quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Mais uma dose (shot 1.3)

Gôndola do dia seguinte (Efeito Walden)
     Entro pela porta do carona e rapidamente passo para o banco do motorista. Ela, parada com a mão na maçaneta, ainda do lado de fora, ri. Acena negativamente com a cabeça, dá a volta no carro, entra pela porta do carona e me entrega as chaves. Coloco-as na ignição, ligo o carro e pergunto: “Para onde, baby?”. Brincando de fazer cara de birra, ela apenas acena com as mãos como quem diz para seguir em frente.
     Saímos do condomínio, pegamos o único retorno disponível para cair na Avenida das Américas. Entramos em mais um retorno e, ainda pela mesma avenida, seguimos na direção da Zona Sul. Ela vai me orientando. Na realidade, ela apenas diz uma meia dúzia de vai seguindo em frente para depois falar que devo entrar na rua atrás da igreja. Andamos mais um pouco e paramos em frente a uma padaria. Vazia. Está abrindo. O cheiro do pão fresquinho é absurdo. Dá para sentir de longe.
     – Você vai adorar – Diz ela enquanto sai do carro. – Esse é o melhor pão que comi na minha vida!
     Faço uma nota mental de passar a ranquear os pães que como. Saio do carro e vejo uma farmácia do outro lado. Nela, uma pequena janela iluminada. Tem atendimento vinte e quatro horas. Digo para ela ir sentando na padaria que vou até a farmácia. Ela pede para que compre teste de gravidez. Paro no meio da rua e olho assustado para ela, que ri escandalosamente. Garota doida.
     Peço duas cartelas de Dipirona. O atendente me entrega, pago e vou para a padaria. Lá, ela está falando com o rapaz do balcão que toma nota do seu pedido. Interrompo.
     – Eles não têm KY – Digo eu, fazendo ambos me olharem estupefatos. – Mas me indicaram uma geléia de morango que além de escorregar tão bem quanto KY, as sementes do morango viram esfoliantes, tirando espinhas, cravos e badalhocas da sua bunda.
     O rapaz, visivelmente constrangido, deixa o caderninho no balcão e vai para o fundo da padaria. Ela precisa abaixar a cabeça de tanto rir. Perde o fôlego. Lacrimeja. Antes que possa falar algo, digo a ela:
     – Viu? Não é a única capaz de deixar os outros sem graça! Já pediu algo?
     – Claro que não! – Ela grita com um resto de fôlego. – O menino que ia anotar saiu daqui. Vai ver foi contar para o cozinheiro que você quer fazer da minha bunda o seu waffle.
     Ficamos rindo por mais alguns minutos. Ela é doida mesmo! Uma doida do bem. Gostei dela. Levanto-me, vou até uma geladeira, pego uma Coca-Cola para tomar o Dipirona. Pergunto se ela quer. Ela responde com uma pergunta. Odeio isso!
     – A Coca ou o remédio?
     – Escolhe!
     – Estou brincando – Diz ela acenando para que o menino ao fundo da padaria venha nos atender. – Não vou beber esse veneno cedo da manhã.
     – Olha, levando em consideração aquela vodka que bebi, acho que detergente seria limonada. – Logo após engulo dois comprimidos com um bom gole de Coca.
     O rapaz chega. Ela pede um pão na chapa, um café-com-leite e uma fatia de queijo minas separado. Eu peço um café puro em um copo grande de vidro, um Nescau gelado batido no liquidificador e um pão com ovo e queijo na chapa. O rapaz anota tudo e pergunta se queremos algo mais. Os dois respondem juntos:
     – A geléia de morango!
     Durante a espera ficamos jogando conversa fora. Coisas como vai fazer sol, observações sobre a padaria, preferência de remédios para dor de cabeça. Nada de muito especial. Confesso que estou incomodado. Foram tantas as surpresas nessa noite. Tantas informações incompletas que a insistência dela comigo me assusta. Também é possível que ela esteja me dando mole. Ela é bonitinha, engraçada, tem uma tatuagem pequena no pescoço e duas enormes bem coloridas, uma em cada braço. Mas ainda não sei ao certo qual é a dela. Prefiro deixar rolar.
     A comida chega. A fome é negra. Atacamos sem falar uma palavra sequer. O café puro quente desce rapidamente em três goles. Sem açúcar, nem adoçante. Precisava disso. O sanduíche acaba em cinco dentadas. O Nescau, bem cremoso, vai em duas etapas. Na primeira, rodando o copo, bebo apenas a espuma no topo. Já a segunda é composta de apenas um gole alvoroçado que é suficiente para esvaziar o copo por completo. Com uns cinco guardanapos na mão limpo a boca de forma brusca e rústica. Faço uma bolinha com eles, jogo dentro do copo e com as mãos no ombro dela digo:
     – Estou lá fora fumando um veneno!
     Saindo da padaria, já pego o maço, separo um cigarro, coloco na boca e acendo. Uma tragada para acender. Duas profundas, bem dadas, para relaxar. Nessa última, solto a fumaça bem devagar. Primeiro pela boca, depois o restante pelo nariz, levantando calmamente a cabeça para a direção do céu. Ele está azul, sem nuvens. Ao terminar de soltar a fumaça digo para mim mesmo em voz baixa: “Bom dia, sábado!”. Ela sai da padaria e fala:
     – Conversando sozinho, doido? – Sorrio e respondo.
     – Estou oficializando o início do dia – Esfrego os olhos com a região hipotenar das mãos. – Acabei de realizar que não vou conseguir dormir mais. Então, que o dia comece.
     – Mesmo sem o anterior terminar?
     – O anterior foi complicado – Encosto no capô do carro e pergunto. – Você pode me explicar o quê aconteceu?
     – Pode ser a versão resumida?
     – Pode!
     – Você chegou na festa muito louco, arrumou uma briga louca, bebeu uma loucura de bebida, ficou mais louco ainda, conheceu uma louca e aqui está! – Ela termina dando um pulinho com os braços abertos.
     Fico parado, sem expressão olhando para ela. Não pisco. Não mexo um músculo. Ela continua parada naquela posição metade Cristo Redentor, metade personagem de mangá. Isso demora quase dois minutos até que resolvo falar:
     – Você é uma demente!
     – Ei – Ela grita e ri. – Isso magoa!
     – Ahan, drama queen – Respondo com indiferença, jogando as chaves do carro para ela. – Vamos lá! Me leva para casa!
     – E como volto para minha depois, patrão?
     – De carro! – Digo apontando para o próprio.
     – Mas ele não é meu!
     – Não? – Pergunto enquanto entrava no carro. – Então de quem é?
     – Sei lá! Você que chegou com ele!
     – Eu? – Pergunto assustado. Sem encenações. Abro o porta-luvas, pegos os documentos e leio em voz alta. – Rodrigo Galeano Castrini. Rodrigo Galeano Castrini. Rodrigo...
     – Galeano Castrini – Ela me interrompe. – Já decorei! O que tem ele?
     – Não sei! Não sei quem é! – Enquanto falo, ela ri. Chega a engasgar.
     – Brigão, bêbado, aproveitador de desacordadas e agora ladrão de carros!
     – Não, porra! – Respondo rindo também. Mas acho que de nervoso. – Não sei quem é. Mas sei que não foi roubado.
     – E agora?
     – Ah, liga essa merda! Vai para sua casa que depois eu volto com ele para a minha.
     – Tá bom! Mais alguma coisa?
     – Sim! Como conseguiu as chaves se eu que cheguei com ele?
     – Elas caíram no chão na hora da briga e peguei.
     – Só isso que caiu?
     – Caiu um grampo de dinheiro também!
     – E cadê?
     – Como acha que paguei o nosso café-da-manhã?
     – Cretina – Exclamo para depois rir. – Vai! Dirige logo essa budega! E me devolve o grampo pelo menos.
     Ela prontamente faz o que peço. Reparo que está desfazendo o trajeto que percorremos para chegar até a padaria, mas pouco importa. A cabeça está voando longe. Acendo mais um cigarro. Ela faz uma pergunta.
     – Está querendo descobrir quem é o dono, não é?
     – Não faço a menor ideia ainda – Respondo rindo. Agora achando graça. – Nem me liguei que o carro poderia estar comigo. Aliás!
     – Aliás o quê?
     – Aliás – Faço uma pausa dramática. Proposital. Mas bem feita. – Por quê, raios, não vim com a minha moto?
     – Ah, se fode aí – Ela responde rindo – Algumas perguntas eu sei responder, outras não.
     – Mas então... – Ela não me deixar terminar.
     – Mas então coisa nenhuma. Chegamos. Tchau! Tchau!
     – Ei – Digo olhando ao redor – Esse é o condomínio de onde saímos!
     – Sim, eu sei – Ela responde saindo do carro.
     – Você mora na casa da festa?
     – Não! – Ela responde falando mais alto, já que está se afastando do carro. – Moro em uma casa no condomínio
     – E não vai me ajudar com as minhas dúvidas?
     – Sim! – Ela diz abrindo o portão do condomínio.
     – Mas quando?
     – Um dia! – Já está entrando no condomínio.
     – Mas como? – Estou gritando. – Não sei seu nome! Seu telefone! Nem você sabe os meus!
     – Vamos nos esbarrar – Ela berra de dentro do condomínio.
     – Como?
     – Sei lá!
     Ela some do meu campo de visão. Fico parado perdido. Tantas dúvidas. Tantas perguntas. Nem uma resposta sequer. Quero dizer, pelo menos sei que hoje é sábado. Em outras épocas desceria do carro e iria atrás dela até conseguir pelo menos a metade da história. Mas não tenho idade, nem paciência para joguinhos. Sou curioso e impulsivo, mas também sou experiente o suficiente para saber que esta merda que aconteceu aqui na Barra, vai morrer por aqui. E como nunca venho para Barra, o assunto está encerrado. Voltarei para casa.
     Chegando em casa, demoro um pouco para achar vaga na rua. Por isso que tenho moto. Estacionar no Catete já é um inferno. Imagine em um sábado. Deixo o carro em uma rua que fica a três quadras da minha vila. Entrando na vila, vejo a minha moto na estacionada na porta. Intacta e aparentemente sem um defeito que justifique precisar de um carro alheio. Nela, um bilhete:
     “Te procurei no bar, mas estava fechado! Em casa não está! Celular só fora de área! Pensei que faríamos algo hoje. Me liga estou preocupada. Te amo...”
     Entro em casa, pego o telefone e faço uma ligação. Ela atende, pela bina já sabe quem é. Diz um oi seco e rápido. Eu falo:
     – Ai, filha, desculpa. Seu pai é um merda. Depois te explico. Tudo que preciso agora é um banho e descansar.
     Desligo. Sento no sofá, apoio os braços sobre os joelhos e exclamo comigo mesmo: “Merda!”