A semana, como imaginava, seria muito
corrida. Começou com um domingo morto e estava em uma ressaca de merda. Assim
que cheguei do almoço com meus pais, no dia anterior, passei em um pequeno
mercado perto de casa e comprei alguns biscoitos salgados para comer de noite.
Para acompanhar, levei a única bebida que conseguiria consumir sem ter uma
geladeira ainda em casa: tequila. Que mentira! Comprei primeiro a tequila e depois
os biscoitos para acompanhar. Entre um punhado de biscoito enfiado na boca e um
shot de tequila, analisava como faria
a pintura do quarto e da sala. Na metade da garrafa desisti do copinho de café
que peguei no restaurante para fazer shot
e pulei para os goles diretos no gargalo. Cinco horas depois a garrafa
estava vazia na pia da cozinha, os pacotes de biscoito amassados no chão e eu
devastado no sofá. Como disse, o domingo foi destruidor. Fiquei o domingo em um estado
zumbi vagando entre o banheiro e o sofá, me limitando a beber água direta da
torneira para minimizar a ressaca.
Já na segunda, recuperado
parcialmente, fui à procura de tintas, rolos, bandejas e todas as outras coisas
que uma que pessoa que quer se passar por pintor profissional compraria. Faltou
apenas uma coisa, comprar a técnica. Ainda assim achei que conseguiria um
resultado razoável. Entre analisar um galão e outro, resolvi mandar uma
mensagem para Juliana pedindo que adivinhasse o que estava fazendo. Ela, sempre
indo na ferida, me respondeu provocativamente:
“Agonizando
de ressaca no chão de algum lugar.”
Como não amar uma mulher que sabe te
provocar? Repliquei de maneira seca e direta. Disse apenas que estava comprando
tinta. A ideia era instiga-la a perguntar para qual propósito precisava de
tinta. Mais uma vez ela foi ferina. Porém, agora, como estava desatualizada
sobre a minha vida, errou o alvo:
“Pintar
o apartamento não é a melhor opção para salvar seu casamento.”
Pois é, ela não sabia que tinha saído
de casa. Não nos falávamos desde dois dias antes da mudança. Era o momento.
Claro que preferiria que fosse ao vivo e assim poderia presenciar sua reação.
Ela merecia que fosse daquele jeito. Só que não dava para segurar até o sábado.
Era importante que soubesse antes. Isso mudaria totalmente sua expectativa
sobre a festa. Ao menos era o que eu esperava.
“Não,
baby! Estou comprando tinta para pintar meu apartamento novo. Saí de casa!”
Após alguns segundo encarando
seguidamente a tela do celular esperando por uma reação dela que não veio, o
vendedor me interrompeu me chamando. Aparentemente não tinham cor branca. Sugeriu
então gelo, nude, palha ou outra cor que honestamente sequer sabia que existia.
Coloquei o celular no bolso e fui com o vendedor ver as opções. Para mim, eram
todas palhetas brancas com níveis diferentes de empoeiramento, mas ele insistia
em dizer que fazia uma diferença enorme quando aplicadas em um ambiente
apropriado. Como se algo em minha vida fosse apropriado. Depois de alguns minutos
olhando em silêncio, pedi para o vendedor um tempo para pensar. Peguei o celular
na tentativa de ligar para meu pai e pedir uma ajuda. Acionei a tela e vi sete
ligações perdidas da Juliana. A oitava começou a tocar. Sorri espontaneamente e
atendi:
- LOUCO – ela tinha, em alguns
momentos, uma forma estranha de me chamar. – VOCÊ É LOUCO? QUAL O SEU PROBLEMA?
Perguntas como essas quando feitas
para mim costumam ser recebidas de forma bem subjetiva. Afinal, elas se aplicam
em tantas possibilidades que me obrigavam a refletir atentamente para saber ao
certo do que falava especificamente. Acreditando então que em partes fosse por
conta da saída de casa, contei no detalhe. Era possível perceber que ela estava
pasma e ao mesmo tempo eufórica com a notícia. Ela, por mais que tivesse
interesse neste tipo de acontecimento, era muito cética sobre tal
possibilidade. Sempre ficou bem claro o quanto ela estava envolvida comigo,
assim como sua convicção de que jamais sairia com um homem casado. Ao mesmo
tempo, ainda que tão interessada quanto eu que algo acontecesse, nunca me pediu
para tomar essa decisão.
Não, não era fácil manter contato e
nada rolar entre os dois. O clima era sempre intenso. Suas amigas notavam. Os
outros professores notavam. Talvez em sua cabeça transbordavam tantos
fundamentos básicos de ética sobre sair com homens casados ou força-los a se separar
para enfim ter algo com eles, que isso lhe dava a segurança para agir com
rigidez quanto aquilo. Eu a odiava demais por isso.
Acredito que, enquanto ela em algum momento
torcia para que aquilo acontecesse, ela também tinha a certeza que com a
chegada da formatura nunca mais nos veríamos se não acontecesse algo. Com o passar
do tempo teríamos apenas as trocas de mensagens que iriam inevitavelmente
esfriando. A convivência contínua de colégio acabaria naquele evento e, se nada
tivesse se concretizado, tudo ali terminaria de vez. Seria apenas questão de
tempo. A forma como ela lidava com serenidade com aquela possibilidade me
deixava louco. Eu sou instintivo, impulsivo e irresponsável. Ela era centrada,
racional e paciente. Eu sabia desde o início que isso seria uma dor de cabeça
enorme, mas como eu queria aquela dor de cabeça.
A ligação durou uns vinte minutos.
Fato que irritou o vendedor que me abandonou e foi almoçar. Falamos obviamente
da decisão tomada, de o quanto estava certo daquilo e como estava lidando com a
nova vida. Mesmo com ela não tendo feito sequer uma mínima menção ao fato,
deixei claro que nunca me senti pressionado por ela. Ela consentiu, não
escondeu que era uma notícia que na sua individualidade egoísta lhe satisfazia,
mas ao mesmo tempo lamentava por um casamento fracassado. Que diabos de garota
com vinte e poucos anos tem uma cabeça tão boa quanto ela? Custava simplesmente
falar que estava feliz com a notícia e que pretendia comemorá-la trancada
comigo no quarto por todo um final de semana? Claro que não! Contudo, ela não
somente comentou aquilo, como acrescentou que o fato de estar solteiro não
significava necessariamente que teríamos algo. Para ela, era necessário
demonstrar um real interesse além de um final de semana inteiro trancados em um
quarto. A cretina parecia ler minha mente. Acho que conversávamos demais.
- Baby, por fim, antes que desligue.
Você prefere frequentar um quarto com a parede cor gelo, palha, areia ou nude?
- Baby, honestamente, tenho muita
esperança que, no dia que começar a frequentar o seu quarto, me entretenha a
ponto de sequer conseguir reparar na cor da parede dele.
Desnorteado e sorridente, encerrei a
ligação, paguei pelas tintas e outras coisas e fui embora. Como o prazo para a
entrega era de três horas no mínimo, fui almoçar no restaurante da minha rua. Ao
entrar, Adriana se lembrou de mim e perguntou pela Tatiana como quem está
sondando para saber se era namorada, esposa ou parente para evitar comentários
constrangedores em outras situações futuras. Disse que era minha irmã mais
velha:
- MAIS VELHA?
- Pois é, ela usa muito Nivea Renew.
Ela não entendeu a gracinha, anotou o
pedido e foi embora. Almocei acompanhado de duas garrafas de cerveja e levei
outras duas para casa. Na portaria, para minha frustração, Pereira disse que os
móveis não chegaram. Nem os eletrodomésticos. A geladeira era minha maior
preocupação. Ainda sem ela, fui obrigado a beber em ritmo de Oktoberfest as
duas garrafas para que não ficassem quentes. Daí, o esperado acontece. Entregam
as tintas, você está meio relaxado com um total de quatro cervejas em uma hora
e meia e acaba achando melhor deixar para mais tarde. Deitei no sofá e dormi.
Não preciso dizer que quando acordei, por volta das oito da noite, nem cogitei
iniciar a pintura. Que ficasse para o dia seguinte. A melhor opção era ir para
a Lapa.
Acordei na terça-feira com o toque do
celular. Eram mensagens da Juliana perguntando se poderia ajuda-la na escolha
do vestido para a formatura. Perguntei com sinceridade se era para ir ver
pessoalmente. Não, ela só queria saber se estava com tempo livre para receber
as fotos conforme experimentava. Ok, deu para perceber que não iria encontra-la
naquele momento. Quando ia responder que estava sempre com tempo livre, percebi
que era quase meio-dia. Dormi além da conta. Talvez por ter chegado em casa da
Lapa quase cinco da manhã.
“Baby,
perdi a hora e estou indo voando para a sua terra. Tenho conselho de classe
daqui uma hora. Vai mandando as fotos e chegando lá te respondo uma a uma.”
Tomei banho, vesti meu uniforme básico
de calça jeans e camisa de malha preta, subi na moto, vi rapidamente a primeira
resposta dela me chamando de irresponsável e parti. De moto, o caminho até o
colégio na Pavuna era bem rápido. Durante todo percurso senti o celular
vibrando de mensagens chegando. Já imaginava a quantidade de fotos que estariam
à minha espera. Cheguei com quinze minutos de atraso e mesmo assim fui elogiado
por Verônica, uma das coordenadoras do colégio. Era habitual chegar com quase
uma hora de atraso. Agradeci pelos elogios, sentei-me ao redor da mesa e,
enquanto mexia no celular, tentava me inteirar sobre a pauta em questão. Lá
estavam elas, dezessete fotos. Uma para cada vestido experimentado.
Era esperado qualquer tipo de
surpresa, afinal estava acostumado a ver Juliana sempre com roupas de aula,
nada espalhafatoso, mas também nada largado, apenas o básico. Se deparar com
ela em um vestido de gala, mesmo sem maquiagem e penteado era o
suficiente para provocar pânico. Aqueles pânicos maravilhosos que sentimos
quando estamos em uma loja de doces, ou quando na entrada da festa avisam que é
Open Bar. Exceto por três que eram de gosto duvidosos, os demais ficaram espetaculares. Disse para escolher todos e usar um por dia comigo. Ela riu, disse que
sequer podia pagar por um e pediu que escolhesse logo qual era o melhor. Não
tinha melhor. Ela nasceu para usar todos aqueles vestidos. A cintura delineada,
os seios preenchendo o decote e a parte de uma de suas pernas escapando pela
fenda era algo que precisava ser visto pelo resto da minha vida. Com aquilo,
cancelava internet, vendia a televisão, jogava fora meus livros e ficaria rindo
das pessoas que se contentavam em deslumbrar o pôr-do-sol no Arpoador.
Não adiantava, precisava escolher um
vestido. Fiquei uns vinte minutos passando foto para cá, foto para lá, dava
zoom, analisava aqui, enxergava acolá. Amaral, colega de vida e de profissão
que estava ao meu lado, me sinalizou para disfarçar. Não dava. Era impossível.
Tinha uma meta para bater e ficar admirando aquelas fotos era cada vez mais
prazeroso. Ele me deu uma cotovelada e com a cabeça apontou para Verônica como
quem diz para prestar atenção. Não quero prestar atenção na Verônica e seu
discurso chato para justificar que o décimo terceiro só será pago no carnaval.
E se fosse para receber tal notícia, que seja olhando para o que tanto me
fascinava naquele momento. Amaral, discretamente resolveu dar uma checada no que
tanto olhava no celular:
- É a Juliana do terceiro ano?
- É, mas fala mais alto que a senhora
idosa em coma no hospital de Saracuruna não ouviu direito.
- Por que ela está te mandando fotos
de vestido?
Conhecia o Amaral tinha mais de quinze
anos e ainda ficava estupefato com a capacidade dele de ser desligado das
coisas. Por que diabos uma aluna mandaria fotos dela de vestido de gala para
seu professor? Era algo tão óbvio e limitado de respostas que sequer consegui
rebater com uma cretinice à altura da estupidez dele. Optei então por guardar o
celular por alguns minutos, sorrir debochadamente para ele e me levantar para
pegar um copo de café com biscoitos. É sempre ótimo começar o dia com uma
refeição que envolva biscoito tipo água e sal sem uma gosma sequer para se
passar em cima e um café melado frio.
“Anda!
Qual acha mais bonito?”
Juliana interrompeu meu momento de
professor concentrado na reunião com outra mensagem. Não sabia o que responder.
Todos estavam ótimos porque era ela vestindo. Acabei sendo influenciado pelo
azul marinho, pois na foto ela fez uma pose mais sexy que com os outros e
parecia o que tinha a logística mais prática de retirada em caso de um ataque
feroz meu. Instintivamente pensei em como lidar com ela e aquele vestido. Como
agarrar, apertar, puxar, tirar delicadamente uma das alças enquanto a outra mão
a pressiona com força enchendo suas costas. Respondi o que me veio à cabeça.
“Esquece!
Você não vai me agarrar no banheiro da festa!”
Era capaz de, naquele momento, ouvir a
voz da Tatiana dizendo que ela era a garota certa. Claro que ela era a garota
certa e que tentaria agarrá-la no banheiro da festa. E o fato de não conseguir
tirar dela um minuto de descontrole a tornava um desafio proporcionalmente
grande a esta certeza.
Respondido o vestido, ela não fez mais
contato. Provavelmente estava falando com outras amigas pedindo opinião, ou
preenchendo o formulário para abrir um crediário para pagar o vestido. Voltei
minha atenção à reunião. Metas para o ano que estava por vir, orientações para
as correções das provas finais, distribuição de turmas. Tudo uma chatice sem
fim que poderia ser feito por um único e-mail que ignoraria igualmente como
estava fazendo naquele momento. Ao final, como de costume, liberaram a bebida e
acenderam a churrasqueira. Agora sim estava na Pavuna.
Socializava com um professor, olhava
uma foto recebida, conversava com outro grupo, mais uma bisbilhotada nas
imagens. Mandei uma mensagem para Juliana perguntando que horas voltaria para a
Pavuna para quem sabe nos esbarrarmos por lá e ela me cortou na maneira de
sempre:
“Não!
Somos ainda aluna e professor! Seja paciente e aguarde até o sábado. Parece
adolescente!”
Ela gostava muito de exclamações e
isso era um dos raros defeitos dela. Talvez eu seja tão cretino que acabei
escolhendo como defeito algo que jamais me faria perder o interesse nela.
Enquanto refletia separadamente sobre como responder à altura, Verônica se
aproximou e puxou assunto sobre a formatura:
- Eu sei que você vai e não apenas
porque é o patrono da turma – fiz minha expressão de bobo conhecida como cara
de nascença, mas não colou. – Todos sabem que você vai por conta da Juliana do
terceiro ano. Diferentemente dela, você não sabe disfarçar e isso é grave. Uma
aluna ficar demonstrando paixonite por professor é normal e esperado. O que não
posso é ter um professor parecendo um desenho animado com os olhos saltando em
formato de coração toda hora que uma determinada aluna passa à sua frente. Só
te peço duas coisas, por favor. Controle a bebida. Você tem uma mão nervosa que
insiste em derramar tudo que é alcóolico garganta abaixo. E contenha-se em
relação a ela. A família dela estará por lá e eles talvez fiquem preocupados
com um professor cercando a filha como um urubu faminto.
- Verônica, calma. Eu não sou tão
burro assim.
- Não, não é. Eu sei disso. Nunca vi
um professor contornar tão bem as situações como você. Por conta dessa sua
mania de querer bancar o cara legal e manter uma pinta de mau ao mesmo tempo,
fica uma dúzia de alunas por semestre se esfregando em você. E me impressiona o
quanto consegue reverter isso sem magoar as meninas ou se expor.
- Então...
- Não terminei – ela me cortou. – Só
com essa menina que você fica um palerma. Parece os outros professores daqui
que sequer disfarçam e conversam com as alunas encarando diretamente os decotes
delas. Faça o seguinte, esqueça os dois pedidos anteriores. Vou fazer apenas um
e quero que pense bem nele, ok?
- Ok. Pode falar.
- Lembre-se que é casado.
- Verônica, eu saí de casa semana
passada. Eu e Maria Fernanda estamos nos separando.
- PUTA QUE PARIU, SEU MERDA – ela me
encheu de tapas enquanto olhava para trás conferindo se algum professor notara
seu chilique. – Você tem merda na cabeça? Puta que pariu! Puta que pariu!
Escute aqui o que vou te dizer e você vai me obedecer. Não aceito não como
resposta. Você vai me obedecer?
- Não!
- Seu merda – mais um tapa na cabeça.
– Você está proibido de falar isso para ela, entendeu?
- Ela já sabe desde ontem.
- PORRA! MERDA! QUAL O SEU PROBLEMA?
- Verônica, espero que os professores
pensem que estou pedindo um aumento, ou ficarão muito curiosos sobre o teor da
nossa conversa.
- Fodam-se todos eles. Por que você
contou para ela? Você quer confundir a menina? Você contou pessoalmente? Seu desgraçado!
Você encontrou com ela, contou, ela se derreteu toda e passou esse seu pau
fedendo a tequila nela?
- Verônica – parei até para respirar
profundamente porque estava engraçada a cena. – Contei porque era necessário.
Costumo falar sobre tudo com ela todos os dias. Era o que tinha de ser feito.
Não, não foi pessoalmente, então não passei meu pau fedendo a tequila nela. E,
por favor, confie em mim. Tentarei ao máximo manter meu pau, que espero estar
cheiroso no dia, longe dela enquanto tivermos testemunhas ao nosso redor. Agora
vamos mudar de assunto. Já ouviu falar em assédio moral?
- Enfie o assédio moral no seu cu, seu
fresco. Escute bem. Não vou ficar de babá de você na festa, mas saberei de
tudo. Não quero ameaçar o seu emprego e nem vou, pois é o nosso melhor
professor quando, obviamente, se limita a dar aula. Só quero lembrar que ela é
uma garota diferenciada de todas para quem já deu aula por aqui. Portanto, se
fizer merda, vai magoar uma menina que queria apenas retomar os estudos.
- Verônica, minhas intenções com ela
são as melhores.
- São, mas você sempre faz merda.
Aquela frase caiu com o peso de uma
vida que começou sujando a mão da obstetra e não parou nunca mais de cagar. Era
um fato do qual não podia correr. Por melhores que fossem as minhas intenções,
cedo ou tarde faria uma merda. A formatura não seria um final de novela em que
todos ficam felizes com as ambições alcançadas, tudo se congela e acaba. A
vida seguiria. Eu continuaria professor em um supletivo para maiores de idade
em que muitas das vezes era atacado de forma covarde pelas alunas. As idas para
a Lapa nunca parariam. Nem as bebedeiras. Merda! Não tinha como e sequer sabia
lidar com uma verdade desta magnitude. A solução foi encher a cara no churrasco
de fim de ano da escola e acabar confirmando a teoria de Verônica de que tenho
uma mão nervosa com bebida. Tão nervosa que foram necessárias três idas
emergenciais ao mercadinho da esquina para comprar mais cerveja. Na quarta,
quando estávamos apenas eu, Verônica e mais três professores, foi escolhido por
maioria (fui o único voto contra) encerrar o churrasco.
Já tinha passado de uma da tarde da
quarta-feira quando acordei no susto. Estava no chão da minha sala entre as
caixas. Levantei com calma e ainda assim os traços da ressaca se manifestaram.
A caminho do banheiro para tomar uma ducha na tentativa de amenizar as coisas,
passando pelo quarto, vi as latas de tintas e seus apetrechos. Merda! Tinha de
pintar o apartamento. Não precisava de pânico, era apenas uma tarefa simples que
mesmo começando no início da tarde poderia ser encerrado naquele dia mesmo.
Segui para o banheiro e tomei um banho bem rápido. A ressaca continuou
entranhada em mim, mas estava um pouco mais revigorado. Decidido então, abri a
lata de tinta e precisei de exatos quatro segundo para voltar correndo para o
banheiro. Reforçado pela ressaca, o cheiro me enjoou. Não sei o que tinha ou se
tinha algo no estômago, mas sei que saiu bastante coisa. Desisti de pintar. Só
que para concretizar a minha desistência, precisava fechar a lata de tinta e a
cada vez que tentava me aproximar dela, voltava correndo para o banheiro.
Desisti também de fechar a lata e fui direto para a sala. A melhor ideia era
deitar no sofá e tentar descansar um pouco daqueles minutos intensos. Ao chegar
no sofá me deparei com dois envelopes enormes e vi que eram as provas finais
que deveria corrigir e entregar as notas no dia seguinte. Isso poderia fazer
mais tarde. Quem desistiu de duas coisas, pode facilmente desistir de três.
Passadas umas duas horas, acordo
novamente no susto. Agora no sofá e com o som do interfone. Era o Pereira
avisando que tinha uma entrega da loja de móveis. Autorizei a subida. Depois da
surra que levaram para conduzir as enormes caixas até o elevador, entrar nele
com elas e depois sair, lá estavam os entregadores de frente para a minha
porta. Pedi que fossem espalhando pela sala mesmo, pois precisava primeiro
pintar o quarto. Aproveitei o momento para pedir um favor:
- Qual de vocês é o montador?
- Montador?
- É, dos móveis. Quero saber se temos
como negociar de ao invés de montar hoje, só fazer isso na semana que vem.
Ainda tenho de pintar o apartamento.
- Senhor, não foi paga a taxa de
montagem. Estamos apenas entregando. A montagem fica por sua conta.
E, depois de sapecar aquela notícia,
eles se viraram de costas e foram embora. Revisei então a lista que acabara de
crescer. Precisava corrigir as provas, pintar o quarto, montar o armário e a
cama no quarto, levar as outras caixas para o quarto, arrumar a roupa no
armário, pintar a sala, montar os móveis da sala e trazer o restante das coisas
para arrumar na sala. Era muita coisa e não estava preparado para isso. Achei
melhor ir para a rua almoçar.
Já sentado à mesa, Adriana me recebeu
com o cardápio e uma garrafa de cerveja. Ia pedir inicialmente uma água, como
não gosto de reforçar os erros dos outros, aceitei a cerveja. Ao menos estava
muito gelada. Perguntei se tinha a língua que comi no outro dia e recebi como
resposta que língua somente às segundas. Tudo bem! Terei de mudar todo o meu
horário semanal de aulas para às segundas poder comer por lá. Pedi frango à
milanesa, purê de batatas e feijão. Adriana retirou o cardápio e gritou para a
cozinha:
- SAI UM BAIXA RENDA SEM ARROZ!
Terminado o almoço, duas garrafas de
cerveja e um copo de café que mais parecia um balde, refuguei da ideia de
voltar para casa e decidi dar uma volta na Praça. Sim, praça com letra
maiúscula. Nós, pessoas que moramos no bairro da Tijuca, autointitulados
tijucanos, sabemos que existem outras praças na cidade do Rio de Janeiro e pelo
mundo também. Todavia, dentro da nossa cultura provinciana, quando nos
referimos ao termo praça com letra maiúscula, fica implícito que estamos
falando da Praça Sãens Peña, a mais importante de todas e pobre coitado de quem
não souber disto. Naquele momento, estava no auge da minha realização pessoal
como tijucano. Morava literalmente na esquina da Praça. Morar lá era como um
nova iorquino morando de frente para o Central Park, um parisiense com vista
total da Torre Einfel ou um argentino trabalhando em um trailer na Praia de Geribá
em Búzios.
Andando pela Praça, observando os
idosos se ocupando pelos bancos, admirando a infinita quantidade de farmácias,
desviando das pessoas entregando panfletos e esquivando de pombos, ouço uma voz
familiar me chamar. Era Juliana. Estava com a mãe que conhecia apenas por
fotos. Nos cumprimentamos com um longo e apertado abraço, mas com dois beijos
de bochechas discretos. Para provoca-la, apertei sua cintura com uma das mãos.
Ela confirmou que obtive êxito cravando as unhas nas minhas costas. Ao final do
abraço, ela falou baixo no meu ouvido que cumprimentasse sua mãe à distância,
pois estava forte demais meu hálito de álcool. Feito o que me foi pedido,
conversamos amenidades, expectativas para a festa, sobre estarem tão longe de
casa, tudo disfarçando como se fossemos aluna e professor com uma relação
dentro do que se espera. Juliana estava acompanhando a mãe em uma consulta
médica. Dentre as infinitas vantagens da Praça, muitas salas comerciais
ocupadas por médicos era uma das que encabeçavam a lista.
- E você? O que está fazendo por aqui?
- Eu? Eu moro aqui! Você se esqueceu
que sou tijucano? Aliás, moro literalmente ali – apontei para o meu prédio. –
Meu apartamento é de fundos, mas é ali.
- Bom saber – interrompeu a mãe dela.
– Caso reprove minha filha podemos fazer uma visita surpresa.
- Ou pode me visitar em um domingo
para almoçar como minha sogra. - Fez-se um silêncio tão constrangedor que, em um
momento desespero, tentei disfarçar. – Vejam! Um pombo!
Juliana me olhou com uma expressão tão
lamentável que não a condenaria se parasse naquele momento de ter qualquer
contato comigo. Já sua mãe, apesar de parecer uma mulher desligada, analisou a
cena com o canto dos olhos. Ficou claro que ela reparou a troca de olhares que
tive com sua filha, ela me recriminando e eu pedindo clemência. Não restando
nada mais, inclusive dignidade, elas se despediram. Juliana me deu dois beijos,
agora sem abraço, mas falando ao ouvido que eu era um idiota. Uma obviedade
dispensável, convenhamos.
- Tenho uma notícia boa – disse o
Pereira assim que adentrei a portaria, - Chegaram suas coisas. Como esqueceu de
deixar as chaves aqui comigo, pedi que colocassem no corredor mesmo.
Ótimo! Lá estavam à minha porta geladeira, fogão, máquina de lavar, televisão e adega climatizada. Só itens de
necessidade básica, principalmente a adega. Mesmo que tivesse força suficiente
para colocar tudo para dentro sozinho, não tinha como entrar. A sala era um
depósito de caixas com meus poucos pertences, além das caixas com partes de
armários para se montar, um sofá, um colchão e o box da cama. Não tinha mais
como escapar, era necessário eliminar alguma coisa da minha lista de afazeres.
Aproveitar o quarto vazio para pintar e em seguida poder montar o armário e
cama me pareceu uma boa ideia. Geraria espaço para entrar com os
eletrodomésticos e a evolução daquele lugar de almoxarifado caótico para uma
residência aconteceria com mais naturalidade. O problema seria fazer aquilo
sozinho e careta. Da necessidade, surgem as ideias de merda. Tirei a geladeira
da embalagem, liguei na tomada do corredor do meu andar e fui para a rua
comprar cerveja. Coloquei para gelar no congelador e ao saber disto o síndico
quis me matar. Pouco me importava. Prometi para ele que até o final do dia
estaria tudo no meu apartamento, inclusive a geladeira. Tive o apoio do Pereira
para convencê-lo. Aliás, o Pereira desde o início se mostrou um cara parceiro.
Assim que terminou seu turno, ele apareceu lá em casa para me ajudar na pintura
e na montagem do armário. Claro que ele bebeu algumas da minha cerveja também.
Nada mais justo.
Já tinha passado de duas da manhã
quando optei por expulsar o Pereira. Ele relutou alegando que podia me ajudar a
pegar as coisas na sala e colocar no armário já montado. Neguei. Já tinha feito
muito por mim e era muito tarde. Quase cinco da manhã estava pronto para dormir
na minha nova cama que estava no meu novo quarto com minhas coisas no meu novo
armário. Antes, fui à cozinha pegar a última lata de cerveja, esvaziando de vez
a minha nova geladeira. Tudo novo, vida nova! Estava satisfeito. Meu quarto
estava pronto e minha cozinha também. Restava apenas a sala. Instalar
televisão, tirar livros das caixas, montar mesa do computador, passar cabos de
internet, ligar adega dentre outras coisas. Contudo, além de satisfeito, estava
cansado e bêbado. Que ficasse para outro dia.
- ONDE ESTÁ VOCÊ?
Foi a primeira coisa que ouvi ao
acordar com o celular tocando e em seguida atende-lo. Era Verônica desesperada,
pois já tinha passado de dez da manhã e precisava das notas de prova final para
dar o resultado final aos alunos. Não tinha sequer tocado naquelas provas.
Disse que estava a caminho e desliguei. Ao me levantar para tomar banho, notei
que ainda estava bêbado. Tinha tudo para ser um dia divertido.
- VOCÊ ESTÁ BÊBADO? – Foi assim que
Verônica me recebeu assim que entrei em sua sala.
- Claro que não! Por que está dizendo
isso?
- Porque você ainda está de capacete.
- Ah – me desculpei e retirei. –
Entrei com tanta pressa que nem reparei nisto.
- Você é um idiota! Cadê as notas?
- Eu ainda não corrigi.
- Ah francamente – ela bateu na mesa e
mudou sua expressão para indignação. – Eu não sei mais o que fazer com você.
Você só me dá trabalho! Chega atrasado para as aulas, nunca cumpre com os
cronogramas, é politicamente incorreto, trab...
- Peralá – interrompi a Verônica. – Eu
só te dou trabalho? Quantas vezes, diferentemente de outros professores, você
recebeu reclamação de aluna dizendo que dei em cima dela? Quantas vezes,
diferentemente de quase TODOS os outros professores, você escutou comentários
sobre não saber escrever corretamente? Ou quem sabe não usar corretamente
qualquer uma das concordâncias? Podemos falar também sobre dominar os conteúdos
ministrados em sala? Você já me viu alguma vez, mesmo de ressaca assumida,
enrolar em sala? Já recebeu alguma contestação do meu trabalho em sala? Então,
vamos falar do trabalho que te dou. Dou muito trabalho, sim, mas perto do
trabalho que os outros professores te dão, isso é fichinha e não coloca em
risco a duvidosa qualidade do ensino que sua instituição oferece aos alunos.
- Não me venha amenizar as suas merdas
exagerando a dos outros. Todos aqui dão trabalho, eu sei disso. Mas não existe
trabalho menor. Eu preciso que todos trabalhem fazendo o mínimo de merda
possível ou me passarei por frouxa ou incompetente.
- Isso nada tem a ver com
incompetência. Você sendo competente ou não, seus professores continuarão
parecendo semianalfabetos repetidores do que está escrito no livro sem
conseguir falar algo mais profundo. Isso porque é o máximo que você vai conseguir
no mercado com esta merda de salário no limite do piso sempre pago com duas
semanas de atraso.
- Você acha que não sei disto? Você
acha que não tenho consciência disto? Claro que tenho! Pois sou eu que todo mês
preciso me virar com a merda de valor de mensalidade que é compatível com o
público daqui. SEM CONTAR COM A INADIMPLÊNCIA QUE É GIGANTE! Portanto, não me
venha falar de salário. Eu pago o máximo que posso e sei que por conta disto
preciso aturar professores de inglês com sotaques de indianos, engenheiros
incompetentes dando aulas de física nas coxas, improvisar sociólogos
maconheiros militando em sala no lugar de dar aula de história e técnicos de
enfermagem que pensam que são médicos dando aula de biologia com a mesma
eloquência dos pedreiros que fazem a reforma da minha casa. Pare com esse
papinho barato e agradeça ao meu péssimo salário atrasado, pois é o máximo que
um professor irresponsável como você vai conseguir no mercado. – Ela se
levantou, deu a volta na mesa e com o dedo em minha direção se aproxima. – ISTO
AQUI, ESTE ANTRO DE PERVERTIDOS, INCOMPETENTES E PROBLEMÁTICOS É O AUGE DA SUA
CARREIRA E ESTOU POUCO ME FUDENDO PARA O QUE VOCÊ ACHA. AGORA ME DÊ AS MERDAS
DAS NOTAS QUE VOCÊ NÃO CORRIGIU PORQUE PREFERIU FICAR ENCHENDO A CARA POR AÍ
CORRENDO ATRÁS DE ALGUM RABO DE SAIA PARA ENFIAR ESSE PAU FEDENDO A TEQUILA.
- Enchendo a cara? Então olhe isto –
eu me levantei e mostrei as mãos para ela. – Está vendo isto aqui? Isso é tinta!
Eu virei a noite toda pintando o meu apartamento e não sou obrigado a ouvir
você falar que não corrigi as provas por irresponsabilidade minha e bebida.
Quer falar de responsabilidades? VAMOS FALAR DA PORRA DA SUA RESPONSABILIDADE
DE ME PAGAR O DÉCIMO TERCEIRO SALÁRIO QUE VOCÊ SÓ VAI PAGAR DAQUI A DOIS MESES.
SE TIVESSE COMPROMISSO COM ISSO, EU PODERIA TER CONTRATADO ALGUÉM PARA PINTAR
MEU APARTAMENTO E DAÍ SOBRARIA TEMPO PARA CORRIGIR ESSA MERDA DE PROVAS. SÓ QUE
PARA VOCÊ É CONVENIENTE ME ACUSAR DAS COISAS SEM SABER. TUDO SERIA MAIS
DIFERENTE SE ESTIVESSE MAIS PREOCUPADA COM SUAS OBRIGAÇÕES DO QUE COM MEU PAU
FEDENDO A TEQUILA QUE É PROBLEMA MEU!
- POIS SAIBA – ela se aproximou e meteu a mão cheia na minha virilha. – QUE SE VOCÊ ESTIVESSE PREOCUPADO COM ELE, AO
INVÉS DE PAGAR ALGUÉM PARA PINTAR SEU APARTAMENTO, GASTARIA O DÉCIMO TERCEIRO
TOMANDO INJEÇÕES PARA TUDO QUE É DOENÇA SEXUAL.
- VOCÊ É UMA MALUCA!
- VOCÊ É UM IMUNDO!
E sabe-se lá de onde surgiu, estavam
eu e Verônica agarrados. Ela enfiando a mão nas minhas calças e eu tirando sua
blusa. Antes que pudesse abocanhar um de seus peitos, ela se abaixou e começou
a me chupar. Um pouco depois, pelos cabelos, coloquei Verônica novamente de pé
e me abaixei para chupá-la. Com o queixo já lambuzado com aquela mistura de
saliva minha e fluidos dela que me escorriam pela boca, me levantei, coloquei-a
sobre a mesa e começamos a foder. Sim, nada de transar. Aquilo é uma foda por
definição. Começamos comigo de pé e ela sentada sobre a mesa com as pernas
envolvendo minha cintura. Depois, com Verônica de pé e debruçada sobre a mesa,
continuamos com ela de costas para mim. Ela gozou primeiro. Eu precisei de mais
alguns minutos. Terminado, ainda em silêncio, os dois começaram a recolher as
roupas. Já vestida, Verônica recolheu as provas do chão, jogou sobre a própria
mesa e enquanto saia de sua sala disse:
- Você tem meia hora para corrigir
esta merda. E me desculpe – ela fez uma pausa, ajeita os cabelos e antes de
sair finalizou. – seu pau não fede a tequila.
Terminado de corrigir as provas, saí
da sala da Verônica e me deparei com sua secretária que me recebeu com um olhar
estranho que talvez suspeitasse o motivo. Ela pediu que lhe entregasse o
resultado e o fiz. Em seguida, na sala dos professores, atualizei meus diários,
preenchi relatórios e esvaziei meu armário da papelada que vai se acumulando no
decorrer de um ano letivo. Eram quase quatro da tarde quando retornei à sala da
Verônica. A secretária disse que ela não tinha voltado ainda, mas que ligou e
deixou um recado para mim.
- O conselho de classe de início de
ano vai ser na última sexta-feira de janeiro. As aulas começam na primeira
semana de fevereiro.
- Diga a ela que pode contar comigo e
aqui estarei.
Aparentemente com o emprego garantido,
fui embora aliviado e com a sensação de que a secretária de Verônica me
recriminava com seu olhar cheio de pudor e horror. Já em casa, motivado com os
eventos do dia, finalizei a arrumação da casa. Estava tão satisfeito com o fato
de enfim morar em um local organizado e com funcionalidade que desliguei o
celular, abri uma das garrafas de vinho que comprei voltando da Pavuna e me
refestelei no sofá imundo. Sim, ele permaneceria por lá, pois, por algum
motivo, me identificava muito com ele e por isto viraria parte da minha
história. Tanto que resolvi apelida-lo de Tidus. Mesmo oficialmente de férias,
não saí naquela noite. Virei a noite com duas garrafas de vinho me acompanhando
enquanto devorava um Hemingway. Estava com todos os meus compromissos em dia.
Só me restava aguardar as quarenta e oito horas de ansiedade até a formatura de
Juliana.
Acordar às duas da tarde de
sexta-feira foi uma boa estratégia para o tempo passar mais rápido. Reparar que
não existia uma mensagem sequer da Juliana foi bastante frustrante, preciso
admitir. Enquanto almoçava então mandei uma mensagem dizendo que estava contando
o tempo para o evento. Não fiz menção de que a expectativa envolvia qualquer
contato físico com ela, mas apenas poder ver o resultado final da produção.
Tudo balela. Eu queria muito agarrar a Juliana e isso vinha de longa data.
Tinha perdido as contas de quantas vezes tentei imaginar a textura da seu boca e o gosto do seu beijo. Será que ela beijava com vontade te agarrando com força ao
ponto de perder o ar? Ou era daquelas meninas com o beijo estilo novela de
época, devagar, suave e de tão entediante que ficamos pensando no preço do
leite no supermercado? Não, ela precisava ser intensa. Mesmo sendo uma menina
contida e racional, o beijo precisava ser sua válvula de escape. Ela com
certeza devia se libertar na hora de beijar alguém. Provavelmente seria uma
força da natureza, um acúmulo de energia de te deixar desnorteado sem saber
como manuseá-la. Sim, ela precisava ser assim. Seria muito frustrante caso não
fosse.
“Você
não tem noção da pilha de nervos que estou. Parece até que vou casar. Só penso
no vestido, na maquiagem, no penteado.”
Estava ali uma boa campanha para diminuir
o índice de mulheres com o ensino médio incompleto. Pensar nisso me distraiu a
ponto de esquecer o quanto queria desfazer o penteado dela, borrar sua
maquiagem e transformar seu vestido de gala em um pequeno amontoado de pano no
meio da minha sala. Voltei a imaginar no quanto ela estaria linda e constatei
que não tinha a menor capacidade de digerir aquela imagem. Terminar o almoço
que a Adriana sequer tinha servido ainda era uma opção para ter tempo suficiente para refletir o que responder para Juliana. Quando Adriana me
serviu, duas garfadas depois respondi que queria muito ela e não aguentava mais
esperar por aquilo.
“Baby,
já lhe disse o quanto também estou envolvida nesta história e o quanto te
quero. Só que neste momento não quero distrações. Tudo que estou pensando é na
formatura. Quando começarmos de vez, isso deixará de ser uma distração e você
passará a ocupar de vez a minha cabeça.”
Sem saber o que dizer, deixei Juliana
sem resposta. Terminei o almoço, passei no mercado e levei algumas cervejas
para casa. Abri uma e coloquei as demais na geladeira. Bebi com calma enquanto
ouvia as músicas de uma banda que tinha descoberto recentemente. Assim que a
garrafa acabou, peguei no sono. Eram mais de quatro da tarde de sexta-feira e
só tinha passado duas horas acordado. Não podia ser mais feliz e até que a
felicidade durou algumas horas. Tarde da noite acordei assustado com alguém
esmurrando minha porta. Tatiana!
- Baby, preciso de dois favores seus.
- Algum deles envolve pedir dinheiro
emprestado para uma passagem só de ida para a Guiné Bissau?
- Você morreria de saudades, daria a
bunda na rua para conseguir dinheiro para outra passagem e iria atrás de mim –
ela entrou e começou a contemplar a nova aparência da casa. – Gente, mas isso agora
parece uma casa de pessoa normal. Foi despejado?
Sabendo como o assunto seria tedioso,
peguei a garrafa de cerveja vazia ao lado do sofá e fui para a cozinha deixando
Tatiana falando sozinha. Ela foi para o quarto e de lá, aos berros, fazia
comentários sobre o quanto estava estupefata com a drástica mudança e melhoria
no apartamento. Confesso não saber o por que dos gritos. O apartamento era tão
pequeno que mesmo da cozinha era capaz de ouvir os pentelhos dela crescendo
enquanto estava no quarto. Fui para o quarto com uma garrafa de cerveja e um
copo. Servi um pouco para ela no copo e bebi o resto no gargalo. Aproveitei
então o seu silêncio enquanto dava um gole para perguntar quais favores estava
precisando. Ela tirou uma enorme mochila das costas, jogou sobre a cama e
apontou para ela como se devesse concluir algo com aquilo. A desgraçada era uma
mula no sentido animal do termo. Ela vivia carregada com tralhas nas costas.
Anos de amizade e nunca a vi sem uma mochila ou bolsa grande. Em outra vida ela
foi nômade provavelmente. Continuava sem entender.
- Mas você é burro mesmo! Tenho uma
festa aqui perto hoje. Preciso usar sua casa para me arrumar e depois voltar
para dormir.
- Que tipo de festa?
- Que diferença faz? – Assim que
terminou de me perguntar, fiquei parado em silêncio olhando para ela que então percebeu
e prosseguiu. – Aniversário de uma amiga. Nada de especial. Vai ser em um bar
aqui perto.
- Ok, eu vou!
- Ai merda!
Enquanto nos arrumávamos, ela ia
perguntando da minha relação com a Juliana e a expectativa sobre a formatura
que estava por vir. Como de hábito, respondi tudo com muito deboche, mas não
ocultei fato algum. Mais uma vez ela declarou o quanto estava fã da Juliana.
Acho que essa afirmação dela era verdadeira apenas em parte, a outra parte
seria apenas para me irritar. Era comum ficarmos uma semana, às vezes duas, sem
nos encontrarmos. Quando acontecia, colocávamos um relatório em dia. Ela riu e
ficou pasma com a história da Verônica. Não necessariamente nesta ordem. Já arrumados,
seguimos para a festa que de fato não era muito especial. Um bar, uma mesa
enorme com vinte e poucas pessoas, falatório alto e bebida na mesa. Eu saberia
lidar com isso.
Chegado o tão aguardado sábado, era
esperado que acordasse cedo eufórico como uma criança em uma manhã de Natal. O
que aconteceu de fato é que recobrei a consciência já ao final da manhã com
vozes na minha sala. Quando dei por mim, estava deitado no Tidus e à minha
frente Tatiana se despedia de uma menina simpática e jeitosa. Ela, antes de
sair, notou que tinha acordado e me mandou um beijo de forma carinhosa. Assim
que Tatiana fechou a porta, perguntei-lhe quem era, pois o rosto não me era
estranho.
- Seu idiota, era a prima da minha
amiga aniversariante que você engoliu no bar e no elevador do seu prédio.
- Oxi – despertei rapidamente de tão
surpreso que fiquei com aquela revelação. – E por que você não dormiu aqui na
sala para que eu ficasse com ela no meu quarto?
- Porque você precisa de foco. Hoje
vai recomeçar sua vida com a Juliana. Ela não merece isso.
- De onde você tirou que pode avaliar
algo. Ei – tentei me levantar gritando do sofá, mas tudo que fiz foi erguer um
dos braços. – Você poderia chamar a mocinha de volta?
- Chame você. Basta gritar o nome
dela.
- Ei – fiz nova tentativa de me
levantar e fracassei mais uma vez. – PRIMA DA ANIVERSARIANTE! Ah, mas que merda.
Você sempre fazendo da minha vida um inferno.
- Eu? Eu, seu desgraçado? Se fosse por
mim, estaria até agora me agarrando com um menino gato que conheci ontem. Mas
não! NÃO! Tive de voltar para evitar que você fizesse merda. E, para piorar, ao
invés de me deitar na cama e dormir, fiquei quase duas horas ouvindo a Isabel
perguntando sobre você e comentando como foi legal ter te conhecido. É, o nome
dela é Isabel.
- Hum, Isabel! Que coisa!
- Que coisa? Que coisa? Peraí!
Levanta! Vai! Levanta!
- Levanta?
- É! Levanta! Fique de pé!
Com muito esforço e pouca velocidade
me postei de frente a ela no meio da sala. A cena era patética. Lá estava eu de
cueca, pau duro de vontade de fazer xixi, descabelado e com o que pareciam
farelos que estavam perdidos no sofá presos na barba.
- Agora veja isso – Tatiana falou apontando
para mim. – Que coisa! Como pode, em uma noite, isso amolecer uma menina a
ponto de ficar babando no meu ouvido enquanto tento dormir?
- Ora, precisava me levantar para me
humilhar? Não podia apenas destacar minha unha inflamada do dedão? Seria suficiente
para provar seu ponto.
- É isso! Esse é o problema! Você vem
com toda essa eloquência. Sua agilidade no raciocínio para responder coisas
divertidas, as meninas acham graça e pensam que você é um fofo. Não, você não é
um fofo! Você é um idiota articulado!
- Desde quando você tira partido de
outras pessoas contra mim? Tudo isso porque ela não te deixou dormir? Vai lá.
Volte a dormir, descanse essa cabeça e depois volte a me amar.
Ela ficou mais irritada ainda. Não era
essa a questão. Estava divorciado há menos de duas semanas e já tinha feito
mais merda que muita gente em uma vida inteira. Ora, não é culpa minha. Cada um
tem o seu talento. E convenhamos, se ela tivesse optado ficar de fora, estaria
eu no quarto com o sono abalado pela prima da aniversariante cujo nome me
esqueci novamente. Sem mencionar a possibilidade de ela estar com o tal
rapazinho que comentou.
- Não, seu idiota! Não é apenas isso!
É o fato de você estar prestes a iniciar um relacionamento já fazendo merda.
Estava claro desde o início que
Tatiana tomaria partido da Juliana. Ela se declarava fã dela com motivos e era
sinal suficiente para cortar detalhes, evitando assim que ela ficasse me
censurando. Agora era tarde demais. Ou a convencia a voltar a carregar a
bandeira do meu time, ou teria de ser mais cuidadoso ao compartilhar detalhes
da minha vida para ela. Sim, porque simplesmente andar na linha em um primeiro
momento me parecia totalmente absurdo.
- Estou com fome.
- E eu estou com sono e ressaca.
- Bem, como a parceria sono e ressaca é
algo comum na sua vida, acho que consegue me acompanhar enquanto como algo na
rua.
- E?
- Você não consegue dormir e se
recuperar da ressaca comigo repetindo no seu ouvido que estou com fome.
Com tal argumento arrebatador, ela me
convenceu a sair. No restaurante, recebidos euforicamente pela sempre
sorridente Adriana, nos sentamos e pedimos uma cerveja. Corrigindo, eu pedi.
Tatiana resmungou, mas depois bebeu com se nada tivesse acontecido. Algumas
cervejas depois e almoço devorado, voltamos em passos lentos para minha casa.
Tatiana, que já demonstrava inquietude com meu silêncio, resolveu perguntar se
algo me incomodava ou era apenas mau humor de poucas horas de sono. Sim, tenho
personalidade de bebê quando o assunto é relacionado ao tempo dormido. Tenho
também personalidade de bebê para outras situações, mas não vem ao caso. Não
era mau humor, estava apreensivo mesmo. Tanto que, ao chegar em casa, dispensei
a proposta de Tatiana de acompanha-la na cerveja. Deitei-me no Tidus e, depois
de dez minutos refletindo o que esperar e o que fazer mais tarde, peguei no
sono.
Acordei com uma sala escura e fria.
Pelo barulho, chovia e muito. Ao me levantar, vejo a porta do meu quarto
fechada. Provavelmente Tatiana foi embora. Vou à cozinha, abro a geladeira e vejo
o que tem nela. Cervejas, duas garrafas de vinho branco para dias de muito
calor ou de pouco bom senso, meia garrafa de rum, requeijão, frios embalados em
plástico, uma fruta que espero muito ter sido esquecida pela Tatiana, mas nada
do que procurava, algo de atitude atitude. Sim, álcool é coragem, mas não é atitude. Talvez um
pouco de química clandestina me ajudasse naquele momento. Fui ao quarto ver o
que ainda tinha nas minhas gavetas.
- QUE PORRA É ESSA?
Lá estava Tatiana com um ferro, que
não tenho a menor ideia de onde surgiu, improvisando sobre a minha cama uma
tábua de passar. Pendurado na porta do meu armário estava o paletó do meu
terno. Ela estava terminando de passar a calça e ainda tinha uma camisa branca
ao lado provavelmente esperando sua vez.
- O que você esperava? Que ia te
deixar sair todo amarrotado como sempre? Claro que não! Admito que tentei
dormir, mas seu ronco não deixou. Então fui para rua comprar um ferro de passar
e uma tábua. Não tinha dinheiro para os dois, comprei só o ferro. Agora estou
aqui te deixando arrumadinho para recomeçar sua vida.
- E, pelos meus cálculos, você demorou
quatro horas para passar um paletó e meia calça?
- Não, idiota. Demorei mais do que o
normal na rua. Dei uma volta, vi várias coisinhas legais para a sua casa nessa feirinha que tem
aqui na praça e depois voltei. Quando cheguei, já estava de
lado sem roncar, então dormi. Tem meia hora que acordei. E pode parando de
reclamar que estou lhe fazendo um favor.
Favor? Eu sequer sabia se iria. A cada
minuto que refletia sobre como seria, mais tinha certeza que ficar em casa era
uma boa ideia. Ficar comportado, pois pais e mães poderão me julgar? Melhor
ficar em casa. Ter de fazer social com pais e mães com assuntos rasos e
insossos? Fico então em casa. Agir de maneira contida em um evento open bar?
Acho que ficarei em casa. Encarar a Verônica depois do incidente na sala dela?
Minha casa é o local mais seguro. Estava chovendo muito, não poderia ir de
moto, então correria o risco de parecer um almofadinha chegando de táxi? Por
favor, uma porção de travesseiros para me acompanhar no sofá de casa.
- E por conta dessas desculpas
esfarrapadas você vai deixar de ver a garota que ocupou sua cabeça nos últimos
meses na sua versão mais linda? Sem maquiagem e com a cara toda amassada de
sono, você ficou babando nas fotos dela provando o vestido. É sério que vai
perder isso? Você acha que consegue lidar com as fotos amanhã pela rede social?
Você acha que ela vai querer alguma coisa com você se der um furo deste logo
hoje? Bem, eu não sei o que você acha, mas sei o que EU ACHO. Eu acho que você
está sendo burro! Eu sei que você é um idiota, irresponsável e imaturo, mas
nunca pensei que usaria o adjetivo burro com você de verdade.
Saí do quarto e a deixei falando sozinha.
Não consegui sequer pensar em uma resposta cretina para disfarçar meu
desconforto com o pequeno esporro que tinha acabado de levar. Estava mesmo
acuado e não sabia o que fazer. Não eram desculpas esfarrapadas. Só de pensar
em cada uma das que citei, minhas mãos ficavam suadas e trêmulas. Algumas
pessoas costumam parar de frente para a geladeira aberta para refletir. Eu
tento fazer isso em alguns momentos, mas, para funcionar mesmo, fico de frente
para minha estante de livros. O que Bukowski diria? Como Hemingway lidaria com
isso? Qual seria a saída de Kerouac? Droga! O primeiro que me veio aos olhos
foi o psicopata suicida do Hunter Thompson. Isso não vai dar muito certo.
- E escute aqui – Tatiana interrompeu
meus pensamentos adentrando à sala. – Eu não estou pedindo para se comportar,
nem para fazer social com os pais. Por mim, você enche a cara, vomita no pé de
uma das mães e limpa a boca na gravata de um pai. Pouco me importa a Verônica.
Diga para ela que foi uma foda única, errada, que nunca irá se repetir e ela
que lide com isso. Mas antes disso tudo, você precisa lidar com outra coisa.
Precisa ver a Juliana. Vá e antes de tudo, procure apenas por ela. Olhe para
ela linda do jeito que estará e depois saberá perfeitamente como agir o resto
da noite.
- Isso não é uma frase de um filme da
Julia Roberts?
- Seu idiota, não estrague o meu
momento profundo – ela se aproximou de mim, apertou minhas bochechas
debochadamente e prosseguiu. – Esse medinho que está te consumindo por dentro é
a responsabilidade de começar tudo novamente. Isso é comum em pessoas adultas.
Acredite em mim. Então, vá tomar um banho enquanto acabo de passar sua roupa.
Faz o que a amiguinha está pedindo uma vez na vida.
Ok, decidi que iria fazer. Fui antes
até a gaveta procurar algo para me dar a tal atitude necessária e Tatiana
interviu mais uma vez. Limpo e puro no primeiro momento, ela pediu. Ela estava
começando a me irritar. E ela sabe bem que só me irrita quando tem razão.
Entrei então no banho e quase uma hora depois estava no meio da minha sala de
terno, gravata e sapatos engraxados. Que morte patética! A última vez que
estive assim foi no meu casamento e, portanto, podemos concluir que isso não dá
muita sorte, não é mesmo? Sem muitas opções, me despedi de Tatiana:
- Estou tão orgulhosa. Meu menino está
virando um hominho.
- Cala a boca, sua idiota. Ali em cima da estante tem uma cópia da chave
daqui de casa para você. Tranque a porta quando sair. E espero que saia, pois
não quero te ver por aqui quando voltar.