domingo, 14 de maio de 2017

A sarjeta do mundo

Caipirinha do Tássio
Tudo começou de uma maneira inocente, na época que a Flavia, esposa do Luciano, ainda trabalhava com ele no bar. O nome oficial que constava no letreiro era Bar e Café Santa Efigênia, a padroeira da mãe do Luciano. Todavia, era informalmente mais conhecido como “Vô Fechar”, referência ao Luciano que virava e mexia gritava que ia fechar o bar, mas os cliente nunca se levantavam e o funcionamento acabava indo sempre madrugada a dentro.
Era um dia de pouco movimento, meio da noite, pessoas voltando do trabalho e um clima frio nada convidativo para se beber. Flavia estava sentada só numa das mesas do lado de fora fumando um cigarro. Um fato inédito, pois nunca saía de trás do balcão. Era um acordo do casal para evitar dor de cabeça com clientes que não sabiam como se comportar e mexiam com funcionárias. Outro detalhe importante daquele dia era que excepcionalmente a Flavia não estava de uniforme. Lá estava ela numa coincidência de fatos de rara exceção quando o Tássio passou e viu a cena. Nada rogado e com uma autoestima de dar inveja em competidor de halterofilismo, ele se aproximou puxando uma das cadeiras.
- Olá! Posso me sentar? Meu nome é Tássio, com t de trabalhador. Posso lhe pagar uma bebida? Meu amigo! Ei! Meu amigo, vocês têm caipirinha? Me vê duas de melão com morango e cachaça. Isso mesmo! Eu as duas frutas misturadas. Obrigado! E aí, gata, qual o seu nome?
Flavia à frente de Tássio e Luciano atrás do balcão não conseguiram expressar reação. A sequência de perguntas e pedidos sem aguardar respostas dos outros era a coisa mais decidida que tinham visto na vida. Tássio perguntou o nome para Flavia mais duas vezes e somente aí que conseguiu que ela se manifestasse. Logo em seguida, ela se virou para o marido atrás do balcão que deu de ombros. Ora, o que podia dar errado? O bar estava vazio e não precisavam tanto da ajuda dela. Caso o homem aprontasse alguma, Luciano sairia de trás do balcão com o porrete que ali tinha escondido. Enquanto as caipirinhas exóticas eram feitas, Tássio seguia com a metralhadora de perguntas, afirmações e reações. Flavia começou a achar aquilo divertido e ficou dando corda para o homem.
- Isso é muito bom! – Flavia exclamou assim que deu o primeiro gole na caipirinha assim que servida pelo marido.
- Eu sabia que ia gostar. É a minha favorita. Só vai beber isso pelo resto da sua vida. Ela é de matar – afirmou o sempre confiante Tássio, sem saber que sua frase soaria como uma profecia naquele momento.
Ele não era convencido à toa. Era necessário reconhecer que tinha uma lábia sensacional. Tanto que Flavia topou uma segunda rodada de caipirinhas. Enquanto eram preparadas pelo Luciano, Tássio seguia falando sem parar. Num entendimento apressado, qualquer pessoa diria que era um monólogo. Muito pelo contrário, ele roubava curtas respostas da Flavia e dali já encaixava outro assunto. Sem se atentar ao que acontecia, ela estava tomada pela conversa que tinha ido de horóscopo a sambas antigos, de quadros feitos com tapete a como carros batidos na frente se parecem com rostos de boxeadores ao final de uma luta.
Luciano surgiu com a segunda rodada. Tássio, sem cerimônia, deu um longo gole e depois celebrou em voz alta o quanto gostava daquele drink. Flavia, mais contida, deu um pequeno gole e em seguida olhou franzida para o marido que retribuiu o mesmo olhar. Na dúvida, ela deu mais um pequeno gole para confirmar o que tinha desconfiado no primeiro. Sim, ela estava certa, o marido não tinha colocado álcool algum na sua bebida, era literalmente um refresco de melão com morango. Antes de voltar para o balcão, Luciano deu uma pisadela de olho marota para a esposa. Para bom entendedor, meia palavra basta. Ou meio olho aberto, quem sabe?
O resto da noite seguiu com o papo maroto do Tássio fluindo com a mesma agilidade que Luciano trazia mais caipirinhas. Para o falante, bastante álcool. Para esposa, zero álcool. Ao final, seis caipirinhas para cada um. A conta passou dos duzentos reais, mas mesmo assim Tássio fez questão de pagar. Na despedida, sem perceber a lucidez de Flavia, ou notar a sua total embriaguez, Tássio tentou uma última investida e, o que seria uma aproximação à moça, virou uma longa cambaleada quase indo de rosto ao chão. Preferiu então recuar da investida. Optou por dizer que estava fascinado pela coincidência dos fatos:
- Veja só – ela falava com a mesma agilidade do início, mas menos eloquência por conta da língua mole. – Na primeira vez que piso neste bairro, me encontro com você. É muito destino para mim. Podemos nos ver semana que vem?
Flavia achou que seria algo inofensivo e topou. Marcou no mesmo bar como se fosse um local de encontro especial para ela. Tássio, sem saber que ela trabalhava por lá e era esposa do dono, foi embora vitorioso da sua conquista. Tanto que no dia marcado, lá estava ele enchendo a cara de caipirinhas e Flavia enchendo a bexiga de refresco. Ao final, empurraram a conta para cima de um cambaleante Tássio. Foram um total de seis encontros seguindo essa rotina. No último, percebendo que a Flavia era carne de pescoço, desistiu e se despediu com o velho papo de vamos ser apenas amigos. O que ele não sabia era que tinha iniciado um dos maiores golpes já visto naquele bairro.
Depois de uma longa experiência com um confiante Tássio, Flavia e Luciano tinham a certeza que aquilo era aplicável a qualquer trouxa. Combinaram que Flavia pararia de trabalhar no bar. Sua frequência diminuiria para quatro vezes por semana apenas para não dar pinta e assim poderia dar uma trégua para a mãe do Luciano que ficava em casa tomando conta do filho do casal até tarde. A cena seria sempre a mesma, ela ficaria reservada numa mesa esperando a aproximação do primeiro galanteador. Ela pediria a famosa caipirinha do Tássio da casa e a vítima iria junto. Copo sem álcool para ela e bastante para a vítima. No prolongar da noite, Luciano daria o tradicional sinal do “vô fechar” e Flavia iniciaria a conversa de que bebeu demais, precisava ir embora, não estava se sentindo bem e entubava a conta com uma dezena de refrescos com preço de caipirinha no mané que marcava um segundo encontro. Afinal, trouxa que é trouxa precisa cair duas vezes no mesmo conto do vigário.
O empreendimento picareta ia de vento em popa. Por semana, Flavia injetava quase mil reais na casa. Não suficiente, a tal caipirinha do Tássio ficou famosa na região e era mais pedida que cerveja. Nunca uma coincidência de fatos raros acompanhada de um cara decidido teve um resultado tão próspero como aquele. Foram meses de sucesso sem que um homem sequer desconfiasse. Flavia e Luciano conheciam bem as pessoas da região e não marcariam bobeira de tentar aplicar um golpe em alguém de lá.
Determinado dia, Tássio deu as caras no bar. Luciano o recebeu de braços abertos com a maior cara-de-pau possível, apresentou-lhe o sucesso da casa e lhe ofereceu uma dose como agradecimento. Ele dispensou. Disse que estava à procura da Flavia. Para ele, beber o drink sem a companhia dela no bar seria sem graça. Enxergando a oportunidade, Luciano contou que ela tinha passado cedo pelo bar dizendo que estava indo à casa de uma amiga, mas que na volta passaria por lá para beber uma. Tássio se animou e perguntou se ela demoraria.
- Acredito que não – respondeu o Luciano. – Sente-se que já, já, ela aparece. Vai bebendo essa por conta da casa.
Tássio aceitou e se sentou à espera de Flavia. Nesse meio tempo, Luciano ligou para esposa, antecipou todo o golpe e mandou que ela viesse para o bar em vinte minutos. Pontualmente ao pedido do marido, Flavia apareceu no bar. Fingindo uma surpresa mais falsa que uma nota de três reais, ela foi falar com um Tássio até então cabisbaixo que enrolava aquele primeiro drink. Assim que se sentou à mesa, Flavia pediu uma rodada para os dois. A cena começava mais uma vez igualmente à primeira de toda. Tássio, agora animado, desandava a falar sem parar, Flavia ia dando corda para o assunto e Luciano descia as caipirinhas cada vez numa velocidade maior. Era quase uma celebração de aniversário do golpe. Lá estavam os golpistas, o bar, o drink e o trouxa alfa. Tássio estava mais intenso que o normal e Flavia tinha notado, mas a vontade de aplicar mais um golpe era maior. Já na madrugada, Luciano fez o anúncio de sempre:
- Vô fechar!
- Ah, pode esperar – disse um enfático Tássio. – Ainda estamos sóbrios e hoje eu só saio daqui bêbado.
- Tássio, menino – Flavia se espantou. – Já bebemos umas dez caipirinhas. Não acha melhor...
- Você está bêbada? – Tássio interrompeu a Flavia. – Eu não estou! Então vamos continuar mesmo sendo os únicos na casa.
- Sinto muito, casal vinte, mas preciso fechar o bar...
- Vamos fazer o seguinte – Tássio interrompeu o Luciano. –, traga mais uma rodada e depois pedimos a saideira. Prometo para você que serão só mais duas rodadas.
- Ok – Flavia concordou. – Mais duas apenas então.
- Não é possível, pessoal. Preciso fechar mesmo.
- Ora, por que? – Flavia e Tássio perguntaram juntos.
- Porque tenho que render a minha mãe que está tomando conta do meu filho. Se eu tivesse uma esposa, ela poderia ir para casa fazer isso para mim, né?
- Por isso? – Tássio desdenhou. – Vai lá, libera a sua mãe e traz seu filho, que deve estar no décimo sono, no carro. Quando chegar aqui, eu te prometo, não somente teremos matado as duas rodadas, como estaremos com contas pagas prontos para ir embora.
- Sinto muito, mas não posso fazer isso. Não vou deixar meu bar aberto...
- Só duas rodadas – Flavia interrompeu o marido esbulhando os olhos como quem diz que está deixando algo passar. – Sou cliente antiga de confiança. E além do mais, estamos aqui com o criador do seu maior sucesso. Vai, não custa nada.
Luciano topou a ideia até porque diversas vezes era ele mesmo quem ia render a mãe e a Flavia que ficava de fechar o bar. Enquanto Luciano voltava para casa, Tássio foi para trás do balcão fazer a primeira das duas últimas rodadas. Flavia sabia que seriam com álcool dessa vez, mas não se preocupou. Afinal, duas rodadas de caipirinha sequer chegariam perto de deixa-la tonta.
Quando finalmente retornou ao bar, Luciano se deparou com um Tássio assustado à beira da calçada. Então largou o carro de qualquer jeito no meio-fio com o filho dormindo no banco de trás e foi em direção da entrada do bar. Foi ali que notou a ausência da Flavia. De imediato, ele se voltou para a rua e perguntou ao Tássio pela Flavia. Ele respondeu que ela foi para o banheiro passando muito mal e por isso estava ali assustado procurando um táxi para levá-la ao hospital. Nesse momento, Luciano respirou aliviado. O golpe acompanhado da desculpa de estar passando mal para se desvencilhar do trouxa insistente era um dos combos mais frequentes na casa.
- Ih, cara, relaxa – disse o Luciano tentando acalmar o Tássio. – Ela costuma passar mal mesmo. Sabe como é, né? Bebe demais, não consegue acompanhar a outra pessoa e dá nisso. Vira e mexe me dá dor de cabeça. Ela me dá mais trabalho que meu filho, acredita?
- Tem certeza? O táxi está ali chegando.
- Pode ficar calmo. Já estou acostumado. Deixa que eu levo ela para casa. Vamos lá dentro apenas acertar a conta e vai poder ir para casa sossegado.
- Não precisa. Entre uma rodada ou outra a Flavia pediu para que adiantássemos isso evitando que você resmungasse quando chegasse. Tá lá pago na maquineta.
Luciano olhou para dentro do bar e viu a maquineta do cartão de crédito com o comprovante pendurado. Em seguida pensou no quanto sua esposa estava ficando mais calejada no golpe. Primeiro prolonga a conta ao máximo, depois faz o cara pagar a conta antes mesmo do fim do golpe e, por fim, faz a clássica cena do passar mal para não ter de rejeitar convites para motel ou coisas do tipo. Totalmente aliviado e com as coisas dentro do controle, Luciano reconforta de vez o Tássio.
- Então pode ficar tranquilo mesmo. Deixa comigo que tomarei conta do meu filho dormindo no banco de trás e da minha filha adulta postiça que às vezes vem me dar problema aqui no bar. Pode pegar o táxi sem arrependimento.
Para a surpresa de Luciano, Tássio não relutou um segundo. Muito pelo contrário. Antes mesmo que Luciano terminasse a última frase, Tássio já estava entrando no táxi. De qualquer forma, para ele foi até mais conveniente ficar livre mais rápido do trouxa alfa. Sem ter mais com o que se preocupar, Luciano entrou no bar:
- VAMOS, QUERIDA! ELE JÁ FOI EMBORA! – Luciano gritou enquanto manuseava a maquineta do cartão de crédito. – Ué, que estranho.
Luciano não entendeu aquele comprovante. A conta, pelos seus cálculos, deveria ter passado facilmente dos trezentos reais. Ali constava um comprovante de apenas sessenta e oito.  Ele resolveu ver no detalhe e percebeu que o horário do pagamento era de quase uma hora atrás. Não, aquilo não era o comprovante de pagamento do Tássio, era uma reimpressão do pagamento do último cliente.
- Querida, parece que nós que caímos num golpe. – Dizia o Luciano enquanto ia ao banheiro ao encontro da sua esposa. – Um dia da caça outro do... FLAVIA! MEU DEUS!
Flavia estava deitada no chão, desacordada e seminua. Tinha sido violentada por Tássio que colocou uma substância dopante em sua caipirinha. Luciano tentou acordar a esposa. Não adiantava, estava morta. Tássio a sufocou com as próprias mãos enquanto repetia em voz alta que ela brincou com os sentimentos dele. Luciano ficou deitado no chão ao lado da esposa vítima do homem que tudo iniciou, deu nome à bebida destaque do bar e profetizou o que estava por vir. Debulhado em lágrimas ele apenas lamentava que o mundo era injusto.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Que sacanagem!



O lamentável episódio envolvendo o violador (interprete tanto no bom, quanto no mau sentido) de Helenas das novelas globais voltou às pautas nesta semana. Surgiu um novo fato. Aparentemente, ele e a figurinista eram amantes já havia algum tempo. Como disse, surgiu um novo fato e nada mais. Tal informação é apenas nova, mas nem por isso é um fato atenuante ou incriminador. Até porque, ser amante de alguém não lhe dá o direito de meter a mão na faixa nobre de outra pessoa sem consentimento.
De toda essa história, o que mais me deixou perplexo foi a tentativa do Zé Mayer se passar por machão. Isto é, segundo ele, sua origem é de uma época em que homens de verdade tomavam essas iniciativas, tinham a certeza que era a ação a ser feita e, assim, se destacavam dos outros sem atitudes que justificavam suas frouxidões em regras de etiquetas, algumas classificadas como coisa de bichinha. Não, não tinha como Zé Mayer se sair por cima nessa história. Poderia até sair como machão ao assumir de fato a merda que fez, de qualquer forma seria tachado de escroto.
Seu argumento desviando sua culpa para época em foi criado foi motivo para textões enaltecendo pais e avôs da mesma época que se comportavam de maneira exatamente oposta. Como se eles merecessem uma placa por isso, não é? De qualquer maneira, entendi a ideia dos textos de confrontar a época do Zé com a época dos parentes. É uma ideia que até me agrada, mas a proximidade familiar me deixa desconfortável. Era possível fazer algo melhor. Existia a possibilidade de mostrar que o argumento dele foi muito mais lamentável que todo o episódio.
Zé Mayer tem a idade de papai (não, não farei a comparação), ele nasceu em 1949. Descontando os primeiros anos da vida como criança, temos um Zé Mayer adolescente no surgimento da pornochanchada. Não existe algo mais apropriado, que seja da mesma época, para ser utilizado como balizador no episódio em questão do que os filmes de pornochanchadas nacionais. Sexismo explícito na grande tela. Os protagonistas não pensavam em outra coisa a não ser sexo. Quando homens pensavam em como foder o máximo de bocetas possíveis, quando mulheres pensavam em como não cair em tentação. As cantadas e abordagens eram assumidamente calhordas. Isto é, a imagem que passavam era de escrotidão. Ninguém era idolatrado por aquelas atitudes. Tanto que na maior parte das vezes os personagens eram pessoas de pouca instrução, cargos baixos e nenhuma educação. Exemplo do Seu Noronha interpretado por Lima Duarte em Os Sete Gatinhos. Ele, inclusive, tinha vergonha de assumir que era contínuo (“Eu sou contínuo e você é um filho da puta”).
Na época das pornochanchadas, ninguém chegava já sentando a mão na Dona Flor (referência a um dos mais famosos filmes da época). Quando faziam, era uma pessoa detestável. No mesmo Os Sete Gatinhos tem a cena do deputado (interpretado pelo Mauricio Valle que comumente faz vilões e personagens odiáveis) correndo atrás de uma Regina Casé nua em pelos (literalmente) para tentar agarrá-la à força que reforça essa imagem. Por sorte, Regina Casé conseguiu escapar na piscina e saiu ilesa, inclusive de pegar um resfriado. Todavia, nem sempre a mocinha conseguia escapar de investidas inapropriadas. É o caso da Sonia Braga em A Dama da Lotação. Após negar sexo ao seu marido na noite de núpcias, ele a estupra. Traumatizada com aquilo, ela desenvolve um bloqueio ao próprio marido ficando incapaz de conseguir transar com ele. Para saciar seus desejos, ela começa a ter relações com homens aleatórios que encontra pelos ônibus da cidade. Não sei para vocês, mas, para mim, esse enredo tem um enorme poder didático.
A linha de pensamento de Zé Mayer é falha, além de desnecessária. Contemporâneos dele que foram repetidamente estrelas desses filmes como Nuno Leal Maia e Carlo Mossy (praticamente o rei das pornochanchadas) nunca se envolveram em escândalos dessa magnitude. Outros, mais velhos e, pela teoria, mais antiquados e então propensos a pensar igual, como Lima Duarte e Ary Fontoura também possuem uma ficha impecável no que se refere ao comportamento esperado em sociedade. Em suma, ele fechou com chave de merda o episódio ao tentar justificar sua atitude.
O que não pode deixar de ser observado é que a combinação mulheres com atores chamados José que trabalham na Globo costuma ser traumática. Um mete a mão, o outro cospe. Ao menos um já está sendo execrado publicamente. Quem sabe o outro receba um tratamento menos benevolente em uma próxima recaída, né não?

Que sacanagem! é uma rapidinha semana só para manter o interesse.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Ressaca moral

Capítulo anterior: Confraternização

- Hoje é dia da Marlene, baby?
Juliana, com a cabeça repousada em meu ombro, fez a pergunta me tirando do estado sonolento, quase apagando. Tínhamos acabado de transar e permanecemos deitados curtindo o momento. Juliana conseguia uma folga extra no trabalho às quintas-feiras e passou a usar esse dia para ficar comigo. Típico programa de amante que tanto me incomodava e comentei com a Tatiana no dia anterior. De fato, não gostava de como essas coisas estavam andando. Por outro lado, tinha um dia inteiro com ela à minha disposição. Ela chegava, rolava aquela trepada sensacional para matarmos a saudade, coisa hormonal beirando à selvageria, depois saímos para almoçar, voltávamos para a minha casa, rolava uma rapidinha de sobremesa, um cochilo pós-gozo em seguida, acordávamos já de noite, bebíamos alguma coisa, às vezes um filme, depois um sexo de fim de dia protocolar estilo casal com vinte anos de relacionamento, dormíamos e no dia seguinte ela ia direto para o trabalho. Com sorte, conseguia um sexo matinal daqueles que o homem não goza nunca porque está com a bexiga cheia. Não, não podia reclamar no quesito satisfação. Fazia um bom tempo que não tinha dias com tanto sexo. Contudo, esperava algo mais da minha relação com ela. Ainda mais considerando como foi na época que apenas flertávamos.
- Claro que não – respondi. – Até porque já são quase cinco e meia. O horário dela não é esse.
- Baby, então melhor ver porque, pelo barulho de porta abrindo que eu ouvi, alguém acabou de entrar.
Não tinha escutado o tal barulho que Juliana falou. Como sou bem surdo na maior parte do tempo, deveria levar em consideração o que ela tinha dito. Antes que pudesse fazer algo, ambos escutamos o som da minha porta da sala batendo com força. Os dois reagiram assustados àquilo. Juliana, levando consigo o lençol cobrindo o seu corpo nu, correu para o banheiro e lá se trancou. Que ótimo, não? Um suposto marginal entrando na casa e eu que me virasse para me defender dele nu, literalmente com o pau na mão. Acabei correndo e fiquei atrás da porta do quarto que já estava fechada. Alguém forçava a maçaneta tentando abrir a porta. Continuei atrás da porta oferecendo resistência. Aliás, uma resistência nem tão impressionante assim. Aparentemente, o meliante era surpreendentemente fraco. Após algumas tentativas frustradas, a pessoa parou de forçar a porta.
- SAI DE TRÁS DESSA MALDITA PORTA, SEU IMBECIL!  - era a voz da Tatiana.
- Porra! – disse abrindo a porta. – Você quer me matar do...
- IMBECIL! – Tatiana me interrompeu. – COLOCA UMA ROUPA! PORRA! Não bastasse tudo, ainda tenho de te ver pelado. Por que você está pelado em pleno... Peraí! Tem gente no banheiro? Quem é a piranha desta vez?
- Tatiana, não tem piranha alguma – disse enquanto colocava um short e tentava gesticular para Tatiana que contivesse as palavras. – Só pode ser uma pessoa.
- Uma pessoa é o cacete! Cada dia você come uma piranha diferente. Por que está todo se mexendo aí igual a uma codorna abatida? O que tem a piranha no banheiro? O que ela tem de especial para você estar a defendendo? Ela por algum acaso... Ah tá! Já entendi. Quem está no banheiro é a...
- Juliana – a própria saiu do banheiro se apresentando. – Você deve ser a Tatiana, não?
- Sim, sou eu. Desculpe-me pela maneira rude de nos conhecermos, mas meu dia não foi nada bom.
- Imagino que tenha seus motivos além, obviamente, do habitual que é conviver com esse traste.
- Baby – intervi na conversa. – Não tem nem cinco segundo que conheceu a Tatiana e já está contra mim?
- Baby é o cacete – Juliana respondeu num tom áspero que nunca tinha visto antes. – Que história é essa de cada dia uma piranha diferente?
Olhei para Tatiana na intenção de sinalizar que a brincadeira não estava tendo graça. Ela me devolveu um olhar tão furioso quanto o de Juliana. Naquele momento, me dei conta de que algo sério aconteceu e eu iria me dar muito mal. Pelo menos já estava vestido, pois a exibição do encolhimento do meu pau seria ilustrativa para a minha sensação de pavor pelo que estava por vir. Cheguei a desviar os olhos para a Juliana para confirmar o que era óbvio, só faltava a Tatiana bufar. Vendo que estava em uma sinuca de bico, ou melhor, em uma corda bamba equilibrando duas coisas ao mesmo tempo, optei por contemporizar. Seria impossível administrar uma Tatiana, que tudo sabe de mim, possessa e uma Juliana, que gostaria que desse certo, igualmente irada. Sentei-me então à beira da cama:
- Calma, Juliana – escolhi por chamar pelo nome para dar entender que estava levando a conversa a sério. – Não tem essa de uma piranha por dia. Quando digo que estou para valer com você, estou dizendo a verdade. Provavelmente esse ataque da Tatiana a mim é uma reação exagerada algo que fiz.
- REAÇÃO EXAGERADA? – pelo grito da Tatiana, conclui que talvez estivesse subestimando demais o problema dela. – EXAGERADA? EU FUI DEMITIDA POR SUA CAUSA!
- BABY! – Juliana se espantou e eu em seguida.
- MINHA CAUSA? COMO ASSIM?
Tatiana, por mais impossível que fosse, ficou mais transtornada ainda com a minha reação. Xingou, gesticulou, gritou e, em certos momentos, até chegou a puxar os próprios cabelos. Algumas frases ficaram desconexas, outras incompletas. Filtrando o máximo, o que se pode concluir é que fiz uma série de cagadas na festa de final de ano da empresa na noite anterior e, mediante os fatos, o gestor a demitiu. Cagadas, aliás, que, como era de se esperar, não lembrava por conta das minhas constantes amnésias alcoólicas. Pelo visto, o gestor além de vingativo, pois a demitiu porque não gostou de coisas que fiz, era um verdadeiro filho da puta, afinal, porque só a demitiu no último minuto de um longo dia de trabalho.
- NÃO, NÃO ADIANTA FICAR CONTRA O MEU CHEFE FALANDO MAL DELE. ISSO NÃO VAI AMENIZAR O SEU LADO. – Tatiana, ainda possessa, cortou o que achava ser uma boa estratégia minha. – Mas, sim, ele foi um filho da puta mesmo.
- Ok, gente – Juliana se enfiou no fogo que nem era cruzado, mas apenas em uma única direção. – Desculpe-me pela intromissão, Tatiana, mas o que ele fez de tão grave que chegou ao ponto de gerar a sua demissão?
Ao que parece, foi o conjunto da obra. Tudo começou no que deve ter sido após a minha terceira Cuba Libre. Longe de estar bêbado, mas suficientemente encorajado pelo álcool e incomodado com a apatia das pessoas, subi no pequeno palco onde o tecladista tocava música ambiente. Peguei o microfone e fiz um discurso improvisado sobre a importância de se extravasar nas festas de final de ano.
- Ah, baby – a reação da Juliana foi sofrida. – Que vergonha.
- Calma, Juliana – a Tatiana se antecipou. – Piora. Ah, mas piora muito. E, para dizer a verdade, isso nem seria motivo de dar merda, pois ele se passou por funcionário. Ninguém conhece de fato todos os funcionários por lá. E quer saber de uma coisa? Foi até engraçado. Teve uma parte que foi assim:
“Sim, vocês têm o direito de extravasarem na noite de hoje. É uma celebração! Onde já se viu celebração combinar com pessoas contidas. Aposto que o meu chefe vai me regular esta noite, um de vocês deve estar pensando. Pois eu aposto que o seu chefe vai estar completamente bêbado em menos de meia hora do jeito que servem uísque na mesa da diretoria. Aposto que ele não vai se lembrar de coisa alguma no dia seguinte. Aposto que ele ficará decepcionado caso passe vergonha sozinho na pista de dança. Aposto que... Ah, vocês já entenderam. Vamos! Levantem essas bundas caretas das cadeiras. Exceto a bela loura de cabelos presos ali ao fundo. Não, você deve, sim, se levantar também, baby. O exceto foi porque sua bunda está longe de ser careta. Chamar esse monumento ao corpo feminino apenas de bunda é, no mínimo, uma falta de respeito. Este objeto, cobiçado por uma ampla maioria que já teve o prazer de vê-la desfilar pessoalmente, precisa ser tombado pelo patrimônio cultural para que evitem o seu mau aproveitamento. Ela precisa ser venerada dias e noites como fazem com imagens religiosas. Ela deveria estar estampada em cada mural por toda a empresa em uma bela campanha motivacional com o slogan: Quando você achar que fez um belo trabalho, olhe para esse rabo e perceberás que fez apenas a sua obrigação. Li isso algum dia pela internet e adaptei, mocinha. Agora, antes que todos venham dançar, uma salva de palmas para o mais belo rabo que vi em minha vida.”
- Que machista, baby – Juliana me recriminou.
Não era a intenção. Bem, ao menos, nunca tive a intenção de assim ser, mesmo não me lembrando de patavinas do que aconteceu na noite anterior. Por mim, poderia ter campanha com fotos de homens sarados sem camisa também. Não me afetaria, tampouco eles se sentiriam ofendidos por isso. Talvez a minha forma de venerar o corpo feminino seja um pouco enfática e espalhafatosa. De qualquer forma, não iria me prolongar com essa discussão com a Juliana, pois não era o objetivo daquele momento tenso.
- Ainda bem que você sabe que nem vale a pena discutir comigo. Machista ou não, já está errado por elogiar bundas alheias por aí. – disse a Juliana.
Tatiana cortou o ciúme barato da Juliana e prosseguiu. O tom mais ameno que ela apresentou ao detalhar o meu discurso foi rapidamente substituído pela ira do início da conversa. Talvez tenha sido um lapso dela ou, na minha plena esperança, uma total incapacidade de ficar por muito tempo irritada comigo. O fato é que o vulcão voltou a entrar em erupção, principalmente na parte em que descrevia a conversa que tive com o chefe direto dela.
- Nem começa porque essa parte eu me lembro bem – interrompi tentando deixar um ponto a meu favor registrado. – Eu era só elogios. Comecei ainda no personagem do falso funcionário e desenvolvi um longo monólogo sobre seus atributos profissionais, dedicação e seriedade.
- Ele me falou isso – Tatiana ponderou com um tom seco e áspero. – Inclusive, ele disse que foi nesse momento que começou a desconfiar de que você não era funcionário.
- Que absurdo! O cara, além de ser um filho da puta, é um pessimista. Como pode uma pessoa não acreditar que alguém seja funcionário da própria empresa unicamente pelo fato de elogiar demais outro colega?
- Não foi por isso, imbecil – Tatiana permaneceu com o mesmo tom. – Ele disse que você tentava descrever tarefas, mas nenhuma fazia sentido com as minhas, tampouco com qualquer outro setor da empresa.
- Tá, mas isso não significava necessariamente que foi você quem me colocou para dentro da festa.
- Na realidade, sim, né? Na cabeça de quem faria sentido um penetra numa festa corporativa elogiar aleatoriamente uma funcionária? Bem, que seja. Você depois desandou a me elogiar como amiga também. Acho que isso acusa tudo, né?
- Ok, é justo! Mas que fique registrado que te elogiei como amiga. E foi sincero. Não se esqueça de que a sinceridade sai nos momentos alcoolizados. Já viu algum bêbado manter uma mentira ou inventar algo? Pois é! Estava bêbado e sendo honesto. Tudo que falei era verdade. Maior declaração de amor que fiz para uma amiga. Você! Baby friend! Vem cá, me dá um abraço. Vou colocar Friends Will Be Friends do Queen para tocar. Viva a nossa amizade! Estamos de bem? Paz? Aqui, cheira! Amiguinho...
- CALA A BOCA, IMBECIL!
- Gente, mas o cara te demitiu só porque você levou uma terceira pessoa para a festa? – Juliana retomou a palavra em um péssimo momento, quando estava pegando velocidade na minha deixa de amolecer o coração da Tatiana. Ou era o que eu achava.
- Juliana, colocar um conhecido para dentro de uma festa corporativa fechada, de fato, nem é um pecado capital. É algo recriminável, mas não tão dramático. – Tatiana se explicou para Juliana num tom que queria tanto que fosse comigo. – O problema é esse convidado externo aprontar todas e você não ter controle sobre ele.
- Como assim aprontar todas? O que ele fez, meu Deus?
- Basicamente, subornou um garçom para receber bebida deliberadamente. O discurso do microfone que já contei. Desenhou um enorme pênis com sushis e sashimis da mesa de comida japonesa. Lambeu a minha diretora nos dois lados do rosto.
- ELE O QUE?
- Relaxe, Juliana. Ela ao menos curtiu a lambida dele. Fez um bolão com os auxiliares administrativos sobre o tamanho da bunda da tal loura e depois foi até ela medir com uma fita métrica, que sabe-se lá de onde ele arrumou?
- VOCÊ MEDIU A BUNDA DA MULHER?
- Toquei o mínimo necessário, baby! E foi tudo muito profissional com fins de jogatina. Até porque, para dar entrar na papelada do patrimônio cultural, eu preciso das medidas...
- Mas, enfim – Tatiana cortou tudo. – Deixe-me terminar a parte do meu chefe. Porque foi ali que a queimação foi aumentada com um tonel de gasolina. O problema foi quando ele se empolgou nos elogios sobre a nossa amizade. Falou demais e contou de quando precisou do meu ombro amigo para falar do relacionamento com você, Juliana.
- Falar do nosso relacionamento? Baby, você está com algum problema com o nosso relacionamento?
- NÃO! – respondi no automático. – Digo, sim! Mas não foi isso!
- Peraí – Juliana demonstrou mais interesse do que nunca na conversa. – Você está ou não está com problemas no nosso relacionamento?
- Sim, estou! Só que o problema não é esse. A história do ombro amigo não foi por conta de problemas.
- Tem razão, Juliana. O caso do ombro amigo foi para ele me contar sobre a festa de formatura e a frustrada primeira transa de vocês.
- OPA! – Juliana gritou com a palma de uma das mãos espalmada. – Você foi fazer fofoquinha da nossa intimidade com ela? É isso mesmo?
- Não, não é isso – respondi. – Estava eufórico com o início e precisava contar para alguém. Daí, nada melhor do minha melhor amiga que amo tanto e nunca faria algo para prejudicar a sua...
- CALA A BOCA, IMBECIL – fui cortado pela Tatiana. – Não era fofoquinha, Juliana. Aqui preciso defender ele. Estava desde o início acompanhando a novela de vocês dois. Além de torcer muito por vocês. Não sei se ele disse, mas sempre fui sua fã sem te conhecer. Considerava que você fosse capaz de dar um juízo na cabeça dele. Enfim...
- Então, vejam que coisa linda – dessa vez, eu interrompi a conversa. – Minha amiga linda do coração e a maior paixão que tive na minha juntas...
- CALA A BOCA! – as duas gritaram.
- Como ia dizendo, – Tatiana retomou a palavra. – a minha torcida era tamanha, que queria muito saber como tinha sido a noite da formatura. Só que no domingo seguinte ele sumiu. Daí, eu só consegui falar com ele na segunda. Foi quando comentou que tinha toda uma epopeia para me contar. A euforia dele para compartilhar a notícia somada à minha vontade de saber o final da história nos fez marcar um almoço na segunda-feira.
- Viu? – usei a deixa da Tatiana para acertar a impressão da história com a Juliana. – Nada de fofoquinha. Apenas um cara apaixonado e empolgado com uma grande amiga torcendo pela felicidade deles.
- Está bem! Menos, né? – Juliana deu entender que aceitou a história. – E o que isso tem a ver com a sua demissão? Qual a relação que eu não entendi até agora?
- O problema foi que o imbecil aí... – Tatiana seguia com a palavra até ser interrompida por mim.
- Essa insistência em me chamar de imbecil é uma forma estranha de dizer que me ama, né?
- CALA A BOCA! – Tatiana seguiu. – Você já deve ter percebido, Juliana, que tudo com esse bêbado é na base do álcool. Pois bem, durante o almoço, DURANTE UM DIA DE SEMANA QUE EU ESTAVA TRABALHANDO, ele pediu uma cerveja e me ofereceu. Eu neguei. Daí, ele com esse talento persuasivo todo desastrado me convenceu a beber um copo só para brindar o início do relacionamento com você. Acabei aceitando. Erro grave de quem o conhece há tanto tempo. Nunca é apenas um copo com ele. Nunca tem fim. Nunca tem limite. O almoço durou quase a tarde toda e saímos de lá bêbados.
- Ah, baby, que péssimo amigo – Juliana se decepcionou novamente comigo.
- Péssimo nada, baby! Eu estava feliz. Ela estava feliz por mim. Estávamos felizes comemorando. Não existe nada de errado nisto. Venha me dar um abraço, vamos comemorar!
- PARA! Que seja. Eu me lembro de algo do tipo. – Juliana começou a ligar uns pontos e, assim, me preocupar. – Lembro-me da segunda-feira logo depois da formatura que você cancelou de nos encontrarmos. A desculpa que você deu era outra. Algo de ela estar com problemas pessoais e precisava de você para conversar. Até achei foto depois.
- Ah, baby, veja bem. – ela tinha ligado bem os pontos e eu precisava acertar as coisas. – Perceba que era uma emergência para ajudar a amiga de qualquer forma. Só distorci a verdade por fins práticos. Não existe por de trás da história...
- Você é uma pessoa muito ruim mesmo. – Juliana me cortou. – É uma mentirinha atrás da outra. Não bastante, só faz merda. Complica a vida de quem chama de amiga. E você também, Tatiana, vou te falar uma coisa. Para mim, tudo isso é novidade. Sabia que ele era desajustado, mas não a esse ponto de destruir as coisas ao seu redor. Agora com você é diferente, pois você sabe bem disso. Convive com isso. Aliás, como consegue conviver com isso? Como ainda é amiga dele? Então ele contou para o seu chefe que você encheu a cara e faltou o resto do trabalho?
- Exatamente – Tatiana concordou e sua expressão era cada vez pior. – Alguma coisa na cabeça desse imbecil, talvez um curto-circuito entre os neurônios afogados em rum, o fez pensar que contar esse episódio soaria como um elogio. Era óbvio que o meu chefe ficaria possesso em saber que bebi na hora do almoço. Aliás, bebi é eufemismo. Enchi a cara na hora do almoço a ponto de não poder voltar para o trabalho. Não bastante, ele percebeu que caiu na mentirinha dele. Afinal, foi ele mesmo quem ligou para o meu chefe inventando a história que passei mal. O próprio se lembrou dos detalhes da conversa e se recordou que esse imbecil debochou da cara dele o tempo todo durante a ligação. Ele se sentia humilhado a cada constatação que fazia. Você me disse uma coisa certa, Juliana. Eu convivo com isso. Sei dos riscos. Mesmo com ele sempre se superando, a certeza de que no final vai dar merda é real. E, na maioria das vezes, eu quem me fodo com ele. No mínimo, passo uma vergonha enorme. Você tem razão. Não existe motivo para ser amiga dele. Quero dizer, eu gosto dele de verdade, mas, aparentemente, a recíproca não é verdadeira.
- NÃO! – tentei cortar a Tatiana. – NÃO DIGA ISSO!
- Digo, sim. Não faz sentido algum. Você em uma noite, em que deveria apenas escolher um vestido para eu ir à festa, arruinou a minha vida. Começou colocando defeito em todas as minhas roupas que eu considerava boas, fez com que perdesse meu emprego e ainda afugentou o carinha que eu estava saindo.
- OPA! – interrompi novamente. – DESSA, EU NÃO ESTOU SABENDO.
- Pois é, baby. Aparentemente, entre uma merda ou outra, você acabou conhecendo o Jefferson. Aquele com o nome com dois efes que você fez piada por isso. É curioso que, com o meu chefe, mesmo da pior maneira possível, você tentou me elogiar, falou dos meus atributos, quase uma declaração estabanada de amor. Já com o Jefferson, você só falou mal de mim. Desenhou o meu pior retrato, quase um rascunho feito por uma criança. Parecia que me odiava e que eu era a pior pessoa do mundo para se relacionar. O garoto ficou tão assustado que apenas me disse que precisava repensar algumas coisas e, desde então, não me atende mais, nem responde às minhas mensagens.
- Sério, Tatiana? Ele é um péssimo amigo. Acho que nem podemos colocar amigo na definição.
- Calma aí, meninas. Vocês estão exagerando um pouco as coisas...
- Exagerando? – Tatiana me interrompeu. – Vamos ver o que é exagero. Juliana, se lembra da diretora que ele lambeu os dois lados do rosto?
- TATIANA, PORRA! – o pânico tomou conta de mim.
- “Tatiana porra” o quê? O que tem ela? – Juliana me confrontou.
- TATIANA! NÃO SEJA EU! VOCÊ É MELHOR DO QUE ISSO!
- Para o inferno esse papinho. Ser você seria sustentar uma mentira e iludir essa menina. Eu vou ser sincera e dizer o que tem de ser dito. O que vier depois é consequência da SUA AÇÃO, não da minha.
- Fale, Tatiana. Por favor. O que ele fez com a diretora?
- Eles foram flagrados se agarrando numa cabine do banheiro masculino. Ela foi demitida hoje também. Outra vítima das inconsequências dele. Se te consola, ou massageia o ego, você em uma noite virou uma lenda em toda a empresa. Só falavam de você hoje por lá.
Fez-se o silêncio na casa. Juliana voltou ao banheiro e se sentou na tampa da privada que estava abaixada. Eu e Tatiana, do meio do quarto ficamos olhando para ela aguardando alguma reação. Nada. Olhei então para Tatiana que desviou o rosto e se sentou na cama. Assim como a Juliana, ela ficou fitando o chão. Eu não tinha um incêndio para contornar, tinha dois. Na realidade, tinha duas florestas com vários focos de incêndio em cada uma delas. Não tinha a menor idade de por onde começar. Não sei lidar com essas situações apaziguadoras. Tudo que faço é usar sarcasmo na esperança de quebrar o clima e as coisas se acertarem sozinhas com uma risada. O momento não chegava perto de permitir isso. Saí do quarto e fiquei de pé na sala esperando que alguma das duas fizesse algo. Não sei o que? Que me xingasse, jogasse algo em mim, fosse embora, mas fizesse algo. Aquele silêncio estava me matando. Peguei uma garrafa de rum do meio das minhas outras garrafas de bebida. Fez um barulho de vidro quando elas se esbarraram. Deu para ouvir um riso curto contido do meu quarto. Com certeza foi a Tatiana. Foi um sorriso recriminador como quem diz que esse merda vai encher a cara como solução do problema dele. Não pretendia encher a cara. Todavia, precisa de uma bebida. Não tinha condições de elaborar algo mais sofisticado. Estava inquieto e ansioso. Coloquei três dedos de rum em um copo e virei em um gole só. Desceu mal e franzi todo o rosto. Abri a geladeira à procura de algo para misturar. Minha casa nunca tem um suco ou refrigerante para improvisar uma bebida. A maior parte dos destilados que tenho é de protagonistas, não devem ser misturados. Apesar de essa geração bunda-mole insistir em misturar com energéticos excessivamente açucarados. Não, o problema não está no excesso de açúcar, mas na mistura em si. Exatamente por nunca ter com o que misturar, não fazia sentido ter uma garrafa de rum em casa. É a minha bebida destilada favorita, sim. Entretanto, sempre bebo misturando com algo. Com a geladeira ainda aberta e a garrafa de rum na mão, fiquei refletindo de onde ela surgiu. Faltava bem menos que a metade para ela acabar.
- Admirando sua recordação da noite épica? – Tatiana disse enquanto entrava na cozinha, pegava uma garrafa de água e, em seguida, saía de lá.
Ela ficou parada no meio da sala encarando minha estante de livros. Dizem que se pode definir uma pessoa pelo o que ela lê. Talvez até funcione comigo, em partes. Jamais, por exemplo, conseguiriam determinar qual disciplina leciono. Nunca tive livros técnicos do tema em casa, tampouco nos locais onde trabalhava. Provavelmente era um sinal da minha soberba nesse aspecto que me impedia de consultar um material completar. O que daria na aula vinha sempre da minha cabeça e de improviso. Obviamente nunca lecionei algo tão complexo que exigisse uma preparação prévia, mas uma leve consulta para ampliar as abordagens era algo salutar para um bom professor. Bem, não fazia isso. Lá na minha prateleira estavam os meus “mestres”. Sim, entre aspas. Nunca fui aluno deles, mas assim os considerava por conta da influência que exerceram sobre a minha personalidade e a minha escrita. Não sei se uma coisa é consequência da outra. Digo, personalidade e escrita. É óbvio que escritores são capazes de causar impacto em seus leitores a ponto de influenciar características de quem os lê. Experimente mergulhar de cabeça no mundo de Bukowski e entenderá o que falo. Ou como sou, se assim preferir. Hemingway, Machado, Garcia Márquez, Rubem, o Fonseca, não o Alves, Kerouac, Mario Prata, Dostoievski, Ariano, Cervantes, Veríssimo e Hunter Thompson estavam a postos aguardando o olhar sinistro de Tatiana. Ela os ignorou. Seus olhos eram todos atenção para um título perdido destoando dos demais.
- Poxa, baby – com um tom melancólico, Tatiana puxou a palavra. – Você nem abriu o livro que te dei.
- Eu ia abrir quando fosse ler, assim conservaria o delicioso cheiro de livro novo.
- Quando fosse ler? Eu te dei tem mais de um ano.
- A fila de livros aqui é grande, baby.
- Fila? Você sempre relê os mesmos. Só esse tal de Putas Choronas... – cortei a Tatiana.
- Memórias de Minhas Putas Tristes!
- Que seja! – ela prosseguiu. – Só esse, já te vi folheando umas cem vezes nesse mesmo espaço de  tempo que te dei o livro.
- PÉSSIMO AMIGO! - a Juliana gritou do banheiro.
- Tatiana – chamei pelo nome para manter o foco em mim. – Acredite, eu ia ler um dia.
- Quando?
- Quando estivesse preparado.
- Preparado? Desde quando precisa de preparação para se ler algo? O que você precisa?
- Talvez uma lobotomia. Ou estar em coma e alguém ler para mim para ver se acordo de raiva.
- Porra, baby! Que ingratidão!
- Não, não é ingratidão. Nem um pouco. Fiquei muito feliz de ganhar um livro de você. Deu-me um baita orgulho saber que por minha causa você pisou alguma vez na vida numa livraria.
- VAI TOMAR NO SEU CU! Você e esse seu sarcasmo de merda.
- PÉSSIMO AMIGO! – Juliana mais uma vez gritou do banheiro.
Não era sarcasmo. Foi um comentário honesto que talvez devesse ser tolhido por uma mente com o mínimo bom senso. Ser estabanado socialmente sempre foi um defeito grave que me acometia, principalmente em momentos de tensão.
- Desculpe-me – tentei amenizar as coisas em um tom que entoava sinceridade. – Na minha cabeça, era um elogio que fazia sentido.
- Ah, na sua cabeça fazia sentido? Na sua cabeça não tem a recordação que fico magoada por pouca coisa?
- Ah, tá! E na sua cabeça não passa que não gosto dessas merdas de autoajuda?
- Você é um péssimo amigo!
- PÉSSIMO AMIGO! – Juliana outra vez.
- Você compra um presente errado para mim e eu sou o péssimo amigo por não mudar minhas predileções literárias?
- SÉRIO QUE VOCÊ VAI DISCUTIR ALGUMA COISA? – Juliana surgiu triunfante na sala encerrando a conversa de vez. – Você é muito pior do que imaginava. Adeus!
- Peraí! – contive a Juliana pela mão enquanto ia a caminho da porta. – Aonde você vai?
- Eu? – Juliana parou para me responder. – Eu vou embora da sua vida e espero que você faça o mesmo da minha. Adeus!
Congelei. Um gosto de sangue subiu à boca. Lábios e língua travaram. Não sabia como reagir. Foi um esforço diário por semanas para conseguir começar algo com a Juliana e tudo estava desmoronando por conta de uma cagada que ela nem estava envolvida. Não podia desprezar a Tatiana e a sua desgraça, contudo, prioridades precisavam ser determinadas. Entre as duas, escolhi a Juliana. A Tatiana eu tentaria resolver mais à frente.
- Calma, Juliana – mais uma vez usei o nome para demonstrar seriedade ao problema. – Precisamos conversar.
- Conversar o que? Você me traiu!
- Eu não te traí coisa alguma.
- Ah, traiu, sim. – Tatiana se meteu na conversa.
- Tatiana, na boa – me impus para tentar conduz melhor a conversa. – Eu entendo perfeitamente a merda toda ao seu redor. Já falou e falou até demais. Eu só peço que segure um pouco a onda aí enquanto ao menos tento ser sincero com ela.
- Sincero? Ok! Vou até sentar para ver melhor essa cena. – disse a Tatiana enquanto cumpria com a sua fala.
- Essa eu também quero ver. – Juliana completou. – Vai, senhor sinceridade. Vai assumir que me traiu?
Forçando um pouco a cabeça, conseguia me lembrar dos amassos com a diretora no banheiro. Recordava, inclusive, de como começou. As lambidas foram bem depois de tudo começado. Pelo que me consta, foi numa série de sarradas em uma tentativa de dançar forró. A coisa, naturalmente, começou a pegar fogo e, em algum momento, disse para a diretora que ela era muito gostosa. O destino, que sempre me prega peças, colocou à minha frente uma pessoa tão cretina quanto eu. Ela respondeu perguntando como eu poderia saber que era gostosa se sequer tinha a provado. Daí que vieram as lambidas. Para a minha maior surpresa, a diretora foi enfática ao dizer que ninguém prova um produto lambendo o rótulo. Foi nesse momento que o convite para sairmos do campo de visão de todos foi feito. Pena que o executamos miseravelmente. Todos nos viram entrando no banheiro masculino. Claro que foi questão de minutos para um segurança aparecer e interromper tudo. Não sei precisar o tempo, mas foi o bastante para um zíper ser abaixado e uma saia ser levantada. Imagino ser dispensável dizer o que era de quem
- Eu não estou acreditando no que estou ouvindo. – Juliana expressava desespero com as mãos levadas aos cabelos. – Como você mesmo diz, eu te fiz uma pergunta que admitia apenas sim e não como resposta. Em troca, você me deu um relato detalhado da sua façanha. Obrigado pelo sadismo gratuito em me magoar. Foi a resposta mais longa e dolorosa que poderia imaginar para uma simples confirmação de que me traiu.
- Nada disso! Sim, me desculpo por ter sido prolixo. De fato, foi desnecessário. Mesmo assim, não confirmei que te traí.
- Ah, não me traiu? A traição seria configurada em qual momento? Quando estivesse com um dos punhos cerrados dentro do rabo da diretora vagabunda?
- Olha o machismo. Minha boca foi mais rápida que meu cérebro.
- Enfia o seu deboche no cu! NO CU! Enfia e roda! E não me venha com esse papinho de que não me traiu.
- Mas eu não te traí. Para te trair, é necessário que tenhamos um relacionamento.
- E não temos um relacionamento? Vai ser escroto ao ponto de entrar em especificações técnicas do relacionamento? O que temos então?
- Sei lá! Estamos saindo. Estamos nos conhecendo. Só que em nenhum momento anunciamos que estamos em um relacionamento oficial exclusivo. Portanto, sem relacionamento oficial exclusivo, não existe traição.
- Você vai ser mesmo filho da puta ao ponto de tentar se safar tecnicamente dessa cachorrada que me fez, né?
Preciso reconhecer que foi muita covardia colocar na mesa um argumento desse tipo. Algo tirado do fundo do poço de tão baixo. Não, não me via num relacionamento com a Juliana. Muito pelo contrário. Estava me sentindo em uma conveniência mútua de puro comodismo movida por motivações de sentimentos equivocados. Ela, para mim, era como o Santo Graal. A aluna séria que jamais sairia com um cara como eu, principalmente sendo seu professor. Não sei por parte dela qual a motivação que a fazia querer se envolver comigo de maneira tão fria.
- Que relação fria? – Juliana perguntou demonstrando mais desespero ainda. – De onde você está tirando isso?
- Bem... – fiz uma pausa e olhei a Tatiana sentada passivamente com as sobrancelhas levantadas como quem pede para prosseguir e saciar sua sádica satisfação com aquela cena. – De onde tirei isso? Baby, nosso relacionamento parece um caso de pessoas casadas. Eu pareço seu amante.
- Meu Deus! Meu Deus! – Juliana se descabelava mais a cada exclamação feita. – Você é muito mais maluco do que eu imaginava. De onde você tira essas coisas?
- De onde? Ora, sejamos sinceros, não é mesmo? Quantas vezes andamos na rua de mãos dadas? Quantas vezes fizemos um programa em local público? Tudo que fazemos é nos encontrar por aqui. No máximo, vamos ao restaurante da esquina comer algo e voltamos. Se isso não parece um caso de amantes, então não sei de nada dessa vida.
- Tatiana – Juliana se vira para a Tatiana. – Preciso da sua ajuda aqui porque ele é muito pior do que eu imaginava. Isso é sério mesmo? Ele comentou com você sobre isso? Já que vocês conversam sobre tudo, inclusive nossas peripécias sexuais, ele falou com você sobre essa leitura torta do nosso relacionamento que sei lá como ele prefere chamar?
Os breves segundos de silêncio da Tatiana foram suficientes para acusar que ela consentia com a minha versão. Quero dizer, que ela tinha ciência de tudo aquilo que tinha dito para a Juliana. Ela interrompeu seu próprio silêncio com uma longa respirada. Em seguida, confirmou verbalmente.
- E você não acha que isso é loucura dele? – Juliana perguntou mais uma vez para a Tatiana.
- Sendo bem sincera, eu achei isso estranho. Só que precisava ouvir a sua versão para ter uma opinião melhor formada. É isso mesmo que ele disse? A programação de vocês se limita a isso?
- Sim, ele não mentiu, mas... – Tatiana interrompeu a Juliana que confirmava a minha versão.
- Ora, se era isso mesmo, ele tem razão para achar que tem algo de estranho. Lembro que ele comentou algo sobre desconfiar que você tinha vergonha dele.
- VERGONHA? – Juliana riu depois do seu próprio grito. – Quero dizer, ele me fez passar vergonha muitas vezes. Por sorte, quando acontecia, estávamos aqui a sós. Tirando isso, não tenho vergonha dele. Que absurdo! Todos no colégio sabiam que flertávamos sempre. Caso tivesse vergonha dele, teria cortado logo de cara para minimizar a minha fama.
- Então me explica o motivo de tanta reclusão comigo. Por que publicamente não existimos? Por que nosso relacionamento se limita a esse apartamento de cinquenta metros quadrados?
- Por quê? Isso não é óbvio para você? Porque me sinto intimidada. Você é uns dez anos mais velho do que eu. Você foi meu professor. Consegue imaginar o quanto é difícil para mim?
- Eu sabia – Tatiana foi pontual enquanto Juliana prosseguia.
- Não bastante, você é meu segundo namorado. Quero dizer... – Juliana fez uma pausa, balançou as mãos no ar e prosseguiu. – Sei lá! Não sei mais o que somos, mas sei que você é o número dois. É isso, apenas posso dizer que você é o meu segundo. O segundo cara na minha vida. O primeiro foi um namorico de adolescência que sequer durou um ano. Perdi a virgindade com ele, mas foi só isso. Você agora é a segunda pessoa na minha vida. Ou o primeiro homem. Bem, nem sei mais se posso te chamar de homem depois disso tudo. Digo, no sentido de adulto, não de masculino, antes que fique ofendido. Estou perdida. Queria estar com você, mas não sabia como fazer. Se fosse para ficarmos trancados dentro da sua casa como vinha acontecendo toda semana, por mim estava ótimo. Afinal, estava com você. Se me chamasse para ir ao cinema, iria. O mesmo com praia, shopping, parque, até circo fuleiro lá da Pavuna. Não te dava a mão nas poucas vezes que estávamos na rua exatamente por isso. Não sabia se era para darmos as mãos. Só que, se você me desse, eu não soltaria nunca mais. Apesar de preferir que andasse abraçado a mim. Está satisfeito agora? Está explicado? Porque eu sequer precisava me explicar para você depois de tudo que ouvi hoje. Cada dia ao seu lado é um esforço enorme para te acompanhar e ao final recebo isso. Você não tem ideia do quanto é complicado tentar te acompanhar conforme os copos vão sendo virados. Como te disse, você foi meu segundo. Minha segunda transa foi com você. Isso para mim já é algo complexo demais para ficar totalmente confortável. Daí, você vem cheio de coisinhas. Fala sacanagem, me joga para lá, me aperta. Claro que com o tempo iria curtir. É sua forma peculiar de demonstrar o quanto me deseja. Só que, na segunda transa da vida, isso assusta, e muito. Eu não tinha vergonha de você. Nunca tive. Sempre te achei um cara genial, ainda mais com esse jeito desastrado de ser. Eu estava em pânico. Queria conseguir te acompanhar. Nem sempre é fácil. Tem vezes, que ao se deparar com algo novo, ao invés de nos adaptarmos, travamos. Eu travei. Eu queria ser a musa sexual que você tentava fazer com que me sentisse. Queria mesmo. Era algo novo demais. Tudo que conseguia era ser uma boneca. Um brinquedinho. Ainda assim, você se esquecia que sou mais do que um corpo para lamber, apertar, beijar e enfiar esse pau ansioso. Eu sou uma companhia também. E você sabe bem disso porque, no início, era tudo que éramos um para o outro. Virtualmente, na maior parte do tempo, eu assumo, mas éramos. Tínhamos conversas, cumplicidade, interação. Tudo bem que às vezes você descambava para as coisas com duplo sentido. Era engraçado, confesso. Acabava jogando sua mentalidade para mais próxima da minha e me sentia confortável. Ou menos desconfortável. Enfim, eu estava em pânico. Agora, não sei mais. Acho que estou horrorizada com a pessoa que você é. Eu ouvia falar das suas bebedeiras e maluquices, contudo, imaginava que eram situações apenas engraçadas. Não sei. Vai ver sou muito inocente. A minha vida social não me proporcionou amigos que transam em banheiro de festa com mulheres desconhecidas.
- Ou com diretoras de colégio na secretaria.
- TATIANA! – Gritei.
- O que ela disse? – Juliana fez a pergunta no automático, pois tinha entendido perfeitamente o que Tatiana falou. – A Verônica? Jura? Aquela mulher mesquinha? Que nojo! Não me fale que foi durante a época em que estávamos juntos. Nem precisa responder. É indiferente. Foi a cereja do bolo. Mesmo assustada com nosso relacionamento, esperava que você me calejasse para a vida. Jamais imaginaria que me deixaria calejada para as coisas ruins da vida. Você não me deu experiências, mas cicatrizes que me lembrarão de erros que nunca mais cometerei. Adeus. Não me procure, por favor.
Juliana se levantou e foi até a porta. Quando segurou na maçaneta, ela refugou por alguns segundos. Não, ela não olhou para trás. Juliana apenas respirou fundo, e encarando ainda para a porta, disse que me odiava e que jamais passaria pela sua cabeça que um dia teria tal sentimento por mim. Daí, a porta foi aberta e ela foi embora sem fechar. Não quis correr o risco de ter de olhar para trás. Em um corredor silencioso, Juliana foi embora sem fazer barulho algum. Sem deixar rastros de que um dia esteve ali. Eu podia sentir que era o fim. A minha certeza disso era tão grande quanto a da que tinha quando sabia que um dia estaria com ela.
Éramos agora eu e Tatiana na sala. Levantei-me, fechei a porta e sentei-me ao lado dela. Tatiana se levantou, foi até a estante, retirou o livro que me deu de presente e colocou em sua bolsa. Depois disso, não fez mais movimento algum. Não sabia se estava pronta para ir embora e esperava que eu dissesse algo. Ela também poderia estar tomando coragem para dizer algo. Resolvi quebrar o silêncio:
- Satisfeita?
- Ah, para o inferno! Se te consola, isso não era o meu plano quando saí rumo à sua casa. Não tinha isso em mente.
- Pelo menos, agora pode dizer que conseguiu empatar a minha fodida na sua vida fodendo com a minha.
- Pois saiba que está muito longe de empatar ainda.
Ela foi até o meu quarto e se sentou na beira da cama. Visivelmente, Tatiana não iria embora naquele momento. Com certeza, não iria embora tão cedo. Muita coisa foi dita e tínhamos muito por acertar.
Próximo capítulo em breve