quinta-feira, 2 de abril de 2015

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Almoço e mentiras

Silêncio
Não, eu não acho justo dizer que o Célio é uma má pessoa. Até entendo que muitas das situações desconfortáveis por ele criadas poderiam ter sido evitadas, mas ele não as fazia por mal. Era meio que um problema que ele tinha desde moleque. Não sei se posso dizer que era algo patológico, que envolve psiquiatria ou psicologia na história, poderia até talvez cogitar a criação. O fato é que nada daquilo era intencional. Ele apenas fazia e muitas das vezes sem sentir. Talvez vocês não o conheçam, então vou tentar explicar.
Desde criança o Célio teve o hábito de criar situações constrangedoras com suas perguntas que poderiam ser evitadas. Alguns chatos falavam que ele era apenas um cara sincero e as outras pessoas que tinham melindres para lidar com os questionamentos. Eu digo que isso não procede. Apenas garanto que o problema dele era um desconforto com o vazio nas conversas. E não é o vazio relacionado ao conteúdo, era vazio relacionado à ausência de falas mesmo. A primeira vez que notei isso éramos adolescentes e já estávamos no ensino médio no colégio Santa Angelina. Era o aniversário dele e a molecada fez uma vaquinha para comprar salgadinhos, refrigerante e um presente para ele. Organizamos a festa na sala de aula mesmo, tudo depois da aula de química do Geraldinho. Quando restavam apenas duas coxinhas na bandeja e um final de refrigerante, a diretora Reginão entrou na sala. Todos se calaram em respeito à autoridade presente. Não tínhamos motivos para temer aquele momento, pois foi tudo consentido, inclusive por ela. Eis que ela monta um sorriso, algo que nunca tínhamos visto, e saca um presente.
- Ah obrigado – falou o Célio enquanto o pegava.
Fez-se o silêncio então. Todos pensaram que ele precisava apenas abrir o embrulho, retirar o presente, olhar e agradecer novamente mesmo se ali contivesse a cabeça da sua própria mãe. Célio permaneceu parado com aquele embrulho intocado em mãos no meio de um círculo de pessoas. O desconforto era notório e isso tinha durado apenas cinco segundos. Eis que ele quebra o vazio no som e sapeca:
- Ah, mas é da C&A, né? - o desejo de morrer foi coletivo e só não se concretizou porque Reginão foi ágil falando que já poderíamos recolher tudo e ir embora, pois a turma da tarde estava para chegar.
Nem sempre acontecia das pessoas ficarem constrangidas. Muitas das vezes elas ficavam ofendidas mesmo. Foi o caso da Gabi que também estudava conosco. O Célio vivia a cercando, sempre jogando umas indiretas e denunciando um amplo interesse nela até que um dia deu em algo. Estávamos nós três na minha casa fazendo trabalho para escola. Fui à cozinha para pegar mais refresco de maracujá e ele aproveitou a oportunidade para lascar um beijo na Gabi. Foi um beijo razoável, se considerarmos que se iniciou em um momento sem preparo. Teve língua, não sobrou baba e rolaram alguns apertões sem que ela se sentisse ofendida. Quando me aproximei do quarto, eles ouviram meus passos e pararam de se beijar, mas ficaram com os rostos muito próximos se olhando. Basicamente aquele momento que as meninas acham fofo, de olhar no fundo dos olhos e “ler” a pessoa com quem está. Para o Célio isto era uma tortura e algo precisava ser dito:
- Por que você tem gosto de salame na boca?
Gabi se levantou, saiu correndo, trombou em mim, derrubou o refresco de maracujá, foi embora e nunca mais falou com o Célio. Ele não foi capaz de entender a relação entre a ação e a consequência daquele ato. Tanto que quando perguntado sobre o tal dia, ele dizia que no final das contas valeu a pena, pois derramaram o refresco de maracujá azedo que a minha mãe nunca soube adoçar e assim não precisou beber.
Foi assim a vida toda. Vinha o silêncio, saia um comentário desnecessário e avassalador. E se o evento do beijo foi patético, imagine a história com a Thais. Primeiro encontro, cinema, depois jantar. Os momentos iniciais no restaurante foram bem agradáveis. Como tinham acabado de sair do cinema, falaram bastante sobre as impressões que tiveram do filme. Com o tempo passando, o assunto foi se esgotando, breves silêncios foram surgindo, até que em uma hora os dois se calaram. Thais, para demonstrar total interesse em Célio e ansiedade para que ele puxasse uma nova conversa, parou e ficou sorrindo para ele. O Célio por sua vez, incomodado com aquilo, mandou outra bola fora:
- Seus dentes são bem amarelos e irregulares, né?
Muitas dessas histórias têm mais de 50 anos, sendo que algumas delas eu não revisitava por uns 20 anos. Lembrei-me de todas enquanto dirigia da minha casa até o hospital São Patrício. Tinha recebido uma ligação informando que Célio passara mal na rua, supostamente sofreu um AVC e foi levado às pressas para lá. Entrei no quarto e lá estava ele parado com olhos fechados e um tubo enfiado em sua garganta para ajudar na respiração. Tinha sido algo mais grave que suspeitaram e ele aparentemente entrou em coma. Fiquei de pé ao lado da cama olhando para meu amigo de muitos anos. Tive mais tempo de convivência com ele do que com meus próprios pais. Apesar de toda agonia presente em alguém em tal estado, estranhamente ele transmitia uma imagem de paz. Não sei o que se passou pela minha cabeça, mas disparei a relembrar em voz alta as tais histórias, como se estivesse conversando com ele. Falei da Reginão no seu aniversário, da Gabi, da Thais e outras mais. Foram quase trinta histórias, ou melhor, quase uma hora conversando sozinho com meu amigo. A última que contei foi sobre a festa de bodas de ouro do casal Arnaldo e Marlene, onde, depois de fazer seu discurso que terminou de maneira abrupta, confundindo os convidados que, por isto, não bateram palmas, Célio, ainda de microfone em mãos se virou para o Arnaldo e disparou:
- Mas é sério que nunca estranhou seus filhos não serem parecidos com você?
Assim que terminei de contar a história, parei por breves segundos para me despedir do Célio. Eis que ele se mexe e, com todo desconforto que uma pessoa pode ter com um tubo enfiado em sua garganta, disse:
- Você nunca sabe a hora de calar a boca, né?


Próximo conto da coleção: Idiota, hormonal e clichê