Conto anterior da coleção: Almoço e mentiras
Silêncio
Não, eu não acho justo dizer que o
Célio é uma má pessoa. Até entendo que muitas das situações desconfortáveis por
ele criadas poderiam ter sido evitadas, mas ele não as fazia por mal. Era meio
que um problema que ele tinha desde moleque. Não sei se posso dizer que era
algo patológico, que envolve psiquiatria ou psicologia na história, poderia até
talvez cogitar a criação. O fato é que nada daquilo era intencional. Ele apenas
fazia e muitas das vezes sem sentir. Talvez vocês não o conheçam, então vou
tentar explicar.
Desde criança o Célio teve o hábito de
criar situações constrangedoras com suas perguntas que poderiam ser evitadas.
Alguns chatos falavam que ele era apenas um cara sincero e as outras pessoas
que tinham melindres para lidar com os questionamentos. Eu digo que isso não
procede. Apenas garanto que o problema dele era um desconforto com o vazio nas
conversas. E não é o vazio relacionado ao conteúdo, era vazio relacionado à
ausência de falas mesmo. A primeira vez que notei isso éramos adolescentes e já
estávamos no ensino médio no colégio Santa Angelina. Era o aniversário dele e a
molecada fez uma vaquinha para comprar salgadinhos, refrigerante e um presente
para ele. Organizamos a festa na sala de aula mesmo, tudo depois da aula de
química do Geraldinho. Quando restavam apenas duas coxinhas na bandeja e um
final de refrigerante, a diretora Reginão entrou na sala. Todos se calaram em
respeito à autoridade presente. Não tínhamos motivos para temer aquele momento,
pois foi tudo consentido, inclusive por ela. Eis que ela monta um sorriso, algo
que nunca tínhamos visto, e saca um presente.
- Ah obrigado – falou o Célio enquanto
o pegava.
Fez-se o silêncio então. Todos
pensaram que ele precisava apenas abrir o embrulho, retirar o presente, olhar e
agradecer novamente mesmo se ali contivesse a cabeça da sua própria mãe. Célio
permaneceu parado com aquele embrulho intocado em mãos no meio de um círculo de
pessoas. O desconforto era notório e isso tinha durado apenas cinco segundos.
Eis que ele quebra o vazio no som e sapeca:
- Ah, mas é da C&A, né? - o desejo
de morrer foi coletivo e só não se concretizou porque Reginão foi ágil falando
que já poderíamos recolher tudo e ir embora, pois a turma da tarde estava para
chegar.
Nem sempre acontecia das pessoas
ficarem constrangidas. Muitas das vezes elas ficavam ofendidas mesmo. Foi o
caso da Gabi que também estudava conosco. O Célio vivia a cercando, sempre
jogando umas indiretas e denunciando um amplo interesse nela até que um dia deu
em algo. Estávamos nós três na minha casa fazendo trabalho para escola. Fui à
cozinha para pegar mais refresco de maracujá e ele aproveitou a oportunidade
para lascar um beijo na Gabi. Foi um beijo razoável, se considerarmos que se
iniciou em um momento sem preparo. Teve língua, não sobrou baba e rolaram
alguns apertões sem que ela se sentisse ofendida. Quando me aproximei do
quarto, eles ouviram meus passos e pararam de se beijar, mas ficaram com os
rostos muito próximos se olhando. Basicamente aquele momento que as meninas
acham fofo, de olhar no fundo dos olhos e “ler” a pessoa com quem está. Para o
Célio isto era uma tortura e algo precisava ser dito:
- Por que você tem gosto de salame na
boca?
Gabi se levantou, saiu correndo,
trombou em mim, derrubou o refresco de maracujá, foi embora e nunca mais falou
com o Célio. Ele não foi capaz de entender a relação entre a ação e a consequência
daquele ato. Tanto que quando perguntado sobre o tal dia, ele dizia que no
final das contas valeu a pena, pois derramaram o refresco de maracujá azedo que
a minha mãe nunca soube adoçar e assim não precisou beber.
Foi assim a vida toda. Vinha o
silêncio, saia um comentário desnecessário e avassalador. E se o evento do beijo
foi patético, imagine a história com a Thais. Primeiro encontro, cinema, depois
jantar. Os momentos iniciais no restaurante foram bem agradáveis. Como tinham
acabado de sair do cinema, falaram bastante sobre as impressões que tiveram do
filme. Com o tempo passando, o assunto foi se esgotando, breves silêncios foram
surgindo, até que em uma hora os dois se calaram. Thais, para demonstrar total
interesse em Célio e ansiedade para que ele puxasse uma nova conversa, parou e
ficou sorrindo para ele. O Célio por sua vez, incomodado com aquilo, mandou
outra bola fora:
- Seus dentes são bem amarelos e
irregulares, né?
Muitas dessas histórias têm mais de 50
anos, sendo que algumas delas eu não revisitava por uns 20 anos. Lembrei-me de
todas enquanto dirigia da minha casa até o hospital São Patrício. Tinha
recebido uma ligação informando que Célio passara mal na rua, supostamente
sofreu um AVC e foi levado às pressas para lá. Entrei no quarto e lá estava ele
parado com olhos fechados e um tubo enfiado em sua garganta para ajudar na
respiração. Tinha sido algo mais grave que suspeitaram e ele aparentemente
entrou em coma. Fiquei de pé ao lado da cama olhando para meu amigo de muitos
anos. Tive mais tempo de convivência com ele do que com meus próprios pais.
Apesar de toda agonia presente em alguém em tal estado, estranhamente ele
transmitia uma imagem de paz. Não sei o que se passou pela minha cabeça, mas
disparei a relembrar em voz alta as tais histórias, como se estivesse
conversando com ele. Falei da Reginão no seu aniversário, da Gabi, da Thais e
outras mais. Foram quase trinta histórias, ou melhor, quase uma hora
conversando sozinho com meu amigo. A última que contei foi sobre a festa de
bodas de ouro do casal Arnaldo e Marlene, onde, depois de fazer seu discurso
que terminou de maneira abrupta, confundindo os convidados que, por isto, não
bateram palmas, Célio, ainda de microfone em mãos se virou para o Arnaldo e
disparou:
- Mas é sério que nunca estranhou seus
filhos não serem parecidos com você?
Assim que terminei de contar a
história, parei por breves segundos para me despedir do Célio. Eis que ele se
mexe e, com todo desconforto que uma pessoa pode ter com um tubo enfiado em sua
garganta, disse:
- Você nunca sabe a hora de calar a boca, né?
Próximo conto da coleção: Idiota, hormonal e clichê