Conto anterior da coleção: Barbearia à moda antiga
Amiga de verdade
Quando a Sandra viu no identificador
de chamadas quem estava lhe ligando percebeu na hora que coisa séria estava por
vir. Carla foi sua colega de faculdade na extinta Gama Filho. Viraram amigas
naquela época criando laços muito fortes. Depois da formatura, projetos
particulares, como família e trabalho, acabaram afastando uma da outra. Ainda
assim, mantinham contato esporádico por e-mail. Permanecia viva entre as duas
uma forte ligação de afinidade. Carla ligar para Sandra era sinal de que
precisava falar algo com urgência. De fato, era.
Durante o fim do seu casamento, Carla
se viu numa sequência interminável de frustrações. A primeira foi com o próprio
ex-marido que se mostrou um canalha. Ela a traiu com a professora de
hidroginástica da academia. Naquele mesmo dia, por conta do adultério
prolongado, suas duas filhas ficaram até quase nove da noite na escola
esperando pelo pai. Dado o divórcio, ela se decepcionou novamente com o
ex-marido. Com o ego ferido por ter acesso limitado às filhas depois daquele
episódio, ele começou a complicar os pagamentos de pensão. Por fim, sem a ajuda
financeira do marido, Carla começou a ter sérios problemas com grana. Cortou
uns luxos próprios para que o momento não atingisse às filhas. Depois teve de
cortar prazeres das meninas, como clube, televisão por assinatura e idas ao
teatro infantil aos sábado. A sua situação só piorava a cada mês que se
passava.
Sandra sabia da situação de Carla por
conta de outras pessoas em comum com quem mantinha mais contato. Na hora que
viu o telefone tocando, não pensou duas vezes para tirar tal conclusão. Ela ia
pedir dinheiro emprestado. Carla não se prolongou muito na conversa, tampouco
entrou no assunto grana. Foi sucinta e objetiva. Queria marcar de conversar com
Sandra pessoalmente. Entendendo que seria algo necessário a se fazer, a amiga
topou se encontrar. Sandra sempre achou meio delicado esse negócio de emprestar
dinheiro, mas um encontro com Carla para ouvir suas mazelas e dar um ou outro
conselho já seria alguma coisa ao menos.
Quando Sandra chegou ao barzinho que
marcaram, Carla já a aguardava e aparentava estar por lá por algum tempo. Seu
semblante era um misto de preocupação com ansiedade. Mesmo assim, quando
avistou a amiga adentrando, abriu um enorme sorriso. Não se viam há muito
tempo. Abraçaram-se, trocaram beijinhos e, antes de se sentarem, cada uma
comentou quase que ao mesmo tempo algo sobre o cabelo da outra. Riram e, enfim,
se sentaram.
- Sabe, Sandra? Quero agradecer por
vir. Sei que existem coisas que nos colocam em berlindas, mas a necessidade
fala mais alto. E, de verdade, preciso fazer isso. Não é algo nada fácil. Não é
mesmo. Precisei de muita coragem para fazer isso. E saiba que só estou aqui porque
é você. Jamais faria isso com outra pessoa. Talvez, somente uma pessoa com uma
relação de carinho recíproco tão grande quanto você conseguia entender o motivo
de chegar a este ponto.
Sandra, que até então só acenava
assertivamente com a cabeça e concordava com sons abafados pela garganta,
interrompeu a Carla. Ela pediu para a amiga ser paciente porque as coisas
precisam ser feitas com calma. Com Carla calada, ela prosseguiu dizendo que
deveriam pedir algo para beber primeiro. Uma bebidinha de leve para relaxar.
Palavras da própria. A amiga relutou e, em seguida, preferiu dizer que a bebida
seria para dar coragem. Sandra concordou, riu e pediu dois cosmopolitan.
- Nossa – a Sandra interrompeu o próprio
primeiro gole. – Isto lembra muito a época da faculdade, não é?
- Sim, bastante!
- Época boa! Saíamos da aula e íamos
direto para o bar do Azevedo. Ficava lotado de aluno da educação física. Bando
de homem sarado enchendo a cara de cerveja.
- É mesmo! E nós duas bancando as
estilosas circulando com cosmopolitan em mãos.
- Éramos chiquérrimas. Chamávamos mais
a atenção que aquelas pé-de-cana bebendo cerveja em copo de botequim.
- Além do fato que nenhum homem se
oferece para pagar uma cerveja. Mas um drinque. Ah, um drinque todo homem quer
pagar. Ainda mais para duas meninas finas e bonitas como nós duas.
- Nossa – Sandra se interrompeu para
mais um gole e depois prosseguiu. – Saímos completamente bêbadas sem gastar um
tostão. Época boa. Era tudo mais barato, por assim dizer.
As duas caíram na gargalhada. Quando
os risos pararam, ficou um silêncio constrangedor que foi disfarçado com longos
goles terminando os drinques. Sandra pediu mais dois. Carla voltou a puxar o
assunto delicado. Temendo pelo que vinha, Sandra abriu o cardápio e disse que
precisavam escolher algo para comer. A amiga transpareceu aflição com a nova interrupção.
Então a Sandra se justificou dizendo que era melhor pedir a comida naquele
momento e, enquanto esperavam, conversariam. As opções eram limitadas por se
tratar de um bar simples. De qualquer forma, era uma deixa para a Sandra procrastinar
a tal conversa. Até que surtiu certo efeito. Dentre as opções, existiam coisas
que uma não comia e coisas que quebravam a dieta da outra. Era uma tarefa
complexa encontrar algo que não se encaixasse nas restrições das duas e as
apetecesse ao mesmo tempo. Feito finalmente o pedido, assim que o garçom saiu
em direção da cozinha, Carla engoliu seco e deu entender que tomava coragem
para prosseguir. Sandra foi mais rápida.
- Você vai adorar a porção de minis
hambúrgueres. Não são enormes como os que estão na moda. São bem pequenos. Além
de serem bem leves.
- É, Sandra – Carla parou de falar
para dar um gole no seu segundo drinque. – Eu tenho evitado bastante comida com
pão...
- Bobagem – Sandra interrompeu a
Carla. – O pão daqui além de fininho é macio. Não é como aqueles pães
tradicionais de hambúrguer que são massudos. Você vai adorar.
- Entendi. Bem, falando assim, fico
até mais animada. Sabe como é, né? Pão massudo, carne processada...
- Não! – Sandra interrompeu a amiga
novamente. – Aqui é artesanal. Eles compram a carne, moem, montam e tudo. Tudo
feito na casa. Nada de carne de hambúrguer pronta de supermercado.
- Isso faz uma grande diferença mesmo.
Dá um ar diferencial à coisa, não?
- Claro! E oh – Sandra fez uma pausa
dramática. – O molho é sensacional. Ele tem um toque picante que fica na ponta
da língua sem arder demais. É ótimo.
O silêncio constrangedor acompanhado
dos goles em seus respectivos drinques retornou à mesa. Sandra foi a primeira a
terminar o seu drinque. Repousou o copo sobre a mesa e jogou um olhar perdido
para a decoração no alto do bar. Parecia que estava admirando apesar de já ter
perdido as contas de quantas vezes já pisara por lá. Carla terminou o seu em
seguida, arrumou os cabelos, passou a mão no rosto, ajeitou umas pulseiras em
um braço, coçou o outro e assim seguiu demonstrando inquietação. Mesmo sem
olhar diretamente para a amiga, Sandra percebeu a movimentação de Carla. Optou
então por continuar admirando o que já conhecia de longa data. O desconforto de
Carla permanecia notório. Era evidente que a qualquer momento ela tocaria no
assunto. Evitando mais uma vez o que estava por vir, Sandra propôs uma foto
para registro.
- Amiga, precisamos publicar uma foto
nossa. Tem um monte de gente da Gama no meu Facebook. Eles vão adorar nos ver
juntas.
Com um sorriso amarelo, Carla se
aproximou de Sandra. Não era possível identificar se era má vontade, frustração
ou cansaço com a dificuldade em fazer o que tinha planejado. Ainda assim, a
foto foi tirada. Sandra não gostou do resultado. Tinha saído um homem andando
ao fundo. Ela queria que a decoração aparecesse. Carla então topou uma segunda
foto. As duas aprovaram. Enquanto Carla voltava para sua cadeira, Sandra mudou
de ideia. Sugeriu que uma foto com as geladeiras abarrotadas de cerveja ao
fundo ficaria mais divertida. Lá se foram as duas até o balcão. Pediram para um
garçom tirar a foto das duas. Ele tirou. Tira mais três para garantir, pediu a
Sandra. Carla já mostrava cansaço. Voltaram para a mesa. Sandra olhava o
celular passando foto para cá e para lá. Carla com semblante apreensão.
Enquanto uma tomava coragem para falar, a outra ofereceu o celular. Pediu para
escolher uma foto dentre as duas que supostamente ficaram boas. Carla não
queria fazer aquilo. Mesmo assim, foi simpática. Analisou uma e depois a outra.
Preferiu a segunda, na qual estava com um sorriso mais natural, além de não
parecer tão rechonchuda quanto na primeira. Sandra fez uma exclamação de
alegria. Ia publicar finalmente a foto. Enquanto a amiga mexia minuciosamente
no celular, a outra se preparava para finalmente falar. Recolheu fôlego como
quem toma coragem e, quando ia começar, Sandra voltar a interrompê-la. Mudou de
ideia. Elas nunca foram de cerveja. Não fazia o sentido para ela uma foto com
as duas próximas a uma enorme geladeira com cervejas. A foto deveria ser com as
duas brindando os seus tradicionais e saudosistas cosmopolitans. A pobre da
Carla (sem ofender a situação financeira dela) estava mais uma vez sendo
obrigada a postergar por alguns minutos o que pretendia fazer. Sentaram-se
novamente lado a lado, pegaram seus drinques, montaram o sorriso e seguraram
posição. Seis fotos. Uma vai prestar, brincou a Sandra. Dessa vez, a Carla
sequer voltou a seu lugar. Preferiu permanecer ao lado de Sandra analisando as
fotos. Tinha entendido que era um mal necessário e que participar talvez tornasse
as coisas mais fáceis. Gastaram um bom tempo decidindo a melhor das fotos. Uma
foi descartada porque a Sandra parecia que estava sem um dente. Era sombra,
concluiu a Carla. Sorrisos falsos, drinques cobrindo o rosto e falta de foco
foram as desculpas para descartar outras até chegar à conclusão da vencedora. A
foto que seria digna de registrar aquele encontro em que cada uma delas tinha
planejado algo e apenas uma delas conseguira êxito até então, a Sandra e sua
procrastinação. Ao menos, com a escolha da foto, Carla teria a oportunidade de
falar, pois sua amiga ficaria quieta publicando a foto. Enganou-se. Chegaram os
minis hambúrgueres. Sandra colocou o celular de lado e atacou um deles. Ao
mesmo tempo começou a fazer comentários sobre a suculência e a harmonização dos
ingredientes. Carla percebeu que não teria a deixa que precisava, deixou então
para depois. Preferiu comer e ficar trocando elogios sobre os pequenos
sanduíches. Voltou-se então para o seu lugar.
Finalmente encerrado os hambúrgueres,
Carla não sabia mais como conduzir a situação. Ela sentia a necessidade de
colocar o assunto na mesa e ao mesmo tempo achava que não cabia mais ao
momento. Provavelmente iriam beber os drinques que chegaram junto com os
sanduíches e depois pediriam a conta. Era uma situação bastante delicada que
ela não queria estar passando, mas se fazia necessária. Durante esse tempo de
reflexão, e quem sabe agonia, de Carla, Sandra continuava alheia aos evidentes
sinais de que a amiga lhe passava a cada instante. De forma silenciosa, Carla
praticamente gritava pela atenção de Sandra que permanecia passiva àquilo tudo.
Para piorar, contudo sem o conhecimento da amiga, Sandra estava fazendo tudo
intencionalmente. A situação beirava a um jogo mental em que, em algum momento,
alguém sucumbiria entregando os pontos. Carla não podia permitir isso Não, ela
não podia sair de lá com a situação sem estar finalizada. Provavelmente, caso
acontecesse, ela voltaria arrasada para casa. Coragem não era mais necessário.
Carla precisava também se impor à mesa. Ela tinha de tomar a conversa para si e
conduzir de acordo com o que pretendia. Era necessário que ela repetisse
exatamente o que ensaiou algumas vezes na frente do espelho e outras durante o
banho.
- Então, amiga – Carla iniciou a sua
fala, mas foi com um tom passivo, o que permitiu que Sandra a interrompesse.
- Então – Sandra mostrou o celular
para a amiga. – Precisamos escolher a legenda da foto.
- Ah, Sandra. Por favor... – Carla
disse de forma passiva e foi novamente interrompida pela Sandra.
- Sem A, Nem Be. Pode matutando alguma
coisa. Estava pensando em algo como “A irmã que meus pais não me deram”. O que
acha?
- Meio forçado, né?
- Pode ser – Sandra fez uma pausa para
refletir. – Ao menos vai ficar fofo. Dá uma ideia então.
- Não sei, Sandra. A minha cabeça está
zonza de tão ocupada com outra coisa.
- Outra coisa? – Sandra percebeu que
estava escorregando em uma casca de banana da Carla e se fez de desentendida. –
Pare de bobagem. Estamos aqui para nos divertir. Sem esse negócio de trazer
problemas do dia-a-dia para cá hoje. Que tal “E lá se vão quinze anos de
amizade”?
- Lá se vão? Parece que eu morri e
acabou.
- Ai, que horror, Carla – Sandra riu
um pouco. – Tem razão. Não faz muito sentido. Vou colocar então “Da faculdade
para a vida”.
- Que tal colocar “A amiga que pode
sempre contar comigo”?
Sandra não sentiu apenas uma
alfinetada, mas uma espada atravessando seu peito. Instalou-se um clima tenso
na mesa. Carla esperava que Sandra reagisse de tal maneira que permitisse que
continuasse com o que pretendia. Sandra, por sua parte, se fez de rogada e
aproveitou a deixa para fechar a cara não dando margem à Carla para prosseguir.
Aproveitando ainda o clima na bom, Sandra pediu a conta. Quando o garçom chegou
com a bendita, Sandra deu um único gole final no seu drinque, deixou o dinheiro
na conta, disse para o garçom ficar com o troco e se levantou. Em seguida,
armou um falso sorriso e se despediu de Carla dizendo que desta vez a conta
ficaria por sua conta. A amiga não queria aceitar de jeito algum. Marque uma
próxima para ser a sua vez de pagar, disse a Sandra que saiu apressadamente.
Na beira da calçada, à espera de um
táxi qualquer, Sandra foi surpreendida por Carla. Ela queria se desculpar.
Disse que precisava muito conversar algo com ela, mas que não teve a
oportunidade naquela noite. Depois, agradeceu, pois acreditava que acabaria
estragando a noite criando uma situação embaraçosa desnecessária. Sandra disse
que entendia e, com a maior cara deslavada, falou ela era uma grande amiga e,
por isso, não precisava ficar de melindres. Carla fez uma mea culpa. Por fim,
Carla tirou um envelope da bolsa. Explicou que já imaginava que talvez não
conseguiria falar e decidiu então ter uma segunda opção, uma carta explicando
tudo. Pediu para a amiga ler em casa com calma e que, caso achasse que deveria,
entrasse em contato com ela. Sandra consentiu, pegou a carta, deu dois
beijinhos na Carla seguidos de um longo abraço e entrou no táxi.
Já em casa, enquanto tomava banho,
Sandra foi interrompida pelo marido. Ele perguntou como tinha sido o tal
encontro. Antes de sair, Sandra tinha contado o que esperava e como pretendia
se comportar. Sandra então respondeu ao marido contando detalhe por detalhe. O
marido se divertiu bastante com a cara-de-pau da esposa. Quando terminou o
banho, Sandra também terminou a história e o marido fez uma piada:
- Sacanagem, amor. A mulher está toda
complicada com grana e você ainda a leva num bar caro para beber drinques
acompanhados de sanduíches sofisticados?
- Minis sanduíches!
- Que seja – o marido riu da
ponderação da esposa. – Você só aumentou a dívida dela.
- Que nada! Eu paguei a conta toda.
- A conta toda? SANDRA! Quanto deu essa
brincadeira?
- Pouco mais de duzentos.
- Ah Sandra – o marido se interrompeu
para coçar a cabeça. – Resolveu fazer caridade?
- Meu bem, quanto você acha que ela ia
pedir emprestado? Eu imagino uns mil. Por baixo, uns oitocentos. Gastei
duzentos, entretive a Carla à noite toda e fiquei livre de um prejuízo maior.
- Até parece. E a carta?
- Ah, nem li e nem vou ler para não
ficar com remorso. Fiz o que podia.
- Posso ler?
- Pode! Pega lá na bolsa.
O marido de Sandra foi até a sala,
pegou a carta na bolsa e voltou para a porta do banheiro. Enquanto Sandra
secava as pernas apoiando um pé por vez na privada, o marido recostado na porta
lia a carta. Seu semblante era péssimo. Quando terminou, ao ser perguntado pela
esposa se era tão ruim assim, ele respondeu que ela não iria querer saber. Foi
embora, rasgou a carta e a jogou fora.
Naquela noite, certa de que fez a ação
certa, Sandra dormiu com a consciência limpa. Já o marido, ficou a noite toda
acordado. Era difícil pegar no sono com a certeza de que a amiga da esposa sabe
que ele está a traindo com a fisioterapeuta.
Próximo conto da coleção em breve