terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Mais uma dose (shot 2.1)

Josias (Efeito Color Splash)



     Acordei com o barulho do telefone de casa tocando. Sabe quando você acorda subitamente, ficando assustado e perdido? Foi assim. Estava no sofá e quase caí dele. Demorei alguns segundos para entender que som era aquele. Ainda deitado, estiquei o braço e pequei o telefone na mesinha. Atendi. Do outro lado era o Negão.
     – Fala aí, patrão! – Ele sempre me chamou de patrão, nunca pelo nome. – Hoje é folga? Não vai abrir?
     A mente ainda está devagar. Fecho e abro os olhos com força para acordar. Coço a cabeça e sento-me na beirada do sofá.
     – Que horas são?
     – Já são seis e vinte – Disse ele. – A Carlinha está aqui também te esperando.
     Céus, perdi a hora. Estava muito lento. Olhei para baixo e vi que ainda estava com a mesma roupa. Precisava de um banho, café, roupas limpas e ir ao encontro deles.
     – Preciso de meia hora – Digo para o Negão. – Quem você disse que está aí?
     – A Carlinha – Minha filha estava lá à minha espera. – Você está bem, patrão?
     – Sim – Respondo seco e rápido. – Já estou chegando. Pede para ela me esperar.
     Enquanto tiro a roupa para entrar no banho, uma sequência de tossidos me perturba. Um, dois, três e pausa para respirar. É assim por umas cinco ou seis vezes. Até brinco falando em voz alta comigo mesmo que devia parar de fumar. E é só terminar a frase que os tossidos voltam. Entro no box, tusso mais umas quatro vezes e me sinto enjoado. Encosto a bunda na parede de frente ao chuveiro, apoio as mãos no joelho e solto mais uns dois tossidos. No final do segundo acabo vomitando. Ele sai com uma cor estranha. E olha que quem está falando é alguém que comumente inicia o dia vomitando. Tento enxergar melhor, mesmo do alto, mas outros dois jatos saem. Desisto. Ligo o chuveiro e fico empurrando a água com os pés para que o vômito escorra pelo ralo.
     Durante o banho e enquanto me vestia, continuei tossindo um pouco, mas só. Nada mais foi colocado para fora. Acho que também nem dava tempo tamanha a velocidade com que me enxuguei e vesti.
     Quando fui pegar a chave da moto na bancada próxima à porta principal, vejo que tem outro chaveiro. Lembrei. Era do tal carro que não sei a quem pertencia. E agora? Na dúvida, opto em ir de moto. Vai que o carro é roubado mesmo. Não vou dar a bobeira de ir para o trabalho com um carro roubado. Peguei a moto e fui.
     A Rua General Polidoro é uma das principais do bairro Botafogo. Ela começa praticamente na fronteira com os bairros Humaitá e Copacabana e vai até o Aterro. No seu início tem um grande cemitério, o São João Batista. Em frente ao cemitério, várias pequenas oficinas de carros e de motos, um grande supermercado, um breve sequência de floriculturas e um pub chamado Ni Knights. Era ali que eu ganhava a vida. O nome era uma homenagem aos cavaleiros que só falam ni do clássico filme Monty Phyton e o Cálice Sagrado. Não era muito grande. Na realidade, era bem estreito, com um longo balcão de madeira escura, algumas mesas ao comprido e um espaço no final onde tinha uma grande televisão para exibir shows e outras coisas.
     Cheguei pouco além dos trinta minutos que tinha pedido. Sentados à porta estavam Negão, Carlinha e mais dois clientes que comumente chegam cedo no sábado. Nunca soube o nome deles. Não que tenha esquecido, apenas acho que nunca falaram. Sempre chamava um pelo apelido de “Cabelo”, por causa dos longos cabelos escuros que quase batiam na cintura. O outro, eu chamava de “Amigo do Cabelo”. Era a preguiça de bolar um apelido para ele. Ambos atendiam por esses nomes e sempre riam quando os usava.
Encosto a moto de frente mesmo. Praticamente à porta do pub. Jogo as chaves para o Negão. Ele se levanta e começa a abrir as portas. Continuo na moto. Carlinha vem à minha direção com aquela cara de paisagem de sempre. Os outros dois se levantam e entram junto com o Negão. Carlinha se apoia no guidão e diz:
     – Ai, pai – Ela toma mais conta de mim do que eu dela. – O que foi dessa vez?
     – Quer a verdade?
     – Tenho medo – Ela diz, brincando de fazer careta com os olhos arregalados. – Vai conseguir se superar desta vez?
     – A verdade... – Faço uma pausa para rir e coçar os olhos. – A verdade é que não tenho a menor ideia.
     – Pai!
     – Ok – Falo me recostando na moto. – Eu sei apenas um breve resumo, mas sem detalhes. É sério! Não me lembro do que aconteceu, apenas do que me contaram.
     – Tá bom – Diz ela me dando um tapinha na perna. – Vamos! Me conta lá dentro. Estou morrendo de calor aqui fora.
     De fato, em janeiro, mesmo de noite, o calor aqui em Botafogo é infernal. Acho que o nome veio daí. Faria todo sentido. Entramos. Ela senta em um banco ao lado dos rapazes, eu vou para o outro lado do balcão e Negão está lá nos fundos iniciando os trabalhos na cozinha.
     – Cerveja? – Pergunto apontando para os dois rapazes.
     – Sim! – Respondem ao mesmo tempo os dois e Carlinha.
     Abro o refrigerador que fica abaixo do balcão e pego quatro garrafas de long-neck. Coloco uma na frente de cada um deles e a quarta eu mesmo abro para beber. Carlinha interrompe meu gole inicial.
     – E aí?
     – E aí, o quê? – Pergunto eu.
     – Não vai contar de ontem? – Ela insiste.
     – Sério que você quer mesmo saber? – Tento fazê-la esquecer dessa ideia. – Você não tem idade para tal história libidinosa.
     – Pai – Ela coloca a garrafa que estava em suas mãos no balcão e com um olhar sério fala. – Eu tenho dezessete anos! E, além disso, não acredito que sua história seja algo além de muita bebida, terminando sozinho no sofá da sala.
     – Você, definitivamente, pegou o lado cruel da sua mãe.
     – Anda – Agora é o Cabelo quem pede. – Conta logo que estou curioso também!
     – É – Fala o Amigo do Cabelo. – Nem dormi direito de tanta curiosidade.
     – Ei! – Digo apontando para eles com a garrafa na mesma mão. – Olha o deboche!
     Os dois começam a rir. Eu fico com cara de bobo sem entender do que se trata. Carlinha ri também, mas da risada deles. E Negão vem da cozinha na mão com um CD pedindo para colocar para testar, pois tinha acabado de comprar. Aceno que sim, e volto-me para os rapazes:
     – Qual a graça? – Falo sério. – Vocês sabem por acaso do que ela está falando?
     – Porra, Jim! – Cabelo responde quase babando a cerveja que acabara de beber. – Claro que sabemos da parada na Barra.
     – Peraí – Viro-me para Carlinha e pergunto. – Você contou alguma coisa para eles?
     – Eu não! – Ela responde gesticulando com as mãos levantadas. – Nem sabia que tinha ido para a Barra. Fala logo, pai!
     – Tem razão! – Digo para ela me afastando do balcão, encostando na bancada das bebidas “quentes” e voltando a perguntar ao Cabelo. – Como você sabe que fui para a Barra?
     Ele responde alguma coisa gesticulando com os braços, mas não entendo. Tudo porque nesse exato momento o CD do Negão começa a tocar em um som absurdamente alto. Era uma música de estilo rock progressivo. Na entrada, um teclado e um baixo acompanhados de uma virada de bateria, quase como um chute no meio dos peitos.
     – Diminui essa porra, Negão! – Grito para ele que está na outra ponta do balcão, quase ao fundo do pub. – Que som é esse?
     – Cab – Ele responde, diminui o volume e responde mais uma vez gritando. – CAB!
     – Troço bom – Falo apontando para ele. – Deixa isso tocando aí.
     Volto-me para os rapazes que estão rindo mais ainda. Que bobagem.
     – Não entendi o que você falou – Digo para o Cabelo que não para de rir com os outros dois. – Dá para repetir? Ei! Cabelo! Porra, Cabelo! Como sabe que fui para a Barra?
     Amigo do Cabelo colocou cerveja para fora pelo nariz. Agora que eles não vão mais parar de rir. Lá estão os três rindo freneticamente, eu com cara de bobo aqui e Negão tocando um baixo invisível a caminho da cozinha. Vou precisar de paciência.