? Em uma lista com velório de avó e potenciais filhotes de patos atropelados, cálculo diferencial que chamou a sua atenção?
- Bem colocado.
- Então, por favor! Dá aquela ajuda. Vai! Vou chegar em você, tá?
- Hum...
- Estou chegando em você. Oi! Tudo bem?
- Sai fora, viado! Sou hétero!
- Colabora, Cesinha. Só hoje. Só para mim.
- Se disser isso novamente, te dou uma porrada.
- Tá! Ok! Pode entrar no jogo?
- Ok. Vai!
- Oi! Tudo bem?
- Tudo bem. E você?
- Tudo ótimo agora.
- Não, Cadu. Porra! Tudo ótimo agora? Só faltou dar aquela ajeitada no pau. Não precisa forçar tanto logo de início. Fala que está bem também.
- Qual seu nome?
- Ai, que grosso! Nem respondeu o que perguntei.
- Ah não sabia. Desculpe. Estou bem também.
- Agora não quero mais papo com você. Com licença.
- Porra, Cesinha. Vai na boa.
- Tá!
- Então?
- Então o quê?
- Cesinha! O seu nome! E se responder Cesinha vou ficar puto.
- Valricélia.
- Ah caralho! Colabora, Cesinha.
- Não, burro! Vai por mim. É uma boa deixa. Nomes exóticos são uma boa deixa para bons minutos de papo se mostrando interessado na garota.
- Boa! Não tinha pensado nisso. Então... Que diferente seu nome. Acho que já vi em algum lugar.
- Jura? Onde?
- Certa vez estudei com duas meninas. Uma se chamava Célia e a outra Valéria. Imagine que legal se fossem irmãs. Ou irmãs siamesas. Teria o seu nome.
- PORRA, CADU! Seus pais são primos? Qual o seu problema?
- Eu sei! Eu fico nervoso.
- Mas comigo?
- Pois é. Estou com aquele frio na barriga que tenho sempre que vou puxar assunto com uma mulher.
- MAS COMIGO?
- Vai ver eu sou inapto para este tipo de coisa. Tipo uma patologia.
- Não sabia que era tão grave assim. Temos de pensar em algo ou vai ficar mais... Mais... Há quanto tempo não transa?
- Conta puta?
- Não!
- Então sou virgem.
- PORRA, CADU! Como nunca falou comigo sobre isso? Que parada bizarra!
- Você não ia levar a sério. E até então, antes de ficar desesperado, tinha vergonha de falar sobre.
- Ah cara! Comigo? Logo eu que, até aceitar fingir que sou mulher, aceitei.
- Foi mal!
- Foi péssimo! Mal é sua situação.
- Ah obrigado.
- Desculpe. Então vamos fazer algo. Vamos montar um roteiro básico para você seguir e ver no que dá.
- Tipo decorar falas?
- É, tipo isso! Montamos algumas combinações e daí é só seguir que não vai ter erro.
- Não acho uma boa ideia.
- Por que não?
- Não sou bom nesse negócio de texto preparado.
- Como sabe disso? Você não é ator, apresentador, nem palestrante. De onde tirou isso?
- Eu sei. Tanto que pratiquei por dias essa nossa conversa de hoje e saiu tudo ao contrário.
- Ao contrário? Mas você explicou direitinho o seu problema e pediu minha ajuda de maneira razoável.
- Se fosse realmente este o problema que me trouxe aqui, né?
- Ah não é este o problema? Então qual é?
- Na realidade estou apaixonado por você, me enrolei todo e achei que com essa encenação poderia fazer coisas que iriam te conv...
- PERAÍ CARALHO! VOCÊ ESTÁ APAIXONADO POR MIM? DESDE QUANDO?
- Então... Tem uns dois ou três anos, desde que dividimos a cama naquela pousada vagabunda em Paty dos Alferes. Dormir do seu lado me ajud...
- CALMA AÍ, PORRA! VOCÊ É GAY E AINDA ESTÁ APAIXONADO POR MIM, CADU? QUE PORRA É ESSA?
- Não fala assim, Cesinha. Não me deixe nerv...
- Nervoso? Eu quero morrer! Eu prefiro estar morto a ouvir esta notícia bombástica.
- Bem, Cesinha, se você fosse uma cotia e estivesse atravessando uma estrada de Melbourne, suas chances seriam bem favoráveis.

- Cadu, você é mesmo uma tragédia. Não me faça te beijar por pena.