domingo, 15 de janeiro de 2012

Histórias reais inventadas por mim

Fonte (Efeito Brannan)
Número 2 e timidez

O professor Antonio Jardim certa vez disse que era um absurdo falar que se vai ao banheiro fazer cocô ou xixi. A pessoa já vai ao banheiro com a bosta ou a urina pronta. O que ela vai fazer mesmo é cagar ou mijar. De fato, faz todo o sentido.
Já minha mãe tem repulsa a esses dois termos. Mesmo já burro velho, toda vez que falo que vou cagar ou mijar, ela sempre diz a mesma coisa:
– Que termos são esses, meu filho? Onde estão seus modos? – E balança a cabeça em reprovação.
Só resta saber o motivo pelo qual ainda anuncio coisas desse tipo para ela. Mas isso fica para outro post, não é mesmo?
Bem, mas o que importa é Suzaninha. Ela não somente tinha problemas com esses termos, como também tinha sérios problemas com a execução deles. Literalmente! Vou explicar.
Suzaninha, como a maioria das mulheres, tinha grandes dificuldades para ir ao banheiro para fazer o chamado Número 2. Seu intestino era muito preguiçoso. Funcionava uma vez por semana e olhe lá. Eram dias e mais dias com aquilo constipado dentro dela. Era tanto tempo que ela chegava a criar uma relação com ele. Quase um afeto. Quando finalmente funcionava, lacrimejava. Não de dor! Mas de saudade prematura. Foram tantos dias e momentos juntos que, quando seu organismo finalmente ejetava suas sobras, era uma separação. Quase uma despedida de portão de rodoviária.
Na realidade, isso só era possível quando ela tinha sossego. Seu irmão mais novo, Silvinho, passou a perceber um padrão em Suzaninha quando ia ao banheiro. Era fácil decodificar quando era banho, xixi, escovar os dentes ou quando finalmente era o alívio dos reprimidos. Ele, como era um moleque atentado, ficava de tocaia atrás da porta. Esperava alguns minutos. E quando notava que a coisa (literalmente) ia sair, ele cantava em voz alta:
“Cocô, seu vacilão!
Sai desse cú que não pertence a você, não!”
Silvaninha gritava algo como: “Saí daí, moleque dos infernos!”. Ele saía correndo com passos pesados que seriam escutados por ela no banheiro. Contudo, ele voltava logo depois em passos de gato. Chegava bem perto da porta e agora, cantando mais alto ainda, soltava:
“Ta no banheiro!
Mas que gracinha!
Fazendo força,
contraindo a bundinha!”
Pronto, ela travava de vez e uma próxima tentativa somente daqui a dois ou três dias. Isso para ela era terrível. O intestino ficava cada vez mais acumulado. O afeto só aumentava. O desespero para ir ao banheiro se tornava fobia. Dizem que foi assim que começou o seu complexo. Suzaninha não conseguia mais ir ao banheiro dar aquela cagadinha pensando que alguém sabia que lá estava ela para isso. Muita coisa mudou quando Suzaninha entrou para a Tavares e Bastos. Algumas melhoraram, outras pioraram
Tavares e Bastos era uma grande empresa de contabilidade que ocupava todo um andar de um prédio no final da Avenida Presidente Vargas. Eram muitas salas repletas de pessoas, mesas, cadeiras, telefones, papéis, impressoras etc. Todas as salas eram ligadas por um único corredor longo. E, nele, existiam dois banheiros, um masculino e um feminino. O banheiro masculino tinha quatro pias, seis mictórios e seis cabines. O feminino, oito pias e dez cabines.
Uma das melhorias que Suzaninha obteve trabalhando por lá foi que seu intestino nunca funcionou tão bem. Tudo graças à secretária Alzira. Mulher de meia-idade, maquiagem carregada e mania de se intrometer na vida de todo mundo. Mesmo que fosse nas intimidades fisiológicas das pessoas. Muito brócolis no almoço, pão integral e aveia de manhã e frutas durante à tarde, ela disse para Suzaninha, que obedeceu e seu intestino em uma semana virou um relógio suíço e passou a funcionar todos os dias.
O chato nessa melhoria foi que esse tal relógio suíço, para Suzaninha, devia estar no fuso horário da Austrália ou algo do tipo. Era pontualmente após o almoço. Parecia uma pata! Comia e já estava o de ontem na portinha querendo sair. Acontece que para ela, isso seria impossível. Nunca iria fazer no banheiro do trabalho.
Nos primeiros dias ficou segurando até chegar em casa. Eram em média 4 horas no trabalho, mais uma e meia no ônibus, segurando ao máximo. Aliás, no ônibus ela ia em pé, só para não ficar em uma posição muito convidativa e o intestino acabar cedendo após tantas horas de retenção forçada.
É claro que isso não durou muito tempo. As pessoas chegaram a desconfiar que ela era hipertensa. A carinha branca que chegava todos dias, com o passar das horas ia ficando rosa, vermelha, até o final do expediente, quando estava roxa, com os olhos lacrimejando. Não dava mais. Era muita pressão (literalmente), fora as cólicas que o intestino começou a provocar como argumento de persuasão. Ia ter de ser no banheiro do trabalho mesmo.
O primeiro bloqueio de timidez era aquele sobre alguém saber que ela ia ao banheiro para cagar. Ora, isso era uma grande bobagem. Excetuando a possibilidade dela ir com uma plaquinha no pescoço escrito “Vou falar com o Ary Barroso!”, as pessoas não tinham como saber disso. Afinal, diferentemente dos homens, as mulheres só podem fazer ambas as necessidades na cabine. Entretanto, para ela, tímida toda vida, e todo tímido é megalomaníaco, sempre que entrasse na cabine e alguém a visse, esse alguém pensaria: “Lá vai a cagona!”
Apenas por isso, o início do processo era composto de várias tentativas, dependendo da sua sorte. Ela entrava no banheiro, se tinha alguém na cabine, em frente ao espelho, nas pias, qualquer pessoa, ela disfarçava fingindo que tinha ido apenas lavar as mãos, espremer uma espinha ou algo do tipo e saía.
Esse processo se repetia exaustivamente até que finalmente o banheiro estava vazio. Ela sorria de alívio e entrava correndo na última cabine, é claro. Mas aí iniciava o segundo martírio, a sonoplastia.
Como ainda ficava muito tempo segurando por conta das várias tentativas, os gases eram inevitáveis, sem falar da sonoridade de longo alcance deles. Para piorar, na alegria de obter finalmente sua liberdade, a merda saía em tamanha felicidade e velocidade que ao bater na água fazia mais barulho ainda. Ela tinha agora um novo problema. Disfarçar todo aquele concerto, pois para ela, o som de trompete enferrujado que ela emitia ou a sequência de mergulhos parecendo uma modalidade olímpica de esporte aquático, eram suficientes para alguém reconhecê-la.
– Ah, já está Suzaninha cagando na cabine!
Sua primeira estratégia foi levar folhas impressas que ficavam na sua mesa. Para ela, era genial. Nas várias tentativas que fazia, até ir em definitivo ã cabine, estaria com as mãos ocupadas com papel, dando entender que estava atarefada. De quebra, sempre que o peido saía, ela rasgava uma folha com entusiasmo. O segundo som era mais alto e abafava o apito do trem bosta que estava por vir. O mesmo quando o tolete caía em um mergulho carpado invertido. Rasgava uma folha e o barulho que se ouvia era esse. Pronto, solucionado o problema. Quer dizer na cabeça dela. Quem mais acharia barulho de papel sendo rasgado vindo de uma cabine de banheiro normal?
Mesmo assim, esse seu planinho teve de ser abortado. Em uma reunião, sua chefe disse que estava desconfiada que existia um espião na empresa, pois eram encontrados, com frequência, relatórios rasgados no banheiro. Pois é, uma funcionária complexada precisava ter uma chefe complexada para elaborar tal teoria absurda. Mas enfim, Suzainha precisava de uma nova técnica.
Agora ela usaria de duas técnicas juntas. Para abafar o som dos gases, ela arrastava a lixeira no chão, como alguém querendo ajeitar as coisas na cabine. Para os mergulhos, passou a adotar uma longa folha de papel higiênico dobrada boiando na água. Além de abafar o som, evitava que a água respingasse de volta na sua bunda. Isso era ótimo. Finalmente, depois de tanta luta para entrar na cabine, poderia soltar seus filhotinhos de forma discreta. Mesmo que parecesse uma dança das lixeiras na cabine.
O problema agora seria sair. Enquanto tivesse alguém no banheiro, ela ficava na cabine. Para isso, controlava cada movimento. Alguém abriu a porta, entrou na cabine, deu a descarga, e lá ia ela acompanhando os sons. Quando entravam mais pessoas, ela fazia um controle coletivo. Era quase um talento. Às vezes ficava uns vinte minutos, já aliviada, limpinha, vestida e agachada dentro da cabine, esperando a primeira brecha para sair.
Tudo veio abaixo em uma sexta-feira. Dona Jorginéia, uma senhora baixinha da faxina, entrou no banheiro para fazer a limpeza de fim de semana. Sempre com ela, seu rádio de pilha tocando o programa do Evanildo Orestes. Silvaninha entrou em pânico. Sabia que aquilo demoraria pelo menos uns trinta minutos.
Assim que entrou no banheiro, Dona Jorginéia foi para a primeira cabine soltar um xixizinho. Colocou seu rádio no chão, atrás da privada e se aliviou. Ao se levantar para iniciar a faxina, se sentiu mal, ficou tonta e saiu às pressas para o posto médico. Quando saía do banheiro, ao mesmo tempo, entrava outra pessoa. Não deu para Suzaninha perceber que foi uma troca. Nas suas contas apenas uma pessoa entrara naquele momento e agora eram duas no banheiro.
Depois que a segunda pessoa saiu, Suzaninha ainda contava com Dona Jorginéia lá dentro. Ainda mais com o rádio esquecido ligado atrás da privada. Naquele dia, Dona Jorginéia passara muito mal e foi levada para um hospital. Seu rádio permanecera esquecido ali.
Com o pânico instalado e a timidez gritando, Suzaninha foi incapaz de discernir o tempo absurdo que Dona Jorginéia supostamente demorava na cabine. Acabou ficando por lá até domingo pela noite, quando em uma crise súbita de coragem, saiu da cabine e foi direto para casa.
Depois desse dia, seu intestino voltou a ser aquela complicação de antes. O único saldo positivo foi que, por desatenção de pessoal dos recursos humanos, acabou ganhando uma boa grana em horas extras naquele final de semana de rainha sentada no trono. Mesmo sem fazer coisa alguma. Nem rasgando um relatório sequer.