quinta-feira, 24 de julho de 2014

A casa dos Malavazi 1.3




Vagner entra correndo na cozinha e vê Sandra e Marlene abraçadas encostadas no balcão. Ele pergunta o que aconteceu e elas respondem que tinha um homem no meio da cozinha, mas que ele voltou para a sala. Vagner então corre na direção da sala, mas para na porta e grita:
- AH PORRA! QUER ME MATAR DO CORAÇÃO?
Ele apoia as mãos sobre os joelhos e balança a cabeça negativamente. Elas nada entendem e perguntam se o tal homem ainda está ali. Vagner com um gesto de cabeça sinaliza para que elas se aproximem.
- Podem vir – diz ele. – Esse é o Seu Nogueira! Ele é quem faz a manutenção da casa. Quase que um caseiro, ou zelador, não sei o nome ao certo.
Seu Nogueira é um senhor baixo, de cor mulata, poucos cabelos ao redor da cabeça e nenhum no topo dela. Com o perdão de todo preconceito que isso pode soar, ele aparenta ser uma pessoa ignorante, falo de poucos estudos, não do jeito de lidar com as pessoas. Além disso, sua pele mastigada pelo tempo indica que teve uma vida muito difícil. Sua expressão é dócil, fraterna, mas mesmo assim assustou as duas simplesmente por estar em um local onde elas não imaginariam poder ter outra pessoa. Ele, depois de apresentado a elas, as cumprimenta com um toque de formalidade, e ainda assim elas permanecem um pouco constrangidas com a cena que protagonizaram.
- Ora, não precisa se encabular por isso – ele diz a elas. – Eu mesmo me assusto pela manhã quando me olho no espelho.
Elas riem de forma contida, talvez agradecendo a gentileza que ele faz ao tentar minimizar a situação. Vagner então, para ajudar a cena a cair no esquecimento, puxa assunto com Seu Nogueira perguntando o que ele fazia por lá.
- Tava no andar de cima tentando resolver umas coisinhas nos canos. A água não caía direito em algumas torneiras da casa.
- E acha que resolveu?
- Não – ele responde balançando a cabeça também. – Parei porque escutei um barulho cá embaixo. Daí desci para ver o que era. Se soubesse que era vocês, nem teria parado.
- Me desculpe, Seu Nogueira. Trouxe a trupe toda para ver a casa e, como é domingo, jamais imaginaria que você estaria aqui trabalhando. Bem, devia desconfiar com as marteladas que escutamos. Ah! – Vagner exclama ao ver Artur entrar na cozinha com Julia no colo. – Aqueles são meus filhos, Artur e Sandra.
- Olá, princesa!
- Olá, vovô.
Com todos novamente descontraídos, Vagner sugere que a visita prossiga para o segundo andar. Ele ainda convida Seu Nogueira para acompanhá-los, que aceita e brinca que será o guia turístico da casa. Os dois então vão na frente. Marlene e Sandra ficam paradas para Artur passar com Julia no colo. A mãe fala para o filho.
- Gostei de ver.
- Do que está falando, mãe?
- Você sabe – ela responde apontando com os lábios para Julia. – Assumindo o papel de irmão protegendo ela.
- Que nada, patroa – Marlene se intromete. – Ele é frouxo mesmo! Foi se proteger com a pequena.
- Ah tá – ele responde. – Ah tá!
Os dois então passam e as duas mulheres seguem atrás. Marlene fala no ouvido de Sandra que também achou bonita a ação de Artur. Sandra responde que o menino é bom na essência, apenas está passando por uma fase e nem por isso não podem deixar de dar umas sacudidas nele.
O passeio pelo segundo andar, logo após subir as escadas, começa em uma espécie de pequena sala que dá acesso a todos os cômodos do andar. Eles entram primeiro na suíte. Acontece a tradicional gracinha em que cada um diz que aquele vai ser seu quarto. Os argumentos são sempre estapafúrdios, não porque estão se esforçam atabalhoadamente para convencer os demais, mas porque querem fazer graça mesmo. Seu Nogueira não resiste e entra na brincadeira:
- Se for para brigar, eu fico nesse quarto. Tudo pela família feliz.
- Boa iniciativa, Seu Nogueira. – Vagner intervém colocando a mão sobre o ombro do velho. – Mas, aparentemente, você já fica na casa toda. Daí é covardia.
A família prossegue para o quarto exatamente em frente à suíte. Sandra anuncia que ali será o quarto de Julia. Marlene gosta da informação porque o quarto é aparentemente espaçoso o suficiente para que caiba uma cama para ela também. No apartamento atual, Marlene dorme naquelas camas de deslizar que fica embaixo da cama de Julia.
Eles em seguida passam rapidamente pelo segundo banheiro da casa e depois entram no último quarto. Artur não gosta da ideia de esse ser seu quarto. Na sua concepção, é o menor de todos.
- E onde que você precisa de um quarto maior? – Pergunta Sandra. – Você só tem essa bermuda esfarrapada que usa todos os dias, algumas camisas e seu celular maldito. Acho que podíamos até inverter, transformar o banheiro em seu quarto e o seu quarto em banheiro. Aí a Marlene terá um banheiro enorme para tomar banho e brincar de diva.
- Ah, eu acho muito justo, patroa.
- Vocês duas estão muito engraçadinhas hoje. Depois não sabem por que estou sempre de mal humor.
A família retorna à área comum de acesso a todos os quartos. Vagner vai em direção a uma porta que fica em frente à escada que leva ao térreo e saca o molho de chaves. Ele comenta que, quando foi conhecer a casa pela primeira vez, não estavam todas as chaves com o corretor, mas hoje, como pegou todas, vai poder abrir a tal porta. Sandra pergunta o que tem ali e, antes que Vagner responda, Seu Nogueira se antecipa dizendo que é uma escada dando acesso ao sótão, que nada tem ali e é perda de tempo.
- Seu Nogueira – diz Vagner. – Você que conhece a casa como ninguém, qual dessas trocentas chaves é a desta porta?
- Não sei, Seu Vagner. Não sei.
O velho muda o tom simpático, fica com a expressão séria e se afasta dizendo que tem outras coisas por fazer na rua. Ele então se despede de todos e desce as escadas, deixando a família ali esperando que Vagner finalmente acerte a chave da porta.
- Consegui – comemora Vagner.
Todos os cinco sobrem para o terceiro andar que é composto por um único salão do tamanho dos dois outros andares. O teto é baixo, o cheiro de poeira e de coisas velhas se sobressai e, para completar, é uma escuridão total. Vagner até tenta acender a luz apertando o interruptor, mas parece que está sem lâmpadas ou as lâmpadas estão queimadas.
- Que escuridão, Jesus – exclama, Marlene. – Alguém pega o celular para iluminar isso aqui.
Vagner pega o dele, mas está sem bateria. Ele pede o de Sandra, mas também está sem bateria. Artur não se conforma:
- Os dois sem bateria? Quantas vezes já falei para deixar o celular carregando durante a noite? Agora, se alguém quiser falar com vocês já era.
- Filho – Vagner responde. – Eu tenho o hábito de deixar o celular espetado no computador o dia todo no trabalho. Sua mãe também. Só que ontem foi sábado, não trabalhamos. Daí esquecemos e já viu.
- Eu não entendo como pode essa tamanha complicação dos velhos com eletrônicos.
- Filho – agora Sandra quem fala. – Pare de reclamar e nos dê a honra da luz do seu poderoso celular que carrega toda noite como se fosse uma usina nuclear.
Artur tira o celular do bolso de trás da bermuda e percebe que também está sem bateria. Os três implicam com ele que se justifica dizendo que passou a noite toda conversando por mensagens e acabou se esquecendo de colocar para carregar. A gozação com ele continua. Até Julia, sem saber do que se trata brinca:
- Cabeção!
Sem luz nas lâmpadas e o recurso alternativo de celular indisponível, Marlene toma a frente de todos e vai até uma das janelas para tentar abri-las.
- Não dá para abrir – ela diz. Estão lacradas com umas “táubuas”.
- Umas o quê, Marlene?
- Você entendeu, garoto. Larga de ser pentelho.
- Entendi não, Marlene. Qual a dificuldade de falar tábua? Ou falar registro?
- Qual a dificuldade em cicatrizar a testa do cascudo que vou te dar?
Artur fica rindo e vai na direção oposta a de Marlene tateando o caminho, pois nada consegue ver. Vagner e Sandra ficam parados na entrada com Julia ao lado deles. Os pais alertam para tomarem cuidado com pregos, farpas ou outras coisas que podem machucar. Marlene vai tateando em outra direção.
- Trombei em algo!
- O que, Marlene?
- Parece um monte de cano empilhado, patroa.
- Deve ser o tal conserto que o Seu Nogueira falou.
- Não, patroa. Não é cano não! São camas velhas de ferro. Uma sobre a outra.
Vagner comenta que no dia da primeira visita, o corretor disse que alguns móveis dos antigos proprietários estavam amontoados por lá e que deveriam ser jogados fora ou doados. Sandra estranha e retruca que não faz sentido tanta cama assim. Ele rebate dizendo que nem devem ser tantas assim, provavelmente o escuro enganou Marlene. Além disso, ele prossegue constatando que ali mesmo com eles serão quatro camas, portanto era possível outra família ter quatro ou cinco camas.
- Ih caralho – resmunga Artur. – Caguei a porra da mão toda.
- Olha o vocabulário, meu filho – sinaliza Sandra. – Sua irmã está aqui.
- Desculpa, mãe. Mas acabei me apoiando em um monte de caixas empoeiradas aqui. Parece que tem mais coisas da outra família para jogar fora.
Sandra anuncia que chega de passeio no escuro. Eles precisam ir embora porque ela ainda tem de fazer as compras para o almoço de domingo. A família então desce a escada, com Vagner por último comentando que precisa marcar as chaves.
- Coroa, larga de ser lerdo. É só deixar a portas de dentro abertas. Para quê tanta chave?
Vagner concorda com a observação do filho e segue com a família para o térreo. Eles saem da casa e, enquanto esperam o pai trancar a porta principal no pequeno pátio que separa a casa do muro, Artur coloca a mão no bolso de trás, saca o celular e fica parado olhando para ele.
- O que foi, garoto?
- Ele está vibrando, Marlene.
- Então atende! Qual o problema?
- É a bina! Olha – ele mostra o celular para ela. – Que número estranho! Zero, zero, zero, jogo da velha, zero, jogo da velha.
O celular para de vibrar. Vagner termina de trancar a porta e abre o portão que dá acesso à rua. Sandra é a primeira a sair e vai para o carro apressada pedindo que todos andem logo, pois o mercado fecha logo. A família vai atrás e, antes que Artur entre no carro, Marlene o segura pelo braço e comenta:
- Peraí, garoto. Seu celular não estava sem bateria?
(Continua em 2.1)