Devia ser a sexta vez que trocávamos
olhares e ainda permanecia no mesmo local. Parte dessa inércia é culpa da minha
total incapacidade de determinar quando alguém está afim de mim ou quando
alguém está me desprezando. A outra parte é por conta da minha timidez que
insistem em dizer que é invenção minha. Acreditem, sou tímido, até demais.
Vocês que estão habituados a conviver comigo apenas quando bêbado. Não existe
bêbado tímido, existem apenas bêbados prestes a desmaiar. Em momentos de bebedeiras,
timidez é um sinal clássico de se levar alguém para o hospital ou iniciar
conversa com outra pessoa.
Não sei se cansada por aquele
cerimonial que não levava a lugar algum, ou se intrigada para descobrir se eu
era um retardado, ela se aproximou e puxou assunto. Aqueles cumprimentos de
sempre, trocamos nossos nomes, o dela era Michele, além de pausas breves e constrangedoras
entre perguntas e respostas. Nada muito diferente da rotina antes da conversa
engatar ou da habitual virada de costas. A conversa fluiu então:
- Acho que já te vi algumas vezes por
aqui antes – ela afirmou e ainda assim colocou um ar de dúvida.
- Sim, provavelmente – respondi tentando
olhar apenas nos seus olhos, apesar de seu decote possuir poderes magnéticos. –
Moro literalmente aqui em cima.
- Hum, sócio daqui então?
Ela tinha um talento para instigar a
conversa, o que era desnecessário considerando aquele decote. Ainda assim, não
era o meu propósito inicial. Não tinha nem três semanas que me mudara, estava
arrependido e depressivo. Só queria beber algo e depois dormir. Aparentemente
ela estava tornando minha meta simplória em algo mais complexo do que
precisava.
- Só beber uns tragos e nada mais?
Impossível – ela disse incrédula. – Homem quando quer fazer isso não vai para
bar badalado, fica em casa.
Ela tinha certa razão em seus
argumentos. Eu podia facilmente ficar em casa bebendo o pouco de álcool que lá restava,
mas daí a graça de se divertir vendo as pessoas passando vergonha seria desperdiçada.
E, convenhamos, normalmente eu proporciono esse prazer aos outros. Eu mereço
uma noite de retribuição ao menos.
- Você só está piorando – ela disse
rindo logo após que expliquei meus propósitos originais. – Isso é papo para
tentar comer alguém.
- Está funcionando?
- Céus, você é horrível e maligno – a afirmação
foi seguida de uma apertada no braço que para todo bom entendedor significa
muito. – Estou começando a gostar de você.
Um cretino sempre reconhece outro
cretino, e ela era uma cretina por essência. Era algo que podia se encaixar no
meu propósito, alguém com talento para proporcionar uma conversa divertida e ao
mesmo tempo interessante. Seu único defeito era ser atraente. Não queria
distrações hormonais, queria apenas uma noite tranquila de quinta-feira que se
encerrasse na sexta-feira. Já tive muitas noites de quinta-feira que se
estenderam por meses em furadas repetidas e tentativas frustradas de desvencilhar
contato.
- O que faz da vida – ela perguntou
dando margem para ser sincero ou apenas manter o personagem. – É meio tarde
para alguém que supostamente trabalharia cedo amanhã.
- Destruo a vida as pessoas.
- Nossa, que interessante – ela falou
erguendo seu chopp como fazendo um brinde. – É advogado familiar?
Cada vez mais genial e entrosada com o
meu cinismo, ela estava se tornando irresistível. Naquele momento, a parte
física dela sequer importava mais, tornara-se sexy na minha maneira favorita.
Disse então que aquela era a minha vocação apenas, mas que, por influência do
mercado, eu era desempregado.
- A minha profissão – ela repetiu a
minha pergunta, talvez para pensar na resposta. – Sou professora de educação
infantil.
- Professorinha então?
- Sim, podemos dizer assim.
- Ora, está tentando me seduzir –
disse com um olhar declaradamente debochado. – Não instigue meus fetiches,
mocinha. Posso te chamar de tia Teteca?
Sua risada era uma delícia, ainda mais
sabendo que eu a provoquei. O destino é um desgraçado debochado mesmo. Cansei
de perder a conta das vezes que saí com a piores das intenções e tudo que
consegui foi terminar a noite tocando punheta no banho pensando em alguma
garota que sequer olhou para mim. Desta vez, só queria meia dúzia de chopps e
voltar para casa. Contudo, o maldito me apresenta a minha versão feminina, com
peitos no tamanho certo, sorriso fatal e cabelão. Ah, como cabelão me abala.
- Isso foi muito direto para quem
tinha um propósito mais conservador.
- Ei, não persista nessa ideia de
desmistificar o meu propósito. Estava sendo sincero.
- Suas atitudes confirmam, mas sua
fala desmente.
Assumir, meio que indiretamente, que
está me analisando é uma boa forma de me conquistar. Se a pessoa fizer isso com
talento então, praticamente tatua o nome na minha mente. Sim, porque pelo
coração ninguém me ganha. Minha cota de se apaixonar pelos motivos errados está
esgotada tem tempo. Precisava então confirmar o quanto ela era boa em me
analisar.
- Claro que suas intenções são dúbias –
ela me respondeu com certa propriedade. – Suas falas são de quem quer seduzir e
envolver a pessoa na conversa. Já seus olhos são comportados, direcionados
apenas para o meu redor.
- Mamãe ficaria tão orgulhosa da
segunda parte.
- Imagino que sim, mas meus peitos
estão ofendidos.
- Oh me desculpe. Não era a minha
intenção – retruquei fitando desavergonhadamente o decote. – Olá, meninas! Vejo
que estão com frio.
- Você é horrível – ela reagiu rindo e
cobrindo o decote. – Vejo também que está bem alegre.
- Não se iluda pelo meu pau. Ele é um
idiota que se entusiasma à toa. Nem sempre me representa. Ele confunde a euforia
do meu cérebro com a sua conversa achando que iremos trepar.
- Trepar? Bem, não podemos negar o seu
romantismo, não é mesmo?
- Ora, não fique melindrada. É apenas
um termo técnico específico dentro de uma cadeia classificatória ténica.
- Então espera um minuto – ela se
interrompe para em um único gole terminar a metade restante de seu chopp e
depois prosseguir. – Preciso de uma dose razoável de álcool para este momento.
Pois bem, me diga da cadeia.
- A nomenclatura vai de acordo com o
nível de profanidade do ato obsceno. Isto é, quando mais sacanagem e sujo, mais
alto está na cadeia.
- E qual é o mais baixo de todos?
- Depende do baixo. Pode ser o baixo
no sentido de imundo e no sentido de pior colocação.
- O último!
- É o que só tem papai e mamãe. Leva o
nome de fazer amor. É monótono, desprezado pela maioria das pessoas felizes e o
culpado pelo fim dos relacionamentos.
- É, não os condeno. E depois, o que
tem?
- Pela ordem, subindo na cadeia de
obscenidade estão fazer amor, fazer sexo, transar, trepar, foder e rodízio de
pizza que é uma putaria do caralho.
Em situações normais de temperatura e
pressão, qualquer outra mulher me chamaria de idiota, viraria as costas e
passaria uma boa parte da vida me difamando para as amigas. Confesso que ela me
chamou de idiota, sim, mas não foi embora. Ela ficou e riu. Riu como nunca
naquela noite. Para os meus propósitos originais, era como se a tivesse feito
gozar como nunca. Ao menos o assunto era sexo, o que ajuda na analogia.
- Você está sendo muito rigoroso – sua
réplica foi interrompida primeiro pelo garçom que trouxe mais uma rodada de
chopp e depois interrompida para brindarmos e dar o primeiro gole. – Sexo é bom
de qualquer jeito.
- Não disse que era ruim. Apenas
mencionei a classificação por alto, você se interessou e dissertei sobre. Para
mim, sexo também é bom de qualquer forma. Inclusive sozinho.
- Sim, adoro sozinha. Poucos superam o
que alcanço sozinha.
- Então vamos combinar o seguinte –
fiz uma pausa para mais um gole e também dar um ar de suspense à minha
proposta. – Como disse, queria sair apenas para tomar um chopp. Nada de flertes
ou algo do tipo. Vamos lá para casa, você brinca sozinha e eu assisto. De uma
maneira muito estranha terei conseguido cumprir com a minha proposta original e
você ainda terá um final de noite espetacular.
- Ah seu fofo – agora foi a vez dela
fazer uma pausa dramática para beber seu chopp. – Já estava nos meus planos ter
um final de noite espetacular. Cabe apenas a você querer participar
efetivamente ou não.
Mulheres bem resolvidas com iniciativa
são as minhas favoritas e as que mais me intimidam. Talvez uma coisa explique a
outra. Não bastante, estávamos no oitavo ou nono chopp. Não me recordo. Eram
muitas coisas favoráveis para inverter a noite.
Eu sei que estou parecendo um frouxo
nessa ladainha, mas o histórico me obriga a fazer isso. Estou talvez na minha
última chance e, como disse inclusive para ela, já arruinei com a vida de muita
gente. Precisava ao menos uma vez provar para mim mesmo que era capaz de manter
uma meta estabelecida. E, convenhamos, ela era um teste à altura.
- Baby, estou começando a achar que
está levando para o lado pessoal essa coisa de provar que era balela o meu
objetivo de noite.
Ela deu mais um gole no chopp, apoiou
seus cotovelos na mesa para melhor se aproximar de mim. Em seguida, deixou
propositalmente o decote exposto. Olhou para um lado, olhou para o outro e voltou
a me olhar. Ensaiou que ia começar a falar algo, se conteve, molhou os lábios e
aí sim falou:
- Deixa eu ver se entendi bem, baby –
faço uma ressalva para dizer que adoro quando usam esse termo para debochar de
mim. – Você vai insistir nessa posição de se manter irredutível, para ganhar um
jogo que você mesmo inventou e no final nenhum dos dois na realidade saem
ganhando?
- Você assim faz parecer terrível. Não
é tão simples. É uma coisa própria com fundamentos.
- Ok – ela começou a se levantar. –
Devo ficar feliz por você ao menos?
- Não precisa disso – fiz um gesto
para que se sentasse. – Vamos combinar o seguinte. Sábado agora nos
esbarraremos propositalmente sem querer aqui. Estarei sem objetivos ou provas
pré-estabelecidas. De quebra, estarei orgulhoso da minha conquista de hoje.
- Não vai ter sábado – ela continuou a
se levantar. – Sabe por qual motivo? Porque não sou daqui e volto para a minha
cidade amanhã de tarde. Entende a razão por ser tão decidida?
Na manhã seguinte, pouco depois de
meio-dia, eu e Michele tomamos coragem de sair da cama para tomar café na
padaria aqui da esquina. Comemos, ofereci em seguida carona, ela disse que não
precisava, bastava acompanha-la até o ponto de taxi.
- Que horas vai embora?
- Para onde?
- Para a sua cidade.
- Eu moro em São Cristóvão, bobinho. Esqueceu
que comentei que te vi outras vezes por lá no bar? Nos vemos no sábado?