sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Barbearia à moda antiga
Amiga de verdade
Quando a Sandra viu no identificador de chamadas quem estava lhe ligando percebeu na hora que coisa séria estava por vir. Carla foi sua colega de faculdade na extinta Gama Filho. Viraram amigas naquela época criando laços muito fortes. Depois da formatura, projetos particulares, como família e trabalho, acabaram afastando uma da outra. Ainda assim, mantinham contato esporádico por e-mail. Permanecia viva entre as duas uma forte ligação de afinidade. Carla ligar para Sandra era sinal de que precisava falar algo com urgência. De fato, era.
Durante o fim do seu casamento, Carla se viu numa sequência interminável de frustrações. A primeira foi com o próprio ex-marido que se mostrou um canalha. Ela a traiu com a professora de hidroginástica da academia. Naquele mesmo dia, por conta do adultério prolongado, suas duas filhas ficaram até quase nove da noite na escola esperando pelo pai. Dado o divórcio, ela se decepcionou novamente com o ex-marido. Com o ego ferido por ter acesso limitado às filhas depois daquele episódio, ele começou a complicar os pagamentos de pensão. Por fim, sem a ajuda financeira do marido, Carla começou a ter sérios problemas com grana. Cortou uns luxos próprios para que o momento não atingisse às filhas. Depois teve de cortar prazeres das meninas, como clube, televisão por assinatura e idas ao teatro infantil aos sábado. A sua situação só piorava a cada mês que se passava.
Sandra sabia da situação de Carla por conta de outras pessoas em comum com quem mantinha mais contato. Na hora que viu o telefone tocando, não pensou duas vezes para tirar tal conclusão. Ela ia pedir dinheiro emprestado. Carla não se prolongou muito na conversa, tampouco entrou no assunto grana. Foi sucinta e objetiva. Queria marcar de conversar com Sandra pessoalmente. Entendendo que seria algo necessário a se fazer, a amiga topou se encontrar. Sandra sempre achou meio delicado esse negócio de emprestar dinheiro, mas um encontro com Carla para ouvir suas mazelas e dar um ou outro conselho já seria alguma coisa ao menos.
Quando Sandra chegou ao barzinho que marcaram, Carla já a aguardava e aparentava estar por lá por algum tempo. Seu semblante era um misto de preocupação com ansiedade. Mesmo assim, quando avistou a amiga adentrando, abriu um enorme sorriso. Não se viam há muito tempo. Abraçaram-se, trocaram beijinhos e, antes de se sentarem, cada uma comentou quase que ao mesmo tempo algo sobre o cabelo da outra. Riram e, enfim, se sentaram.
- Sabe, Sandra? Quero agradecer por vir. Sei que existem coisas que nos colocam em berlindas, mas a necessidade fala mais alto. E, de verdade, preciso fazer isso. Não é algo nada fácil. Não é mesmo. Precisei de muita coragem para fazer isso. E saiba que só estou aqui porque é você. Jamais faria isso com outra pessoa. Talvez, somente uma pessoa com uma relação de carinho recíproco tão grande quanto você conseguia entender o motivo de chegar a este ponto.
Sandra, que até então só acenava assertivamente com a cabeça e concordava com sons abafados pela garganta, interrompeu a Carla. Ela pediu para a amiga ser paciente porque as coisas precisam ser feitas com calma. Com Carla calada, ela prosseguiu dizendo que deveriam pedir algo para beber primeiro. Uma bebidinha de leve para relaxar. Palavras da própria. A amiga relutou e, em seguida, preferiu dizer que a bebida seria para dar coragem. Sandra concordou, riu e pediu dois cosmopolitan.
- Nossa – a Sandra interrompeu o próprio primeiro gole. – Isto lembra muito a época da faculdade, não é?
- Sim, bastante!
- Época boa! Saíamos da aula e íamos direto para o bar do Azevedo. Ficava lotado de aluno da educação física. Bando de homem sarado enchendo a cara de cerveja.
- É mesmo! E nós duas bancando as estilosas circulando com cosmopolitan em mãos.
- Éramos chiquérrimas. Chamávamos mais a atenção que aquelas pé-de-cana bebendo cerveja em copo de botequim.
- Além do fato que nenhum homem se oferece para pagar uma cerveja. Mas um drinque. Ah, um drinque todo homem quer pagar. Ainda mais para duas meninas finas e bonitas como nós duas.
- Nossa – Sandra se interrompeu para mais um gole e depois prosseguiu. – Saímos completamente bêbadas sem gastar um tostão. Época boa. Era tudo mais barato, por assim dizer.
As duas caíram na gargalhada. Quando os risos pararam, ficou um silêncio constrangedor que foi disfarçado com longos goles terminando os drinques. Sandra pediu mais dois. Carla voltou a puxar o assunto delicado. Temendo pelo que vinha, Sandra abriu o cardápio e disse que precisavam escolher algo para comer. A amiga transpareceu aflição com a nova interrupção. Então a Sandra se justificou dizendo que era melhor pedir a comida naquele momento e, enquanto esperavam, conversariam. As opções eram limitadas por se tratar de um bar simples. De qualquer forma, era uma deixa para a Sandra procrastinar a tal conversa. Até que surtiu certo efeito. Dentre as opções, existiam coisas que uma não comia e coisas que quebravam a dieta da outra. Era uma tarefa complexa encontrar algo que não se encaixasse nas restrições das duas e as apetecesse ao mesmo tempo. Feito finalmente o pedido, assim que o garçom saiu em direção da cozinha, Carla engoliu seco e deu entender que tomava coragem para prosseguir. Sandra foi mais rápida.
- Você vai adorar a porção de minis hambúrgueres. Não são enormes como os que estão na moda. São bem pequenos. Além de serem bem leves.
- É, Sandra – Carla parou de falar para dar um gole no seu segundo drinque. – Eu tenho evitado bastante comida com pão...
- Bobagem – Sandra interrompeu a Carla. – O pão daqui além de fininho é macio. Não é como aqueles pães tradicionais de hambúrguer que são massudos. Você vai adorar.
- Entendi. Bem, falando assim, fico até mais animada. Sabe como é, né? Pão massudo, carne processada...
- Não! – Sandra interrompeu a amiga novamente. – Aqui é artesanal. Eles compram a carne, moem, montam e tudo. Tudo feito na casa. Nada de carne de hambúrguer pronta de supermercado.
- Isso faz uma grande diferença mesmo. Dá um ar diferencial à coisa, não?
- Claro! E oh – Sandra fez uma pausa dramática. – O molho é sensacional. Ele tem um toque picante que fica na ponta da língua sem arder demais. É ótimo.
O silêncio constrangedor acompanhado dos goles em seus respectivos drinques retornou à mesa. Sandra foi a primeira a terminar o seu drinque. Repousou o copo sobre a mesa e jogou um olhar perdido para a decoração no alto do bar. Parecia que estava admirando apesar de já ter perdido as contas de quantas vezes já pisara por lá. Carla terminou o seu em seguida, arrumou os cabelos, passou a mão no rosto, ajeitou umas pulseiras em um braço, coçou o outro e assim seguiu demonstrando inquietação. Mesmo sem olhar diretamente para a amiga, Sandra percebeu a movimentação de Carla. Optou então por continuar admirando o que já conhecia de longa data. O desconforto de Carla permanecia notório. Era evidente que a qualquer momento ela tocaria no assunto. Evitando mais uma vez o que estava por vir, Sandra propôs uma foto para registro.
- Amiga, precisamos publicar uma foto nossa. Tem um monte de gente da Gama no meu Facebook. Eles vão adorar nos ver juntas.
Com um sorriso amarelo, Carla se aproximou de Sandra. Não era possível identificar se era má vontade, frustração ou cansaço com a dificuldade em fazer o que tinha planejado. Ainda assim, a foto foi tirada. Sandra não gostou do resultado. Tinha saído um homem andando ao fundo. Ela queria que a decoração aparecesse. Carla então topou uma segunda foto. As duas aprovaram. Enquanto Carla voltava para sua cadeira, Sandra mudou de ideia. Sugeriu que uma foto com as geladeiras abarrotadas de cerveja ao fundo ficaria mais divertida. Lá se foram as duas até o balcão. Pediram para um garçom tirar a foto das duas. Ele tirou. Tira mais três para garantir, pediu a Sandra. Carla já mostrava cansaço. Voltaram para a mesa. Sandra olhava o celular passando foto para cá e para lá. Carla com semblante apreensão. Enquanto uma tomava coragem para falar, a outra ofereceu o celular. Pediu para escolher uma foto dentre as duas que supostamente ficaram boas. Carla não queria fazer aquilo. Mesmo assim, foi simpática. Analisou uma e depois a outra. Preferiu a segunda, na qual estava com um sorriso mais natural, além de não parecer tão rechonchuda quanto na primeira. Sandra fez uma exclamação de alegria. Ia publicar finalmente a foto. Enquanto a amiga mexia minuciosamente no celular, a outra se preparava para finalmente falar. Recolheu fôlego como quem toma coragem e, quando ia começar, Sandra voltar a interrompê-la. Mudou de ideia. Elas nunca foram de cerveja. Não fazia o sentido para ela uma foto com as duas próximas a uma enorme geladeira com cervejas. A foto deveria ser com as duas brindando os seus tradicionais e saudosistas cosmopolitans. A pobre da Carla (sem ofender a situação financeira dela) estava mais uma vez sendo obrigada a postergar por alguns minutos o que pretendia fazer. Sentaram-se novamente lado a lado, pegaram seus drinques, montaram o sorriso e seguraram posição. Seis fotos. Uma vai prestar, brincou a Sandra. Dessa vez, a Carla sequer voltou a seu lugar. Preferiu permanecer ao lado de Sandra analisando as fotos. Tinha entendido que era um mal necessário e que participar talvez tornasse as coisas mais fáceis. Gastaram um bom tempo decidindo a melhor das fotos. Uma foi descartada porque a Sandra parecia que estava sem um dente. Era sombra, concluiu a Carla. Sorrisos falsos, drinques cobrindo o rosto e falta de foco foram as desculpas para descartar outras até chegar à conclusão da vencedora. A foto que seria digna de registrar aquele encontro em que cada uma delas tinha planejado algo e apenas uma delas conseguira êxito até então, a Sandra e sua procrastinação. Ao menos, com a escolha da foto, Carla teria a oportunidade de falar, pois sua amiga ficaria quieta publicando a foto. Enganou-se. Chegaram os minis hambúrgueres. Sandra colocou o celular de lado e atacou um deles. Ao mesmo tempo começou a fazer comentários sobre a suculência e a harmonização dos ingredientes. Carla percebeu que não teria a deixa que precisava, deixou então para depois. Preferiu comer e ficar trocando elogios sobre os pequenos sanduíches. Voltou-se então para o seu lugar.
Finalmente encerrado os hambúrgueres, Carla não sabia mais como conduzir a situação. Ela sentia a necessidade de colocar o assunto na mesa e ao mesmo tempo achava que não cabia mais ao momento. Provavelmente iriam beber os drinques que chegaram junto com os sanduíches e depois pediriam a conta. Era uma situação bastante delicada que ela não queria estar passando, mas se fazia necessária. Durante esse tempo de reflexão, e quem sabe agonia, de Carla, Sandra continuava alheia aos evidentes sinais de que a amiga lhe passava a cada instante. De forma silenciosa, Carla praticamente gritava pela atenção de Sandra que permanecia passiva àquilo tudo. Para piorar, contudo sem o conhecimento da amiga, Sandra estava fazendo tudo intencionalmente. A situação beirava a um jogo mental em que, em algum momento, alguém sucumbiria entregando os pontos. Carla não podia permitir isso Não, ela não podia sair de lá com a situação sem estar finalizada. Provavelmente, caso acontecesse, ela voltaria arrasada para casa. Coragem não era mais necessário. Carla precisava também se impor à mesa. Ela tinha de tomar a conversa para si e conduzir de acordo com o que pretendia. Era necessário que ela repetisse exatamente o que ensaiou algumas vezes na frente do espelho e outras durante o banho.
- Então, amiga – Carla iniciou a sua fala, mas foi com um tom passivo, o que permitiu que Sandra a interrompesse.
- Então – Sandra mostrou o celular para a amiga. – Precisamos escolher a legenda da foto.
- Ah, Sandra. Por favor... – Carla disse de forma passiva e foi novamente interrompida pela Sandra.
- Sem A, Nem Be. Pode matutando alguma coisa. Estava pensando em algo como “A irmã que meus pais não me deram”. O que acha?
- Meio forçado, né?
- Pode ser – Sandra fez uma pausa para refletir. – Ao menos vai ficar fofo. Dá uma ideia então.
- Não sei, Sandra. A minha cabeça está zonza de tão ocupada com outra coisa.
- Outra coisa? – Sandra percebeu que estava escorregando em uma casca de banana da Carla e se fez de desentendida. – Pare de bobagem. Estamos aqui para nos divertir. Sem esse negócio de trazer problemas do dia-a-dia para cá hoje. Que tal “E lá se vão quinze anos de amizade”?
- Lá se vão? Parece que eu morri e acabou.
- Ai, que horror, Carla – Sandra riu um pouco. – Tem razão. Não faz muito sentido. Vou colocar então “Da faculdade para a vida”.
- Que tal colocar “A amiga que pode sempre contar comigo”?
Sandra não sentiu apenas uma alfinetada, mas uma espada atravessando seu peito. Instalou-se um clima tenso na mesa. Carla esperava que Sandra reagisse de tal maneira que permitisse que continuasse com o que pretendia. Sandra, por sua parte, se fez de rogada e aproveitou a deixa para fechar a cara não dando margem à Carla para prosseguir. Aproveitando ainda o clima na bom, Sandra pediu a conta. Quando o garçom chegou com a bendita, Sandra deu um único gole final no seu drinque, deixou o dinheiro na conta, disse para o garçom ficar com o troco e se levantou. Em seguida, armou um falso sorriso e se despediu de Carla dizendo que desta vez a conta ficaria por sua conta. A amiga não queria aceitar de jeito algum. Marque uma próxima para ser a sua vez de pagar, disse a Sandra que saiu apressadamente.
Na beira da calçada, à espera de um táxi qualquer, Sandra foi surpreendida por Carla. Ela queria se desculpar. Disse que precisava muito conversar algo com ela, mas que não teve a oportunidade naquela noite. Depois, agradeceu, pois acreditava que acabaria estragando a noite criando uma situação embaraçosa desnecessária. Sandra disse que entendia e, com a maior cara deslavada, falou ela era uma grande amiga e, por isso, não precisava ficar de melindres. Carla fez uma mea culpa. Por fim, Carla tirou um envelope da bolsa. Explicou que já imaginava que talvez não conseguiria falar e decidiu então ter uma segunda opção, uma carta explicando tudo. Pediu para a amiga ler em casa com calma e que, caso achasse que deveria, entrasse em contato com ela. Sandra consentiu, pegou a carta, deu dois beijinhos na Carla seguidos de um longo abraço e entrou no táxi.
Já em casa, enquanto tomava banho, Sandra foi interrompida pelo marido. Ele perguntou como tinha sido o tal encontro. Antes de sair, Sandra tinha contado o que esperava e como pretendia se comportar. Sandra então respondeu ao marido contando detalhe por detalhe. O marido se divertiu bastante com a cara-de-pau da esposa. Quando terminou o banho, Sandra também terminou a história e o marido fez uma piada:
- Sacanagem, amor. A mulher está toda complicada com grana e você ainda a leva num bar caro para beber drinques acompanhados de sanduíches sofisticados?
- Minis sanduíches!
- Que seja – o marido riu da ponderação da esposa. – Você só aumentou a dívida dela.
- Que nada! Eu paguei a conta toda.
- A conta toda? SANDRA! Quanto deu essa brincadeira?
- Pouco mais de duzentos.
- Ah Sandra – o marido se interrompeu para coçar a cabeça. – Resolveu fazer caridade?
- Meu bem, quanto você acha que ela ia pedir emprestado? Eu imagino uns mil. Por baixo, uns oitocentos. Gastei duzentos, entretive a Carla à noite toda e fiquei livre de um prejuízo maior.
- Até parece. E a carta?
- Ah, nem li e nem vou ler para não ficar com remorso. Fiz o que podia.
- Posso ler?
- Pode! Pega lá na bolsa.
O marido de Sandra foi até a sala, pegou a carta na bolsa e voltou para a porta do banheiro. Enquanto Sandra secava as pernas apoiando um pé por vez na privada, o marido recostado na porta lia a carta. Seu semblante era péssimo. Quando terminou, ao ser perguntado pela esposa se era tão ruim assim, ele respondeu que ela não iria querer saber. Foi embora, rasgou a carta e a jogou fora.
Naquela noite, certa de que fez a ação certa, Sandra dormiu com a consciência limpa. Já o marido, ficou a noite toda acordado. Era difícil pegar no sono com a certeza de que a amiga da esposa sabe que ele está a traindo com a fisioterapeuta.

Próximo conto da coleção em breve

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O fabuloso imaginário do absurdo

Conto anterior da coleção: Projeto Brasil YYY

217 dias
Com passos pesados e arrastados, Gerson subiu as escadas do seu prédio que não tinha elevador. Ele morava no último andar, na cobertura, onde era o apartamento do zelador que o alugou para fazer uma grana extra. Ao entrar em casa, foi recebido por um ar carregado que já impregnava a casa há dias e por algumas cartas ao chão que foram passadas por deixado da porta. Mesmo sabendo do que se tratava, ele se abaixou para pegá-las. Avisos de cobranças, ameaças de corte de serviço e novas faturas que igualmente às demais não seriam cumpridas. Era o fechamento com chave-de-ouro de um dia de merda. Passou dez horas na rua à procura de emprego e o máximo que conseguiu foi gastar o final de sola do seu sapato velho que tinha sido presente de três natais atrás. Entrou no banheiro, lavou as mãos e o rosto, apoiou-se na bancada e fitou o próprio rosto no espelho. Estava mais envelhecido do que nunca. Sua aparência era péssima. Gerson era o símbolo da derrota em pessoa. Ninguém daria uma chance para aquele homem. Pensou em ligar para os seus filhos, mas sabia que a ex-esposa não o atenderia. Depois esboçou um sorriso. Não tinha créditos no celular mesmo e o telefone da casa ainda fora cortado. Olhou-se no espelho mais uma vez e em voz alta disse para si que era suficiente. Estava na hora. Entrou no box, pegou a ponta da gravata e a amarrou bem firme no cano do chuveiro. Olhou pela última vez para uma saboneteira escurecida por musgo com quem se despede do pouco que tem e soltou o corpo deixando-o desabar.
Um início de cheiro de cigarro entrou no nariz de Gerson provocando incômodo. Ele acordou. O banheiro estava escuro e o cheiro de cigarro era forte. Instintivamente, ele se levantou e, ao sair do box, se deparou com um homem de pé à porta do banheiro fumando. Ele vestia um alinhado terno negro, com camisa cinza escuro e uma bela gravata escarlate. Não era possível ver seu rosto, pois pendia sua cabeça para frente e assim o deixava encoberto pelo impecável chapéu negro que usava. Gerson ficou parado e calado olhando o homem que calmamente levava o cigarro à boca, tragava e depois soltava seguidas baforadas pequenas. O silêncio permaneceu por alguns minutos até que Gerson o quebrou:
- Você é quem eu estou pensando?
- Sim.
- Como sabe em quem estou pensando?
- Porque sou quem está pensando, logo sei o que está pensando.
- Você veio me buscar?
- Eu não busco pessoas, Gerson. Eu castigo pessoas.
- Você vai me provocar dor e sofrimento então?
- Não, eu já passei dessa fase de sadismo gratuito. Isso perdeu a graça depois que lançaram 50 Tons de Cinza. Agora uso a vulnerabilidade de vocês a meu favor. Facilitando para você, porque não tenho o dia todo, coloco vocês para trabalharem para mim.
- E o que você... – Gerson iniciava a pergunta quando foi cortado pelo homem.
- Veja bem, eu não tenho tempo de sobra, então vou agilizar tudo por aqui. Você em vida cometeu 217 pecados. Foram 217 pecados. Foram 217 atitudes condenáveis que você precisa pagar agora para poder subir aos céus. Para cada pecado seu, você terá de viver um dia extra neste mundo. Contudo, você não é mais uma pessoa qualquer. Você morreu. Aliás, morreu nada! Se matou. Atitude dos fracos. Confesso que sou fã de vocês, pois são os mais fáceis de convencer. Enfim, são 217 dias vagando por este mundo, interagindo com pessoas que não desenvolverão mais laços com você. Inclusive, para elas, você nem terá mais esse rosto. Você estará vivo, mas não será você. Será outra pessoa completamente diferente, apenas com a mente que sempre teve. E nem é uma mente qualquer, né? É uma mente atordoada, não é, suicidinha?
- Então, resumindo, preciso apenas existir por mais 217 dias? Quero dizer, mais 5.208 horas iguais às minhas últimas, com a exceção de que não terei mais as obrigações mundanas de antes?
- Não é bem assim. Pode ser mais rápido, como pode ser mais demorado do que calculou. Aliás, estou impressionado com a sua habilidade. Enfim, o meu calendário funciona de maneira diferente. Para mim, o dia não acaba quando o relógio bate meia-noite. Não! O que determina um dia completo para mim, no seu caso, será quando você matar uma pessoa. Passados os 217 dias completos que me deve, sua alma poderá subir aos céus livre de todos os pecados e ficar em fim aliviada.
O homem virou-se de costas e foi embora. Gerson ficou parado no meio do banheiro ainda assimilando aquela gama de informações. Ele queria dar fim a tudo e o que acabou conseguindo foi iniciar uma considerável sequência de tarefas das quais duvidava ser capaz de efetuar.
Passado um tempo refletindo hipóteses e soluções, Gerson foi à cozinha, pegou algumas facas e um grande garfo, guardou todos na cintura da calça e seguiu escada abaixo. Chegando à rua, viu que era tarde da noite e poucas pessoas estavam pelas redondezas. Ele entrou numa rua deserta e viu uma mulher gorda que devia ter quase cinquenta anos andando só. Ela carregava várias sacolas de supermercado. Em passos pesados e com pouco ar, ela seguia rua acima como uma locomotiva cansada de viagem. Gerson apertou o passo se aproximando dela por trás. Segurou a faca pelo cabo e se posicionou melhor para enfiar no pescoço da fácil vítima. Não conseguiu. Tinha cometido 217 pecados em vida, mas não achava justo usar uma mulher inocente para pagar por um deles dentro de um conceito de justiça distorcido de uma entidade. Resolveu voltar para casa e se sentou no chão. Ficou sentado por muito tempo. Olhando o relógio na mesinha da sala calculou que permaneceu no mesmo local por uns dois dias ao menos. Não sentiu fome, nem sono. Percebeu que ficar ali parado, por mais que não resolvesse o seu problema, ao menos não criava novos.
- Você é muito burro – a voz do homem ressurgiu da cozinha junto com o cheiro do cigarro. – Existem maneiras mais inteligentes de quitar a sua dívida comigo sem entrar em dilemas morais. Ninguém lhe disse que seria fácil. A dificuldade vai se manifestar de duas maneiras distintas e cabe a você escolher com qual delas quer lidar. A dificuldade de saber que escolheu pessoas inocentes porque não ofereceram resistência é uma delas. Vai pesar na sua consciência hipócrita, mas pelo menos será prático. A outra é a dificuldade física que, ao escolher marginais, pessoas ruins e pecadores em um nível mais baixo que o seu, terá resistência, pois irão lutar e revidar até a última gota de vida, mas em contrapartida não pesarão na sua consciência. Qual vai escolher? A eternidade nas suas condições cedo ou tarde afetará seu senso crítico e escolher qualquer coisa será questão de tempo. Decida-se e ponha um fim nisso.
O homem foi embora deixando Gerson com a cabeça confusa. Ainda sentado no chão, Gerson provocava em sua cabeça uma luta ardilosa entre seus princípios e as ideias do homem. Ele refletiu por muito tempo enquanto esperava anoitecer mais uma vez. Quando a escuridão tomou a cidade, ele voltou à rua e foi em direção a uma parte do bairro que era bastante perigosa. Ficou andando sem direção e sem pressa até que foi abordado por um rapaz que lhe pediu a carteira. Era o que Gerson procurava. Sem hesitar, sacou uma das facas e partiu para cima do rapaz que não fugiu. Durante o combate, algumas de suas facas caíram e o rapaz pode pegar uma delas tornando a luta mais igual. Ao final, Gerson conseguiu matar o rapaz, mas o saldo era péssimo. Cortes e perfurações por várias partes do seu corpo. Enquanto avaliava o estrago, o cheiro de cigarro voltou ao ar.
- Parabéns – disse o homem chegando sorrateiramente por trás de Gerson. – Você conseguiu encerrar finalmente seu primeiro dia.
- Mas a que custo? Estou todo arrebentado!
- Não se preocupe. Você é diferenciado dos demais. Isso vai curar numa velocidade absurda. Em menos de quatro horas normais você estará inteiro e novo.
- QUATRO HORAS? Você tem ideia do quanto isso dói? É dor por todo o meu corpo. Eu não aguento quatro horas com essa dor. Você consegue imaginar o quanto está doendo?
- Não, não sei o quanto isso dói. Só sei que algumas pessoas não revidam, logo não devem causar todo esse sofrimento físico. Pense nisso com calma. Talvez uma dor na consciência por um curto tempo até a sua subida ao céu seja menos penosa que uma dor física por várias horas por 217 vezes. Ah, e não fique mal acostumado, pois não vou ficar aparecendo a cada dia completado. Assim eu espero.
O homem se foi mais uma vez e Gerson ficou mais confuso do que nunca. Já estava morto, o que fizesse naquele momento não seria mais considerado pecado, portanto teria acesso ao céu de qualquer forma. Talvez não fosse o momento de questionar as leis divinas e jogar de acordo com as regras. Se as condições permitiam maneiras de tornar tudo conveniente, por que não fazer?
Gerson então esperou o fim da madrugada e foi para o ponto final de uma linha de ônibus que iniciava pela manhã sempre lotada. Entrou com os trabalhadores ainda assonados e esperou o ônibus partir. No meio do caminho, sacou sua faca, atingiu um golpe bem dado no motorista e arrancou o seu corpo já inerte do banco. Assumindo o volante, sem dar chance aos passageiros que fugissem de dentro do ônibus, Gerson acelerou pela longa principal e, numa curva fechada, jogou o ônibus contra um enorme muro. Foi uma barbaridade.
- Estou impressionado, rapaz – a voz do homem e seu característico odor de cigarro despertaram Gerson que estava desacordado no box do seu banheiro. – Sessenta e seis mortos de uma tacada só. Está de parabéns!
- Ué, voltei ao meu banheiro?
- Aparentemente, você também morreu no acidente, então te trouxe de volta para cá.
- E cada um deles serviu como um dia completo?
- Sim, rapaz, cada morte no acidente serviu como um dia completo. Parece que você está finalmente entendendo como funciona.
Assim que o homem saiu, Gerson voltou para a rua em direção ao ponto final. Segundo seus cálculos, mais três ônibus daquele, ou dois um pouco mais cheios, e ele estará na paz eterna do céu. Chegando ao ponto, um policial estranhou aquele homem ansioso pela saída do ônibus. O policial então abordou o Gerson, fez a revista tradicional encontrando as facas e o prendeu.
Na prisão, Gerson foi colocado numa cela separada onde, na companhia de um senhorzinho preso por um pequeno furto, aguardava para ser transferido para uma das celas coletivas. Entendendo que não tinha o que perder e querendo ganhar tempo, ele aproveitou que seu companheiro de cela é uma pessoa frágil e partiu para cima dele. Golpeando a cabeça do senhorzinho contra as grades, Gerson conseguiu sucesso na sua ação. Somente bem depois que os guardas apareceram. Estupefato com o ocorrido, o diretor da penitenciária transferiu o Gerson para a solitária e o avisou que ficaria por lá por tempo indeterminado. Gerson se viu acuado. Ficar isolado naquelas condições atrapalhava seus planos. Constatando que sua caminhada rumo ao céu estava emperrada, ele entrou em desespero e enxergou apenas uma solução. Improvisando suas calças como uma corda, ele se matou enforcado.
- Mas é um suicidazinho por natureza mesmo – a voz do homem surgiu com seu tradicional cheiro de cigarro.
- Era a única solução que... Ei! Por que ainda estou aqui? Não deveria acordar no meu banheiro?
- Você que se meteu nesse problema. Agora você que se vire sozinho.
- Peraí! Eu preso aqui não é benefício algum para nenhum de nós dois. Só vai emperrar meus planos e ocupar seu tempo comigo.
- Se vira – disse o homem antes de ir embora atravessando o robusto portão maciço de ferro.
Gerson voltou a entrar em pânico. Aquilo era inadmissível para ele. Algo precisava ser feito. A única maneira naquele momento de tentar ajustar o placar a seu favor seria atacando os guardas quando entregassem as refeições. Todavia, com ou sem sucesso, isso só prolongaria mais ainda seu tempo pela solitária, comprometendo cada vez mais sua ascensão ao céu. Não se esquecendo de que após o primeiro incidente, eles teriam mais cautela com o Gerson tornando quase impossível um novo ataque. Sim, algo precisava ser feito e Gerson possuía limitações de ideias à sua disposição. Recorreu às calças como corda novamente.
- Além de suicidazinho, é um teimoso – disse o homem ressurgindo na escuridão.
- Onde estou? Ah, obrigado! Nunca fiquei tão feliz em voltar para o meu banheiro.
- É, mas não vai se acostumando. Foi desta vez apenas porque estava em uma sinuca de bico...
Gerson dessa vez nem esperou o homem terminar de falar e sair. Ele mesmo partiu em disparada agradecendo mais uma vez e depois se despedindo. Gerson foi correndo a uma conhecida loja de utensílios de construção na região que algumas pessoas sabiam que vendia armas ilegalmente nos fundos. Chegando lá, disse claramente suas intenções e um atendente o levou para os fundos. A loja estava quase fechando e só estava o tal atendente por lá. Gerson se desculpou e, antes que o atendente pudesse entender do que se tratava o pedido de desculpas, pulou com uma faca em cada mão na sua direção. Foi tudo muito rápido. Com o corpo do rapaz ainda quente estirado no chão, Gerson saiu com duas sacolas cheias de armas diretamente para casa. Somente uma coisa existia em sua mente, encerrar essa contagem o quanto antes.
Gerson estava mudado com tanta pressão por encerrar com tudo de vez. A influência do tal homem era evidente e crescente. Seu ar de depressivo e derrotado foi mudando para colérico e inconsequente. Não era mais um homem fracassado. As pessoas, ao se depararem com ele na rua, viam um homem claramente perigoso e instável. Imponente e decidido, Gerson voltou ao tal bairro perigoso em direção a uma conhecida boca-de-fumo. Os chamados soldados do tráfico, mesmo armados, foram surpreendidos por um homem louco com armas em mão atirando para todos os lados. O efeito surpresa foi favorável ao Gerson que não possuía uma mira muito boa, nem mesmo traquejo para o manuseio das armas. No primeiro minuto de tiros, confusos com o que acontecia, as vítimas foram alvos fáceis para o Gerson. Depois, o jogo mudou de cenário e começaram a revidar. Ao final, seis traficantes mortos, além do Gerson que foi alvejado.
- Boca-de-fumo com homens armados – disse a voz acompanhada pelo cheiro de cigarro acordando o Gerson. – Vou repetir. Boca-de-fumo com homens armados. Quando eu achava que você estava ficando esperto, você não dá um passo para trás regredindo. Você dá um pulo. Qual o seu problema, homem? O que você tinha em mente?
- As coisas não saíram como eu planejei... – Gerson foi interrompido pelo homem.
- Não saíram como planejou? O que tinha planejado? Seja honesto comigo, porque tudo que consigo imaginar era você morrendo logo cara.
- Minha expectativa era surpreender todos e não restar um sequer. Daí, sairia sem maiores problemas.
- Homem. Homem. Estou começando a achar que seu único talento é se matar. Qual a sua limitação cognitiva de entender que, procurando por pessoas ruins, elas revidarão dificultando o seu trabalho? Pare de se preocupar com consciência, inocência e pessoas boas. A morte é uma certeza que não tem para onde fugir. Imagine da seguinte forma. Você antecipando a morte de uma pessoa inocente, provavelmente ela terá menos tempo de vida, logo potencialmente terá cometido menos pecados. Fato que nos leva a concluir que ela precisará de menos tempo nessas condições que está agora. Veja que lindo! Você vai minimizar os problemas dessas pessoas no pós-morte. Facilite o seu lado, homem. Agilize as coisas. Você ainda tem 139 mortes pela frente. Ou dias, se prefere colocar dessa forma mais purista.
O homem se vai e mais uma vez Gerson fica confuso. A ordem do universo não podia ser algo tão equivocado como aquele homem dissera. Na cabeça de Gerson não fazia o menor sentido. Ele chegou a relembrar da vida real. De como as coisas eram de verdade. Sim, existiam loucos que aleatoriamente matavam pessoas. Pessoas más que só traziam maldade. Estaria então explicado de onde elas surgem e suas motivações? Sim, talvez estivesse. Só que na matemática a conta não fechava. Muitas pessoas precisariam pagar por seus pecados após morrer e, por isso, o número de pessoas más deveria ser proporcional a essa quantidade. Todavia, nem chegava perto. Será que poucas pessoas após morrer aceitavam o discurso que vale qualquer coisa para pegar os pecados? E se fossem poucas, o que as outras faziam? Aceitavam matar apenas as pessoas más? Ora, não existiam tantos relatos de justiceiros assim no mundo. Não, a conta não fechava. Para fazer sentido, era necessário entender que existia uma quantidade quase obscena de pessoas vagando por aí se negando a pagar pelos seus pecados naquelas condições. Bem, se fosse realmente isso, onde estariam? Não, as contas não fechavam.
- É isso! As contas não fecham – Gerson exclamou em voz alta.
O homem disse que Gerson precisava pagar por 217 pecados. Logo, pagaria com 217 dias ou 217 mortes, se assim preferisse falar. Antes de sair, o homem afirmou que ainda existia um débito de 139 mortes. Gerson, mesmo fracassado na vida profissional, sempre foi bom em matemática e em fazer contas rapidamente. Com esses valores, ele concluiu que o homem contabilizou 78 mortes. Foi ali que ele enxergou a sua brecha. Pelas suas contas, ele tinha matado um trombadinha na madrugada, sessenta e seis pessoas num ônibus, o idoso na cela e seis traficantes. Isso totalizava 74 pessoas. Faltavam quatro na contagem feita pelo homem. Esses mesmos quatro se referiam ao próprio Gerson que morrera quatro vezes durante esses processos. Isto é, qualquer morte valia, inclusive a própria. Gerson tinha sua solução. Bastava se matar mais 139 vezes. Contudo, tinha percebido que o homem nunca mencionara tal possibilidade, tampouco exposto a contagem. Portanto, precisava ser discreto quanto a isso. No início, foram pequenos suicídios leves com a desculpa de consultar o homem.
- Eu vou falar pela última vez – disse o homem em tom sério e intimidador. – Pare com isso! Está me irritando e você não quer me ver irritado. Se você tem mais alguma dúvida, que tire agora. Não aceitarei você ficar me invocando para perguntas tolas sobre poder encontrar as suas vítimas para fazer uma reunião de novos amigos de afazeres.
Gerson não inventou uma nova desculpa e o homem foi embora. A contagem, que agora era controlada minuciosamente por Gerson, tinha chegado em 93. Faltavam 124 ainda. Isto é, faltavam 124 maneiras criativas de se matar sem que o homem percebesse. A primeira já estava planejada e Gerson colocou em prática.
- Você é muito burro – falou o homem com seu inseparável cigarro acordando o Gerson mais uma vez. – O que você pensou desta vez? Por favor, seja sincero. Estou muito curioso em saber qual foi o seu plano mirabolante desta vez.
- A minha proposta era provocar uma briga generalizada numa torcida organizada e, assim, contabilizar várias vítimas ao final.
- Veja bem... – o próprio homem se interrompe para dar uma maior dramaticidade à sua fala. – Até faz sentido o seu plano. Faz mesmo. Preciso ser sincero. O problema foi você entrar no meio de uma torcida organizada com a camisa do time rival. Era óbvio que você seria espancado. Eles não tiveram dó de você mesmo. Preciso dar os parabéns a eles. Já a você... bem... a você só me resta rir. Sequer uma “mortezinha” junto da sua. O máximo que conseguiu foi machucar a mão dos que tanto te bateram. Eu vou embora para não rir na sua frente.
Lá estava Gerson só novamente no seu banheiro. Entretanto, o ambiente era completamente o oposto do que estava começando a se habituar. Se antes ele ficava cercado de agonia e indecisão sobre como resolver sua suposta evolução espiritual, agora ele estava aliviado e vendo as coisas andando a seu favor. A primeira simulação surtiu com sucesso. Só lhe restava prosseguir com o plano usando o máximo de imaginação possível.
- Não, não era uma ideia genial. Você é muito burro! Se jogar debaixo de um trem no intuito de provocar um descarrilamento é uma péssima ideia. Só uma mente confusa como a sua acharia que isso daria certo.
O roteiro seguia na maneira planejada. Gerson bolava as piores ideias para o tal homem, mas, na verdade, eram suicídios geniais. Ele pulou de um prédio querendo supostamente acertar uma massa de pessoas, porém, errou nos cálculo e caiu em cheio na marquise. Tentou roubar um tanque de um quartel e, obviamente como era esperado, foi alvejado nos primeiros passos. Apesar de muitas das suas ideias possuírem uma essência similar entre si, não se pode dizer que ele repetiu uma sequer.
- Como assim você engoliu gasolina e com um isqueiro tentou ser um dragão humano? Você não pode ser tão burro.
Não, Gerson não era burro. Seu fracasso profissional era culpa de sua baixa autoestima e falta de preparo. Todavia, nunca foi um cara burro. Era esperto até demais. Tanto que provou a si mesmo ao colocar em prática o mais louco plano na tentativa de se matar 139 vezes. E não eram 139 simples mortes. Eram 139 mortes diferentes e dissimuladas, por assim dizer. Em determinado momento, por mais estranho que isso possa soar, Gerson começou a achar divertida a brincadeira. As dores provocadas antes das mortes por pancadas e outros ferimentos nem o incomodava mais. Não seria surpresa se alguém visse Gerson com um baita sorriso estampado no rosto a caminho da sua suposta morte mais uma vez. A cada nova morte estapafúrdia, mais próximo da ascensão ele se encontrava. Por isso, era um momento de regozijo. Gerson poderia finalmente elevar sua alma.
- Você por aqui? – perguntou o Gerson espantado com a presença do homem no seu banheiro. – Tem tempo que não aparece para me receber. O que houve?
- Eu percebi o que estava fazendo. Eu sabia desde o início. Não se esqueça de quem eu sou e do que sou capaz de fazer.
- Isto significa que estou encrencado?
- Não, eu não vim para isso. Estou aqui para dizer que resta apenas uma um dia. Mais uma única morte e estará tudo encerrado.
- Então eu consegui?
- Sim, podemos dizer que conseguiu.
- Posso então encerrar de qualquer forma essa última?
- Não!
- Não?
- Não! Eu que irei fazer isso. A última será minha. Está pronto?
- Estou. – Gerson então mudou de ideia rapidamente e se interrompeu. – Espera! Quero lhe fazer uma pergunta.
- Pois faça.
- Tentei entender como as coisas funcionavam. Onde estavam todas as outras pessoas que morreram e precisavam pagar pelos seus pecados. O que elas decidiam fazer?
- Isso que você passou não serve para todos. É algo que só é feito aos suicidas. A proposta é testar até que ponto você consegue recuperar a sua humanidade que foi perdida ao ponto de dar cabo pela própria vida. Você precisou de pouco tempo para se sentir desconfortável com o que lhe foi oferecido e, no intuito de ser uma pessoa melhor, encontrou a uma solução razoável. Posso prosseguir?
O homem fez apenas um gesto com a mão à distância na direção de Gerson que apagou. Um tempo depois, Gerson acordou novamente em seu box sentado no chão e, por isso, nada entendeu. Tateou o corpo e estava vivo. Mais vivo do que nunca. Ele não tinha morrido. Sua primeira tentativa de se matar falhara. Ele caiu no chão e, com o impacto, desmaiou. Foi tudo um sonho. Foi um aviso. Foi um grande aprendizado e ele assimilou direito. Nunca mais ficaria para baixo. Lutaria até o fim pelo sua vida e o sucesso dela. A partir daquele momento, um novo homem surgiu. Confiante, determinado e otimista.
Gerson então se levantou e sentiu um peso. Na ponta da sua gravata estava amarrado o chuveiro. O cano não tinha aguentado seu peso e se rompeu, foi assim que ele caiu e desmaiou. Com o chuveiro e parte do cano em mãos, Gerson de frente para o espelhou quebrou a sua promessa de nova vida e se lamentou pela primeira vez:
- Droga! O proprietário vai descontar isso no meu aluguel.

Próximo capítulo da coleção: Neguinha

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Confraternização

Capítulo anterior: Enfim, primeiro encontro

Não eram nem dez da manhã quando o barulho da porta se abrindo me acordou. Imaginei quer seria a Marlene, então nem me dei ao trabalho de levantar da cama, tampouco de abrir os olhos. Voltei para o fim de sono que antecedia à ressaca e fui acordado com um grito:
- VAMBORA , HOMEM! LEVANTA ESSE CU DA CAMA!
Marlene jamais me acordaria assim. Tinha de ser a desgraçada da Tatiana. Parada na porta do meu quarto com duas mochilas, uma nas costas e outra no chão ao lado da sua perna. Ela tem essa mania de andar de mochila para todos os lados. E nunca é uma mochila parcialmente cheia. Não! É sempre uma mochila abarrotada de coisas quase estourando o zíper. Sua desculpa é que, como fica revezando em três endereços diferentes, precisa andar com algumas coisas sempre à mão. Ah, para o inferno com esta desculpa, né? Basta deixar um kit básico em cada um dos três endereços, se planejar melhor e então andaria com o mínimo. O fato é que ela tem sangue de muambeira mesmo. Daquelas que cruzam a fronteira do Paraguai com bolsas enormes cheias de tranqueiras. Enfim, desta vez eram duas e isto não é um bom sinal.
- Porra, sua imbecil. Odeio que me acordem gritando. Odeio levar susto.
- Ah tadinho! Queria o quê? Cafuné? Uma massagem com final feliz? Uma dedada?
- Até que uma dedada cairia bem agora.
- O QUÊ?
- Viu como é bom levar susto logo pela manhã? Larga de ser imbecil e faz algo de útil na vida. Coloca a roupa que está amontoada no sofá na máquina de lavar e aperte o botão iniciar, por favor.
- Por que deveria fazer isso?
- Por que você está aqui?
- Porque preciso de um favor.
Daí fiquei parado sério olhando para Tatiana e ela fez o mesmo para mim. Ela levantou as sobrancelhas, eu repeti o gesto. Ela deu uma ligeira esbugalhada nos olhos, fiz o mesmo. Ela jogou a cabeça um pouco para frente, eu a imitei cinco vezes. Voltamos a ficar parados nos encarando até ela interromper dando sinal de que captou a sutileza da coisa. Ela foi até lá para um favor, eu precisava de um favor.
- Tá! Já entendi, seu explorador.
Enquanto Tatiana fazia o que tinha pedido, levantei-me aos poucos e fui ao banheiro. Se existe uma coisa que é sagrada para um homem é a primeira mijada do dia. Não somente pelo alívio, mas por ser um jato respeitável seguido de toda a flatulência acumulada por uma noite inteira de sono. Sei que isso é meio escatológico, mas não deixa de ser verdade. Pode perguntar a qualquer homem. Terminada a sinfonia solo de um trompete enferrujado e o esvaziamento da bexiga, voltei para o quarto. Tatiana já estava acabando de colocar as roupas na máquina. Peguei o celular, não tinha mensagens recebidas. Olhei os históricos de conversas durante a noite, nada constrangedor. Lista de chamadas feitas e recebidas estava imaculada. Aparentemente foi uma noite de poucos estragos.
- Pronto – disse Tatiana entrando no quarto e jogando uma das mochilas na cama. – Preciso da sua ajuda. Tenho uma festa hoje e quero sua opinião sobre qual vestido usar.
- É, a tal dedada agora soa bem mais interessante.
Ela riu e disse que não tinha escapatória. Em seguida, pediu que me ajeitasse na cama para poder espalhar os vestidos. E não eram poucos. Não parava de sair vestido daquela mochila, era quase como palhaços saindo de um Fusca. Ao final, minha cama parecia uma feirinha de estacionamento de supermercado. Ela foi então ao banheiro com um em mãos.
- Que tal?
Ela me perguntou um minuto depois ao sair do banheiro com um vestido de cor azul meio que escuro, puxando para o roxo. O tom flertava um pouco com metálico e tinha umas alças finas no ombro.
- Você está parecendo um presente da Roberto Simões.
- O que é isso?
- Sua pobre, é uma loja cara de presentes para casa.
- Ah, então isso é bom!
- Se você quiser ser um cinzeiro pretensioso que nunca será usado por pena de sujá-lo, sim.
- Hum, acho que quero ser usada. E muito!
Ela voltou rindo para o banheiro com outro vestido em mãos. Mais um minuto e lá estava Tatiana com um vestido de cor meio indefinida. Algo verde, com azul e amarelo. Tudo misturado parecendo que foi mergulhado em água sanitária. Não bastante, por cima dele tinha um tecido tipo tela com furos bem finos.
- Céus, você está parecendo uma Sininho de peça infantil de baixa renda.
- Ah para! Ele é levinho!
- Ótimo! Use-o quando precisar se pesar vestida.
Lá se foi Tatiana resmungando para o banheiro mais uma vez. Agora era um conjunto composto por uma saia preta e blusa branca de bolinhas pretas com uma gola bem grande. Ela saiu do banheiro e parou com a mão na cintura.
- É festa à fantasia?
- Não!
- Então não use. Parece secretária de filme cafona da década de sessenta. Coloque um laçarote no pescoço e virará a Lucy.
- Quem é Lucy?
- Lucy do seriado I Love Lucy.
- Você é um hétero com umas referências muito estranhas.
- A começar pelas amigas que querem que dê palpites de roupas.
Ela riu concordando e voltou para o banheiro. Mais outro minuto e já estava com um vestido estampado de manchas que mudava a cor do fundo em diversas partes. Algo como uma união de retalhos de tecidos com estampas iguais, mas com cores distintas no fundo.
- Você está igual a um chão de alfaiataria.
- Jura?
- Claro! Olha esse monte de cores de maneira caótica.
- Eu gosto tanto desta estampa.
- Parece um cu de jaguatirica.
- É fofo!
- Ok, um cu fofo de jaguatirica.
Ela resmungou alguma coisa antes de entrar no banheiro. Retornou em seguida com um vestido mais comprido que os demais. Ele também era estampado, mas com referências tropicais, lembrando praia, flores, sol, entre outras coisas. Era o mais alegre de todos.
- É em um cruzeiro?
- Não!
- Que bom. Porque se fosse, iriam te confundir com uma cortina e provavelmente um marinheiro bêbado limparia o pau em você.
Segue Tatiana para o banheiro com a última peça, finalmente. Confesso que estava me divertindo, mas precisava também tirar o rabo do quarto e ver um pouco de luz natural. Nisso ela voltou com um vestido tubinho preto colado ao corpo, modelo tomara que caia e muito curto.
- Você está parecendo uma puta.
- Isso é bom?
- Depende do preço.
- Ah me ajuda – ela quase suplicou balançando os braços e se mexendo para os lados.
- Isso! Mais um pouco e coloco uma nota de dez no seu decote.
- Porra! Dez?
- Meu vale-alimentação está zerado.
Depois de um breve esporro sobre não estar ajudando, ela foi enfática ao dizer que eu precisava escolher uma das opções disponíveis, pois iria se arrumar na minha casa. Perguntei então como era o evento para poder melhor balizar minha decisão.
- É uma festa e ponto final.
- Assim fica complicado de te ajudar.
- Faz diferença que tipo de festa é?
- Dependendo do seu objetivo, sim.
- Vai ter um carinha que estamos flertando tem um tempo.
- Então o preto sem dúvida alguma.
- Ah, mas você não gostou de nenhum. Deve ser o menos pior.
- E isso faz alguma diferença? Logo a opinião de um bêbado que não tem gosto nem para o que vai beber. O cara cujo pré-requisito para beber é estar líquido.
- Não importa. Estamos falando de roupa.
- Pior ainda. Onde que vale a opinião do cara que só veste jeans e camisas pretas?
- Para mim vale.
- Se te consola, te comeria com qualquer um deles.
- Jura?
- Juro, mas precisaria estar muito bêbado para tomar coragem e puxar assunto com você.
Ela se sentou na beirada da cama para não amassar os outros vestidos e com a mão sobre os joelhos lamentou aquilo tudo. Não era apenas implicância desta vez, as opções eram todas umas merdas. Só que não faria a burrice de falar isso, ou entraria em um vórtice sobre gosto e moda. Decido por matar de vez com aquilo, me levantei e anunciei que iria à padaria tomar café. Ela disse que não queria e iria ficar. Saí então do quarto quando ela pediu o que temia:
- Vai ao shopping comigo então?
- Mas nem a pau – gritei da sala enquanto abria a porta da rua.
- Você vai me deixar sozinha aqui sem ter o que fazer?
- Toque uma siririca!
- Eu estou triste porra!
- Toque com a berinjela que está na geladeira enfiada na bunda. Vai te animar.
- Isso ofende!
- Se te reconforta, a berinjela ouviu isso e também ficou ofendida.
Fechei a porta e saí. Ela veio atrás me pedindo por ajuda. Para não correr o risco de prolongar mais aquilo, voltei. Sentados na minha cama debatemos por um bom tempo sobre a melhor roupa a ser usada. Por mim, manteria a opinião sobre o vestido preto. Era suficientemente vulgar para o tal carinha ficar interessado nela. Entretanto, para ela, eu deveria considerar outro ponto em questão.
- É que vou me encontrar com ele em um evento da empresa.
Confraternizações de final de ano de empresas são sempre um terreno ardiloso. As pessoas se esquecem de que ainda estão em ambiente profissional e, com a ajuda do álcool, se comportam de forma mais inapropriada possível. Falam o que não deve. Fazem brincadeiras com quem não tem tanta intimidade assim. Sem entrar no mérito dos desmaios, vômitos, tombos e trepadas no banheiro. Acreditem, acontece, não é lenda urbana.
- Baby, a roupa não está tão contida como deveria para uma festa da empresa. Mesmo assim, é condizente com a sua idade. Se fosse uma gerente de quase quarenta anos, diria que estaria para bancar uma periguete. Acho que dá para manter assim. É Open Bar?
- É, tudo liberado! Eles fecharam o segundo andar de um restaurante na Lagoa. Vai ter banda e tudo.
- Poxa, baby. Não rola convite para parentes? Tipo... amigos bêbados?
- Eu até cogitei te chamar, mas você anda nessa fase agarrado à Juliana. É Juliana para cá. Juliana para lá. Só dá ela na sua vida. Tem duas semanas que não nos falamos.
- Era só me mandar mensagem, ora.
- E iria responder? Você não larga essa menina. Estou até começando a desgostar dela.
- De onde tirou que estou agarrado o tempo todo com ela? Não é assim, não!
- Como não? Nem foi ao Natal da sua família para ficar com a dela.
- Eu? Quem te falou... Ah tá! Falou com a minha mãe, né?
- Sim! Liguei para sua mãe para desejar feliz Natal para ela e, papo vai, papo vem, ela meio que se lamentou comigo. Ela até está feliz por você estar namorando sério outra pessoa. Ela entende como uma tentativa sua de colocar as coisas nos rumos certos. Mesmo assim, ela ficou chateada, né? Com toda razão, baby. Deixar de passar um dia do Natal com seus pais porque estava com a família da nova namoradinha? Dava para administrar melhor isso aí. Passava a noite do dia 24 com uma família e o dia 25 com a outra. Agora faltam dois dias para o réveillon e você nem deu um beijo de Natal nos seus pais.
Apesar do tom ameno, senti um leve esporro no discurso de Tatiana. Ela tinha razão. Mesmo iludida por uma versão mentirosa. Não, não tinha ido passar o Natal com meus pais, entretanto Juliana não foi o motivo. A verdade é que estava sem saco para aturar família. Digo família no sentido coletivo. Pais, tios, primos, enteados, ajuntados e terceiros desgarrados de suas verdadeiras famílias. Em condições normais de temperatura e pressão, esses eventos já são uma tortura. Ninguém bebe no meu ritmo e ainda me condenam por isso. Não bastante, me ignoram por completo na hora de estruturar o evento. Leia-se, compram pouca bebida. De quebra, eles insistem naquelas conversas chatas as quais respostas monossilábicas se tornam desperdício de saliva. Mesmo assim, não era uma situação em condições normais. Estava recém-divorciado da Maria Fernanda. Era certo que seria fuzilado por perguntas que agrediriam o bom senso por estarem tão além da barreira do limite da intromissão na vida privada de alguém. Obviamente, esses questionamentos seriam feitos repetidamente por parentes diferentes, em momentos distintos, em pontos isolados da festa. Não responder a qualquer um deles seria considerado uma afronta à instituição. Para a família, casamento era um acordo social e a dissolução dele deveria ser feita oficialmente em um evento coletivo. Membro a membro da família deveria ser notificado da fatalidade, eles insistem em classificar assim. Como se não fosse suficiente, escutaria ainda sermões, indiretas, conselhos e pedidos de mãos juntas para repensar a vida. A bebida seria usada como culpada em dosagens inversamente proporcionais às dosagens que consumiria no evento. Não, obrigado. Não queria ir.
- Ah baby, não acredito que tenha feito isso com sua mãe. Você está falando isso só para me provocar, né?
- Não, não estou. Eu juro. Não estava no clima e inventei a história da Juliana para que não tivesse de ouvir as lamentações da minha mãe.
- Não! Não! Eu aceito seu mau humor matinal. Lido de boa com as suas grosserias gratuitas para não demonstrar afeto por mim. Aturo qualquer coisa torta que você faz, mas isso não. Se você não ligar agora para a sua mãe e contar a verdade, eu irei.
Tatiana é indiscutível uma pessoa de bom coração. Preciso reconhecer também a sua tolerância com a minha personalidade de merda. Só que tem vezes que ela é tão burra quanto um tamanco velho. Tentar me recriminar pelo que fiz, seja uma atitude condenável ou não, só iria prolongar uma discussão a qual meu prazer mórbido perpetuaria até reverter os papéis e fazê-la se sentir mal por ter iniciado. Sem falar na hipótese de trazer minha mãe à conversa. Acabaria colocando as duas como culpadas ao final.
- Tá, não vou discutir isso com você. Ela é sua mãe e se você acha que está certo o que fez com ela, quem sou eu para julgar, né?
- Exato!
- Mesmo assim, poderia ter passado com a Juliana ao menos para manter a veracidade da sua escrotidão.
- Ah, baby, ela ia passar com a família...
- E qual o problema? – Juliana me interrompeu.
- Você prestou atenção nos motivos que me levaram a não querer passar o Natal com...
- Ah tá – Juliana me interrompeu novamente. – Tem razão. Foi mal. Puxa vida, achava que vocês estavam em uma espécie de lua-de-mel.
- Sim e não ao mesmo tempo.
- Como assim?
Apesar de um breve início turbulento, ou confuso, as coisas com a Juliana eram meio que monótona. Ela ia lá para casa, bebíamos alguma coisa, transávamos, dormíamos e, no dia seguinte, ela ia embora. Em partes, era como o início de uma vida de casado. Exceto pelo fato de que não acontecia todos os dias. Não suficiente, aos finais de semana, quando tínhamos a opção de sair e fazer um programa diferente, a primeira opção dela era ficar em casa. Quando a convencia a sair, ela optava por algo discreto com apenas nós dois. No fundo, me senti como um amante. Não sei se ela tinha vergonha por sair com um cara mais velho ou de mim mesmo. Aquilo estava me incomodando de verdade a um ponto de me fazer esquecer o que sentia por ela.
- Que chato mesmo. Colocava muita fé em vocês dois.
- Você não era a única. Eu também. Bem, vamos ver se é só questão de conversar com ela e achar um ponto em comum.
- Sim! Sabe o que acho? Ela pode estar sentindo um pouco de pressão. Você é um cara mais velho, tem personalidade forte e era o professor dela. Você acha que ela está coagida?
- Coagida?
- Não é bem coagida o termo que quero. A palavra me falta agora. Tipo quando vocês dizem que a camisa pesa no jogador. Ah, esquece! Pensa nisso. Vai ver ela acha que isso pode ser demais para ela e está pouco à vontade com você.
Eu entendi o que a Tatiana quis dizer. Não acho que faça sentido. Ao menos seria uma gota de esperança para mim, pois, até o momento, a expectativa de que o relacionamento com a Juliana saia do outro lado é bem baixa. Claro que cogito ter uma parcela de culpa na situação em que estávamos. Aceitava passivamente as sugestões dela. Aliás, ficava tão bobo com ela que a tal personalidade forte que Tatiana falou sumia. É até curioso constatar isso. Juliana se sentia intimidada por estar com um cara mais velho que, perto dela, agia como um garoto mais novo.
- Então não irão se ver hoje?
- Quarta-feira é sempre um dia ruim para ela.
- Quer ir à festa? Posso ver se te coloco para dentro.
- Lembro bem que disse palavras mágicas como Open Bar para descrever a festa. Ora, por qual motivo não aceitaria?
- Você precisa se comportar.
- Ah, me ajuda!
- Prometa!
- Prometer o quê?
- Que vai se comportar!
- Isso é muito vago. Seja específica.
- Prometa que não vai encher a cara, não vai dar show, não vai me fazer passar vergonha, não vai assediar minhas colegas de trabalho ou colocar em risco meu emprego.
- Você sabe que jamais faria isso.
- Você está falando sobre prometer o que te pedi, né?
- Exato!
Tatiana, como era esperado, relutou até o quanto pode. Ao final, cedeu. Depois, precisou da mesma insistência que usei para convencê-la para fazer com que o colega do departamento de marketing autorizasse a minha entrada. Aparentemente, eu teria de assumir o papel de algum consultor que prestou serviço para a empresa naquele ano. Mediante ao que me esperava, assumia até o papel de esposo da Tatiana por mais vexaminoso que isso seria para a minha imagem.
- Eu consigo o que me pede e me trata assim?
- Como se você aceitasse fingir ser minha esposa.
- Eca!
Chegamos à festa pouco mais de uma hora e meia além do horário no convite. Forcei um atraso demorando no banho e me arrumando propositalmente. Não queria entrar em uma festa com pessoas desconhecidas ainda sóbrias. Estranhamente, minha estratégia não funcionou. Quando entramos, estavam todos sentados em suas mesas conversando de maneira contida. Dava pena ver a mesa do bufê quase vazia. Nada de funcionários se acotovelando para pegar logo comida e voltar para a mesa. Era possível refletir com calma o que iria pegar. Nada estava prestes a acabar. Olhei com espanto para Tatiana que me retornou um semblante blasé seguido da ordem para me comportar. Um garçom servindo cerveja interrompeu nosso momento mãe e filho. Antes que pudesse reagir ao que me era oferecido, Tatiana o dispensou alegando que primeiro íamos comer algo. Odeio quando ela faz coisas desse tipo. Qual o problema de beber uma dúzia de tulipas de cerveja para abrir o apetite?
- Coma algo ou digo para a segurança que você é penetra. Vou ali falar com meu chefe e quando voltar quero ver o neném com um pratinho bem cheio, combinado?
De fato, não podia reclamar do bufê. E nem falo do fato de estar vazio e, assim, praticamente ao meu dispor. O pessoal da organização caprichou de verdade. Como era de se esperar, tinha aqueles cacarecos tradicionais. Uma diversificação de canapés que só servem para te dar sede e depois formar uma massa grudenta na boca. A tradicional galinha com rabo de abacaxi e corpo composto de palitos com ovos de codorna. Aliás, peguei uns quatro logo de início e os afoguei no molho rose. Acabei comendo só três, porque um dos ovos se soltou do palito e ficou submerso no molho. Para o inferno que iria resgatar aquele rebelde. Seguindo os clichês, um mar de pães massudos para rechear com rolinhos de queijo prato e presunto. Convenhamos, até para os meus padrões de bons modos, é constrangedor ficar em um bufê cortando pãozinho e enchendo de frios em rolos. Passei a diante. Pastas, patês e outras gororobas pálidas. Ia seguir em frente, mas uma espécie de tigela em formato de abóbora me chamou a atenção. Nela, continha queijo derretido borbulhante. Achei interessante. Peguei uma fatia de baguette dentre as várias já cortadas em uma cesta. Com uma faquinha que mais parecia um coletor de secreção para exames, passei o queijo derretido cobrindo por inteira uma das faces da fatia do pão. Assoprei. Dei uma mordida. Tinha tempo que não comia algo tão gostoso. Nunca fui bom identificando queijos, mas chutaria algo como um provolone misturado com outro tipo queijo de orçamento mais baixo para fazer volume com menos custo. Para incrementar, era possível identificar algo puxando para o doce que talvez fosse damasco ou uma geleia dissolvida naquela gosma suprema. A fatia que ainda tinha em mãos poderia ser saboreada em três ou quatro mordidas. Coloquei tudo na boca e, enquanto tentava manobrar aquela bomba calórica entre dentes e língua, voltei à cesta de pães para pegar mais duas fatias. Larguei a tal faquinha laboratorial e mergulhei as fatias a fundo na tigela. De lá, iam diretamente para a minha boca. A sensação era algo que sou totalmente incapaz de descrever sem usar metáforas sexuais. Terminada a segunda fatia adicional, peguei uma baguete inteira, que provavelmente estava por lá mais para decoração, e, com ela em mãos, dei a volta na mesa para melhor me posicionar junto à tigela. No meio do caminho, um garçom, provavelmente querendo ser prestativo, disse que eu poderia me servir em um prato e levar para a minha mesa. Eu não tinha mesa. Eu não queria sair dali e correr o risco do queijo esfriar. Eu queria enfiar a baguete inteira no molho e ir mordendo como se estivesse num festival particular de fondue para pessoas sem compostura à mesa. Tanto queria que fiz. Lá estava eu, mergulhando aquele pão enorme no queijo derretido. Pontinha por pontinha. Daí, mordiscava a parte com queijo para não desperdiçar pão à toa. Pontinha por pontinha. Tinha esquecido totalmente onde estava. Meu estado de êxtase era tamanho que ignorei tudo e todos ao meu redor. Nada me incomodava. Bem, nada me incomodou até entrar na segunda metade do pão.
- Senhor salvador Deus pai – Tatiana exclamava do outro lado da mesa do bufê. – Minha nossa senhora dos babadores, olha o seu estado.
Com a boca cheia, tentei perguntar o motivo do espanto. Obviamente, ela não entendeu e tudo que consegui foi, acidentalmente, ejetar um pedaço de pão em algum pote de patê. Meu estado era realmente lamentável e sequer tinha me atentado a isso. Vários pingos de queijo derretido tinham caído na minha camisa. Fiapos esticados de queijo pendurados pela minha barba. Uma boca envolta de mais queijo ainda como se fosse uma criança que tentou usar a maquiagem da mãe. A situação era constrangedora. Confesso que não sabia de onde saia tanto queijo. Ainda assim, Tatiana não precisava me constranger me dando um generoso monte de guardanapos enquanto cobria o próprio rosto. Ela disse que já voltava e, dessa vez, queria me encontrar em um estado apresentável. Fiquei meio que escondido atrás de uma decoração feita com frutas e lá gastei os guardanapos na tentativa de me deixar em condições de poder cruzar o salão rumo ao banheiro. A verdade é que ninguém me daria bola, mesmo se passasse pelo salão como estava antes. Inclusive se aproveitasse para fazer uma coreografia. Talvez até deveria me sentir triste por não ser capaz de atrair a atenção alheia, mas preferi deixar esse sentimento para o tecladista que sofridamente tentava criar um clima aprazível de início de festa que, igualmente a mim, era ignorado sem esforço. Saindo finalmente do banheiro, acabei me deparando com o simpático garçom que tentou me tirar da mesa.
- Muito gostoso aquele queijo, não, senhor?
- Acho que essa definição é pouca, mas, sim, vou concordar com você. Por mim ficaria ali a noite inteira.
- E por que não fica, senhor?
- Porque está na hora de se empanturrar de outra coisa. Sabe... álcool? É você quem serve?
- Tem garçom fixo para as bebidas, mas posso arrumar algo para o senhor. Algo em especial?
- O que vocês têm para servir?
- Tem cerveja que está sendo servida na jarra. Espumantes nas taças estão rodando também. Com menos frequência, mas tem.
- Nada destilado?
- O uísque ficou apenas para a diretoria. Tanto que apenas o maître tem acesso a ele.
- Puxa, que notícia ruim saber que apenas ele tem acesso ao uísque – lamentei enquanto sacava uma nota de cinquenta do bolso deixando bem à mostra para o garçom. – Adoraria uísque com queijo derretido no pão. Sabe como é, né? Misturar estilos. Sofisticado com o rústico. Quase um viking com sotaque britânico.
- Senhor, infelizmente, não tenho acesso ao uísque. Me desculpe.
- Eu te entendo, rapaz. Consegue outros destilados?
- Sim, posso providenciar batidas, drinques, qualquer outra coisa.
- Sabe fazer Cuba Libre?
- Claro, senhor. É algo bem simples, inclusive.
- Pois tome – entreguei a nota de cinquenta ao garçom. – Cuba Libre opressora à noite toda.
- O que seria Cuba Libre opressora, senhor?
- Quase nada de Coca-Cola, pouco gelo, uma rodela de limão e muito, mas muito, rum. A ideologia prevalece no copo.
- Perfeitamente, senhor. O senhor é engraçado.
- Outra coisa – segurei o garçom pelo braço enquanto se afastava. – Posso lhe pedir outro favor?
- A tigela de queijo derretido?
- Não tinha pensado nisso. Você é bom, rapaz! Bem, fica para mais tarde! Está vendo aquela menina baixinha?
- A que chegou com o senhor?
- Não repita isso em voz alta que dá azar.
- O senhor é engraçado.
- Que seja! Ela vai tentar regular o seu prestativo trabalho enquanto me traz as bebidas. Ignore-a. Preciso de um copo cheio na mão durante toda a noite.
- Pode deixar, senhor. Já volto com sua primeira dose de Cuba Libre oprimida.
- Opressora!
- Perdão, senhor! Opressora! Cubra Libre opressora.
E lá se foi o garçom. Tinha a ligeira impressão que iria adorar a dedicação daquele danado.

Próximo capítulo: Ressaca moral