(Presente)
Era
pouco mais de nove da noite quando Vagner chegou ao apartamento da Barra. Quando
abriu a porta, se deparou com uma sala escura e uma casa em total silêncio. Televisão
estava desligada, nenhum barulho de videogame, computador, brinquedos, bonecas,
nem música. Era um cenário bem diferente do que estava acostumado a encontrar
quando chegava em casa. O habitual era Sandra espalhada no sofá assistindo à
novela, com Julia brincando no meio da sala com suas bonecas e kits de cozinha de
plástico. Artur, como de costume, ficava no quarto jogando videogame, ouvindo
música e conversando no computador, tudo ao mesmo tempo e sempre em um volume
que, mesmo com a porta encostada, incomodava Sandra na sala, obrigando que a
mãe aumentasse o volume da televisão. Não suficiente, Marlene nesse horário
estaria adiantando a comida do dia seguinte, passando roupa e ouvindo aquele
ruído conhecido de panela de pressão meio que ritmando suas ações. Só que nesta
noite era um silêncio e uma escuridão, quase um mausoléu. Vagner atravessou a sala
e foi direto à cozinha que estava igualmente escura e deserta. Saiu pelo
corredor, passou pelo quarto de Artur que estava com a porta encostada, mas
dava para perceber as luzes apagadas e silêncio absoluto, o mesmo no quarto de
Julia. Parou em frente à porta do quarto do casal que estava totalmente
fechada, tentou escutar algo, mas não veio um som sequer. Decidiu então abrir a
porta:
-
Com licença, moça. Essa é a minha casa?
-
Oi?
Sandra,
deitada na cama, está tão distraída com o mar de revistas, papéis e recortes em
seu colo que nem escutara a gracinha feita pelo marido. Ele gesticula então com
uma das mãos como se desistisse do que foi dito e se aproxima, afasta algumas
folhas da beira da cama para poder criar um espaço e se senta ao lado da esposa
dando-lhe um beijo na testa. Ela continua compenetrada no que está fazendo,
então Vagner a interrompe:
-
Brincando de fazer pout-porri?
Ela
esboça um sorriso com a intenção de dizer que ouviu e ser simpática, só que não
responde prolongando a conversa. Vagner percebe e muda o assunto perguntando
pelas crianças. Sandra diz que Julia foi dormir cedo porque estava um pouco
febril, tanto que voltou mais cedo do colégio. Depois, ela fala que Artur está
na rua com uns amigos e que deveria ligar para o celular dele pedindo que voltasse
para casa. Os dois ficam então em silêncio. Sandra olhando as revistas e
recortando fotos, Vagner observando a esposa no seu afazer. O marido se levanta
e pergunta se ela vai ligar para o Artur agora:
-
Não – ela responde sem tirar os olhos do que está fazendo. – Você vai ligar.
-
Mas estou doido por um banho para relaxar, amor.
-
Vagner, são dois minutos no máximo. Pare de dramas e ligue.
-
Sandra – ele faz uma pausa balançando os braços. – Você sabe muito bem que não
são dois minutos. Ele vai chiar, resmungar, negociar, chiar de novo e depois
chiar mais um pouco. Isso vai demorar uns vinte minutos no mínimo. Me ajuda,
vai.
-
Não, Vagner – ela tira pela primeira vez os olhos do que fazia e fita o marido
com expressão séria. – É só falar o que tem de ser dito e ser rígido. Dois
minutos é tempo até demais.
Ela
volta em seguida para o que lhe ocupava, enquanto Vagner fica em pé parado como
uma assombração no meio do quarto. O silêncio perdura, mas apenas ele fica
desconfortável. Sandra permanece entretida no folhear das revistas e recortar das
fotos e, ainda assim, sabe que o marido não somente está ali parado, como
também está tentando enrola-la. Ele coça a cabeça, olha para o lado, pega uma
foto na ponta da cama, depois coloca de volta e resolve então perguntar pela
Marlene:
-
E a Marlene? Notei que ela não está aqui.
-
Vagner – ela para o que está fazendo e novamente séria fala cadenciadamente
para ele. – Pa-re de en-ro-lar e li-gue pa-ra seu fi-lho.
-
Não estou enrolando, querida – ele volta a sentar na beirada da cama como sinal
de aproximação e tentativa de persuadi-la. – Simplesmente acho que vai ser todo
um estresse. Ele não reage bem quando falo essas coisas. Para quê criar uma
situação como essas?
-
Querido, isso só acontece porque ainda não resolveu o que aconteceu lá trás.
Você precisa acertar essa pendência. Não dá para continuar com essa convivência
tensa em que tudo que você fala, ele reage intempestivamente e tudo que ele
fala, você aceita passivamente. Você não são amigos...
-
Peraí – Vagner interrompe. – Claro que somos amigos.
-
Você entendeu o que quis dizer. A relação principal entre vocês dois não é a de
amizade, é de pai e filho. É óbvio que precisam ser amigos, mas acima disso, é
pai e filho, logo precisam ter uma relação baseada nisso. Se fossem apenas
amigos, tudo bem. Ficam sem se falar, passam meses sem se ver e depois o tempo
cura. Mas não é o caso! Aqui é pai e filho. Você deve trata-lo como tal e
vice-versa. Ainda mais morando na mesma casa. Se um dia ele surtasse e fugisse,
até entenderia esse distanciamento. Ou se você um dia nos desse a alegria de
nos abandonar, também seria aceitável...
-
Nossa – Vagner interrompe mais uma vez. – Não precisa ser tão cruel.
-
Não estou sendo cruel, estou sendo enfática e me prendendo aos fatos. Enfim,
está na hora de assumir novamente o papel de pai. Ele está precisando disso.
-
Só que ele vai ficar mais irritado ainda.
-
Não importa. Antes ele irritado porque o pai é presente e assume sua
responsabilidade, do que você achando que está tudo bem, quando na verdade não
está. Não existe relação entre vocês, logo não existe paz, nem convivência
saudável, apenas um abismo interpessoal.
-
Existe essa palavra abismo interpessoal?
-
Não é uma palavra, é uma expressão – ela volta a olhar as revistas enquanto
permanece falando. – E não sei se existe, mas você entendeu o que quis dizer,
portanto não enche.
-
Você não pode inventar expressões e achar que isso é um argumento.
-
Posso, sim. Acabei de fazê-lo – ela responde recortando uma foto e ao mesmo
tempo reparando que o marido está saindo do quarto. – Mas posso usar uma
expressão que existe também. Quer ver? Não foge da raia. Gostou? Aqui vai outra:
volta aqui e liga aqui do quarto que quero ouvir. Que tal essa?
-
Muito boas, mas ligarei da sala.
Vagner
sai do quarto, saca o celular do bolso de trás da calça e liga para o celular
do filho. Ele não percebe que a Sandra, na ponta dos pés, foi atrás dele e está
na porta do corredor vendo e ouvindo o marido na sala.
Ele
precisa refazer a ligação umas quatro vezes, pois o filho desligou enquanto
chamava nas três primeiras. Vagner fica impaciente e pela primeira vez, depois
de muito tempo, a insubordinação do filho o incomoda. Ele bufa e desabotoa a camisa
enquanto Artur não atende. Finalmente ele consegue:
-
Por que está desligando na minha cara?
-
Talvez porque não quero falar com você, não?
-
Pois acredite, neste momento eu também não quero falar com você. Tudo que eu
queria era tomar um banho e descansar depois de um dia inteiro de trabalho. Mas
não! Eu tenho que ligar para o menino que pensa que é rebelde e fica na rua até
a hora que quer porque acha que a casa é um hotel. Enfim, volte para casa,
porque sua mãe está pedindo – ele se vira para trás e vê Sandra ali parada
gesticulando negativamente. – Ouviu? Volte para casa porque eu estou pedindo.
-
Tá bom – Artur responde com um ar desleixado. – Daqui a pouco estou aí.
-
Artur, eu estou pedindo, não estou mandando. E nem vou mandar, pois você vai
obedecer ao pedido de seu pai. Volte para casa. São nove e meia e vou avisar na
portaria que se você aparecer depois das dez não é para te deixar entrar no
prédio. Está entendido?
O
rapaz não diz que sim, nem que não, apena desliga. Vagner coloca o celular de
volta no bolso de trás da calça e mostra para Sandra que está com as mãos
tremendo. Ela faz uma corrida de três passos para abraça-lo, sorri e diz que
está orgulhoso dele. Ele diz que não gosta de ser assim, que não precisa ser
assim.
-
Não, não precisa. Mas às vezes é necessário – ela então o pega pela mão e puxa
pelo corredor até o quarto. – Agora vem ver o que estou fazendo. Acho que vai
adorar.
(Continua em 2.2)