sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A casa dos Malavazi 2.1

(Presente)
Era pouco mais de nove da noite quando Vagner chegou ao apartamento da Barra. Quando abriu a porta, se deparou com uma sala escura e uma casa em total silêncio. Televisão estava desligada, nenhum barulho de videogame, computador, brinquedos, bonecas, nem música. Era um cenário bem diferente do que estava acostumado a encontrar quando chegava em casa. O habitual era Sandra espalhada no sofá assistindo à novela, com Julia brincando no meio da sala com suas bonecas e kits de cozinha de plástico. Artur, como de costume, ficava no quarto jogando videogame, ouvindo música e conversando no computador, tudo ao mesmo tempo e sempre em um volume que, mesmo com a porta encostada, incomodava Sandra na sala, obrigando que a mãe aumentasse o volume da televisão. Não suficiente, Marlene nesse horário estaria adiantando a comida do dia seguinte, passando roupa e ouvindo aquele ruído conhecido de panela de pressão meio que ritmando suas ações. Só que nesta noite era um silêncio e uma escuridão, quase um mausoléu. Vagner atravessou a sala e foi direto à cozinha que estava igualmente escura e deserta. Saiu pelo corredor, passou pelo quarto de Artur que estava com a porta encostada, mas dava para perceber as luzes apagadas e silêncio absoluto, o mesmo no quarto de Julia. Parou em frente à porta do quarto do casal que estava totalmente fechada, tentou escutar algo, mas não veio um som sequer. Decidiu então abrir a porta:
- Com licença, moça. Essa é a minha casa?
- Oi?
Sandra, deitada na cama, está tão distraída com o mar de revistas, papéis e recortes em seu colo que nem escutara a gracinha feita pelo marido. Ele gesticula então com uma das mãos como se desistisse do que foi dito e se aproxima, afasta algumas folhas da beira da cama para poder criar um espaço e se senta ao lado da esposa dando-lhe um beijo na testa. Ela continua compenetrada no que está fazendo, então Vagner a interrompe:
- Brincando de fazer pout-porri?
Ela esboça um sorriso com a intenção de dizer que ouviu e ser simpática, só que não responde prolongando a conversa. Vagner percebe e muda o assunto perguntando pelas crianças. Sandra diz que Julia foi dormir cedo porque estava um pouco febril, tanto que voltou mais cedo do colégio. Depois, ela fala que Artur está na rua com uns amigos e que deveria ligar para o celular dele pedindo que voltasse para casa. Os dois ficam então em silêncio. Sandra olhando as revistas e recortando fotos, Vagner observando a esposa no seu afazer. O marido se levanta e pergunta se ela vai ligar para o Artur agora:
- Não – ela responde sem tirar os olhos do que está fazendo. – Você vai ligar.
- Mas estou doido por um banho para relaxar, amor.
- Vagner, são dois minutos no máximo. Pare de dramas e ligue.
- Sandra – ele faz uma pausa balançando os braços. – Você sabe muito bem que não são dois minutos. Ele vai chiar, resmungar, negociar, chiar de novo e depois chiar mais um pouco. Isso vai demorar uns vinte minutos no mínimo. Me ajuda, vai.
- Não, Vagner – ela tira pela primeira vez os olhos do que fazia e fita o marido com expressão séria. – É só falar o que tem de ser dito e ser rígido. Dois minutos é tempo até demais.
Ela volta em seguida para o que lhe ocupava, enquanto Vagner fica em pé parado como uma assombração no meio do quarto. O silêncio perdura, mas apenas ele fica desconfortável. Sandra permanece entretida no folhear das revistas e recortar das fotos e, ainda assim, sabe que o marido não somente está ali parado, como também está tentando enrola-la. Ele coça a cabeça, olha para o lado, pega uma foto na ponta da cama, depois coloca de volta e resolve então perguntar pela Marlene:
- E a Marlene? Notei que ela não está aqui.
- Vagner – ela para o que está fazendo e novamente séria fala cadenciadamente para ele. – Pa-re de en-ro-lar e li-gue pa-ra seu fi-lho.
- Não estou enrolando, querida – ele volta a sentar na beirada da cama como sinal de aproximação e tentativa de persuadi-la. – Simplesmente acho que vai ser todo um estresse. Ele não reage bem quando falo essas coisas. Para quê criar uma situação como essas?
- Querido, isso só acontece porque ainda não resolveu o que aconteceu lá trás. Você precisa acertar essa pendência. Não dá para continuar com essa convivência tensa em que tudo que você fala, ele reage intempestivamente e tudo que ele fala, você aceita passivamente. Você não são amigos...
- Peraí – Vagner interrompe. – Claro que somos amigos.
- Você entendeu o que quis dizer. A relação principal entre vocês dois não é a de amizade, é de pai e filho. É óbvio que precisam ser amigos, mas acima disso, é pai e filho, logo precisam ter uma relação baseada nisso. Se fossem apenas amigos, tudo bem. Ficam sem se falar, passam meses sem se ver e depois o tempo cura. Mas não é o caso! Aqui é pai e filho. Você deve trata-lo como tal e vice-versa. Ainda mais morando na mesma casa. Se um dia ele surtasse e fugisse, até entenderia esse distanciamento. Ou se você um dia nos desse a alegria de nos abandonar, também seria aceitável...
- Nossa – Vagner interrompe mais uma vez. – Não precisa ser tão cruel.
- Não estou sendo cruel, estou sendo enfática e me prendendo aos fatos. Enfim, está na hora de assumir novamente o papel de pai. Ele está precisando disso.
- Só que ele vai ficar mais irritado ainda.
- Não importa. Antes ele irritado porque o pai é presente e assume sua responsabilidade, do que você achando que está tudo bem, quando na verdade não está. Não existe relação entre vocês, logo não existe paz, nem convivência saudável, apenas um abismo interpessoal.
- Existe essa palavra abismo interpessoal?
- Não é uma palavra, é uma expressão – ela volta a olhar as revistas enquanto permanece falando. – E não sei se existe, mas você entendeu o que quis dizer, portanto não enche.
- Você não pode inventar expressões e achar que isso é um argumento.
- Posso, sim. Acabei de fazê-lo – ela responde recortando uma foto e ao mesmo tempo reparando que o marido está saindo do quarto. – Mas posso usar uma expressão que existe também. Quer ver? Não foge da raia. Gostou? Aqui vai outra: volta aqui e liga aqui do quarto que quero ouvir. Que tal essa?
- Muito boas, mas ligarei da sala.
Vagner sai do quarto, saca o celular do bolso de trás da calça e liga para o celular do filho. Ele não percebe que a Sandra, na ponta dos pés, foi atrás dele e está na porta do corredor vendo e ouvindo o marido na sala.
Ele precisa refazer a ligação umas quatro vezes, pois o filho desligou enquanto chamava nas três primeiras. Vagner fica impaciente e pela primeira vez, depois de muito tempo, a insubordinação do filho o incomoda. Ele bufa e desabotoa a camisa enquanto Artur não atende. Finalmente ele consegue:
- Por que está desligando na minha cara?
- Talvez porque não quero falar com você, não?
- Pois acredite, neste momento eu também não quero falar com você. Tudo que eu queria era tomar um banho e descansar depois de um dia inteiro de trabalho. Mas não! Eu tenho que ligar para o menino que pensa que é rebelde e fica na rua até a hora que quer porque acha que a casa é um hotel. Enfim, volte para casa, porque sua mãe está pedindo – ele se vira para trás e vê Sandra ali parada gesticulando negativamente. – Ouviu? Volte para casa porque eu estou pedindo.
- Tá bom – Artur responde com um ar desleixado. – Daqui a pouco estou aí.
- Artur, eu estou pedindo, não estou mandando. E nem vou mandar, pois você vai obedecer ao pedido de seu pai. Volte para casa. São nove e meia e vou avisar na portaria que se você aparecer depois das dez não é para te deixar entrar no prédio. Está entendido?
O rapaz não diz que sim, nem que não, apena desliga. Vagner coloca o celular de volta no bolso de trás da calça e mostra para Sandra que está com as mãos tremendo. Ela faz uma corrida de três passos para abraça-lo, sorri e diz que está orgulhoso dele. Ele diz que não gosta de ser assim, que não precisa ser assim.
- Não, não precisa. Mas às vezes é necessário – ela então o pega pela mão e puxa pelo corredor até o quarto. – Agora vem ver o que estou fazendo. Acho que vai adorar.
(Continua em 2.2)