quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Mais uma dose (shot 1.2)

Garrafa azul (efeito Hudson)
 Acho que a única tragada que dei naquele cigarro foi a primeira. Uma tragada para acender e lá ficou ele acesso queimando na minha mão esquerda. Na direita, a garrafa intocada de vodka vagabunda. Por mais que estivesse com sede, seria muita estupidez dar outro gole naquela desgraça.
Fiquei olhando o quintal. Pelo canto do olho notei que ela ficava me encarando. Ignorei. Estava tão distante que o silêncio naquele momento não me incomodou. O cigarro continuava queimando. Do grupo de jovens que estava no meio do quintal, sai um garoto na direção da varanda. Alguém grita para ele: “Trás umas dez latinhas!”.
– Meu deus, eles vão beber mais ainda? – Perguntei em voz alta.
Ela riu, pude perceber. A menina deitada no colo do namorado encostado na árvore levantou a cabeça e pediu para o garoto trazer duas latinhas. Ele passou por mim fazendo uma corrente de ar que derrubou a cinza do cigarro sem apagá-lo, e entrou na cozinha. Acompanhei seu trajeto com o rosto e fiquei olhando para a porta esperando por ele. Menos de dois minutos depois ele sai carregando um monte de latinhas no colo como se fosse um bebê muito grande. Continuei acompanhando seu trajeto atentamente. Umas duas ou três latinhas caíram pelo caminho. O cigarro continuava queimando e a garrafa de vodka permanecia no mesmo nível.
Chegando ao grupo, a cena se parecia com caminhões de mantimentos no meio da África. Ele foi praticamente atacado por eles. Só sobraram duas latinhas. A menina se levantou do colo do namorado foi até ele, pegou as duas, dei um beijo no rosto dele e voltou para os pés da árvore. Fiquei ali parado acompanhando cada momento da cena. Desde o momento em que ele se levantou até agora, ali parado, todo molhado do suor das latinhas e de mãos vazias. Ele voltou para pegar uma das latinhas que caiu pelo caminho para beber. Ela sorriu rapidamente. Balancei negativamente a cabeça enquanto o cigarro chegava ao fim. A brasa, ao chegar perto do filtro, tocou meus dedos e me queimou. Joguei, por instinto, o cigarro longe e sacudi a mão por reflexo, exatamente quando nos queimamos. Senti dor. Não era da queimadura. Levantei a mão à frente do meu rosto e virei suas costas para meus olhos. Minha mão estava vermelha tendendo para roxa e um pouco inchada.
– É, mas ele mereceu – disse ela.
– Como? – Perguntei, enquanto ainda parado encarava a minha mão esquerda.
– O machucado! Foi por causa da briga! Veja a outra mão.
Assim que ela acaba de falar, olho para a mão direita. Tão machucada como a esquerda. Aliás, um pouco mais machucada que a esquerda. Sou destro.
– Que briga? – Pergunto, agora olhando para ela.
– Na realidade não foi uma briga – explica ela. – Para ser uma briga, assim como para ser um diálogo, são necessárias duas pessoas em ação. Aquilo foi uma surra! Um monólogo!
Não me lembro de coisa alguma. Até pouco tempo sequer sentia dor nas mãos. Fiquei preocupado. Só tinha moleque na casa. A faixa etária era entre 17 até 25 anos. Será que esmurrei um menino?
– Não esquenta – ela continuava falando. – Ele mereceu!
– Ele quem?
– O Vicente! Ele é um escroto!
– Não me diga que esse Vicente é um moleque de 17 anos – peço quase implorando por um não dela como resposta.
– Não! Galalau! Burro velho! Escroto toda vida!
Pelo visto ela não guardava bons sentimentos dele. Sua opinião seria tendenciosa. Pergunto se o cara ainda estava na casa, afinal era uma preocupação. Não sabia por qual motivo bati em alguém, tão pouco imagino como seria a cara dele. Se ainda estivesse na casa, não teria como evitar ser surpreendido por um revide dele.
– Ele saiu daqui carregado por dois amigos – disse ela. – Mas não sei dizer se eles voltam. Sabe como é esse pessoal, né?
– Como assim esse pessoal? Policial? Bandido? Viking?
– Não – ela grita e ri ao mesmo tempo. – Está com medinho?
– Conhece a história do não sei o motivo porque te bato, mas você sabe o motivo porque apanha? Então! Odeio ser a exceção da regra e acabar apanhando sem saber do que se trata.
– Relaxa – ela continua rindo um pouco – Eu quis dizer esse pessoal que só anda em grupinho. Playboys! Covardes! Gaivotas!
– Gaivotas? Você é doida – falo enquanto me levanto.
– Onde vai?
– O dia está amanhecendo – digo enquanto aponto para o céu acobreado ao fundo do quintal. – Vamos tomar café em uma padaria?
– E você sabe onde está?
Não sabia. Menor ideia. Que sensação horrorosa! Estou acostumado a acordar na minha cama sem me lembrar de como cheguei em casa. Às vezes tento, mas não consigo recordar como a pessoa ao meu lado foi parar ali também. Já tiveram momentos de sequer recordar como a noite anterior começou. Só que felizmente, para a minha sorte, isso sempre culminava comigo em casa! Local seguro, limpo, pacato e conhecido. Agora não sei onde estou, não sei como cheguei, não sei quem esmurrei, tão pouco o motivo. Tudo que sei é que vou sair dali para tomar café sabe-se lá onde na companhia dessa garota. Essa garota! Céus, nem o nome dela eu sei!
– Saint Tropez – diz ela.
– Seu nome é Saint Tropez?
– Meu nome? Sim, claro! Me chamo Saint Tropez da Silva – ela mesma se interrompe e começa a rir. – Como assim?
– Foi mal – coloco a mão no rosto de vergonha – Estava pensando aqui que sequer sei seu nome.
– Você está no Saint Tropez!
– Isso é um bairro? Parece bairro da Califórnia! Eu saí do Rio de Janeiro?
– Não – ela grita e ri novamente. – É o nome do condomínio! Você está no meio da Barra! Sorria, você está na Barra!
– Barra – solto um sorriso de canto de boca, meio que surpreso, meio que debochado. – Eu nunca vou para a Barra!
Ela se levanta, entra na cozinha primeiro do que eu e logo depois para. Coloca uma das mãos sobre a boca aberta e com a outra aponta para a bancada da pia. Está surpresa. Fica assim por alguns segundos, se vira para mim, ainda com uma das mãos sobre a boca e a outra apontada para a bancada e diz não acreditar no que está vendo. Faço cara de quem não está entendendo patavinas. E convenhamos, não estava entendendo patavinas, bulhufas e necas de bitibiriba. Então ela vai até a bancada e pega a garrafa azulada retangular. Ainda de boca aberta coberta por um das mãos e agora segurando a garrafa com a outra, ela fala: “Você bebeu tudo!”. Depois abaixa a cabeça, começa a rir e meio que exageradamente grita: “Você é doido!”.
Se antes já estava confuso na varanda, agora com uma garrafa a qual supostamente bebi todo o seu conteúdo desconhecido ficou melhor ainda. Pergunto para ela o que tinha na garrafa. Ela diz não saber e continua rindo. Acho que não dava para ela ser mais misteriosa ou vaga do que aquilo. Mesmo assim, passou por mim rindo e foi para a sala. Fui atrás. Confuso, é claro. E insisti em saber o que tinha ali. Ela responde:
– Não sei mesmo! Só sei que essa aí – disse enquanto apontava para a menina ainda desacordada atrás da mesa. – bebeu um bom gole antes de ficar assim.
Ela passa pela menina, abre a porta principal e fica ali a minha espera. Passo pela menina. O cheiro de vômito. É insuportável. Mesmo assim me aproximo e ajeito a blusa de tal forma que o peito ficasse coberto novamente. Depois me levanto e vejo que ela continua rindo para mim enquanto sai de vez da casa falando:
– Você deve ser um cara muito bonzinho mesmo!
– Que nada – respondo eu com cara de deboche. – Foi minha chance de passar a mão em um peitinho nesse fim de noite.
– Tem razão – ela concorda, rindo mais ainda. – Se fosse bonzinho mesmo, teria tentando acordá-la para saber se está bem.
– Ei – viro-me de volta para a casa e antes de entrar, ela me interrompe.
– Relaxa! Ela vai ficar bem. Você já a salvou do pior. Acredite!
– Como?
– Eu te conto no caminho – disse ela enquanto desarmava à distância o alarme de um Gol preto. – Entra aí que eu vou dirigindo.