quarta-feira, 16 de julho de 2014

A casa dos Malavazi 1.1



(Presente)
O carro parou exatamente em frente ao destino, quase como se a vaga estivesse reservada a eles. Foi apenas uma coincidência, pois era um domingo, dia de pouquíssimo movimento naquela pequena rua em Vila Isabel. Ela fica no que costumam referenciar como começo do bairro, pois está na altura do início da Avenida 28 de Setembro, maior avenida e referência do bairro. Para quem não o conhece, o bairro Vila Isabel possui duas ruas principais. A mais conhecida, a Avenida 28 de Setembro, começa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, e termina literalmente no chamado final do bairro, quase no Túnel Noel Rosa que leva para outros bairros da zona norte. A segunda rua é a Teodoro da Silva, a qual os moradores preferem pronunciar Tiodoro da Silva, mania que motivou o nome de um motel nela localizado: Te Adoro.
Assim que desligado o motor, Sandra, que estava no banco do carona, sai. Ela deu a volta no carro enquanto Vagner, que dirigia, saía também. Eles pararam lado a lado de costas para o carro. Nisso, Marlene saiu do banco de trás com Júlia no colo. Artur foi o último e, como de costume, estava com cara de emburrado. Todos fora do carro ficaram quase que perfilados de frente para o destino.
- Que muro alto – disse Julia.
De fato era um muro alto. Aliás, se me permitem opinar, era um muro exageradamente alto, sequer era possível ver o que estava por trás dele. Talvez os demais estivessem constrangidos de fazer esse comentário. Ou até mesmo coagidos por aquilo que era completamente diferente do que esperavam. Julia, por ser apenas uma criança de cinco anos, acabou falando a primeira coisa que lhe veio à cabeça, o que possivelmente foi o que os outros pensaram também.
- Pelo menos devia ser uma casa muito segura – ponderou Marlene tentando quebrar o silêncio.
- Casa? Casa que nada – disse Artur olhando ao redor como quem aponta as redondezas para os outros. – Era uma empresa. Não tem uma casa nessa ruazinha.
O diminutivo usado não era desprezo, apesar do temperamento sempre hostil de Artur. A rua era muito pequena, tinha no máximo 50 metros e ligava duas ruas transversais. À primeira vista, parecia uma rua agradável de casas. Daquele tipo de rua onde todos os vizinhos se conhecem, nos fins de semana as crianças brincam na rua e fazem decorações para festa junina. Apenas adentrando que é possível notar que as tais casas são todas na verdade empresas, pois seus letreiros são discretos. Tem um consultório veterinário, empresa de segurança privada, escritório de advocacia, firma de entregas expressas, uma gráfica e o tal muro alto como definido pela Julia.
O silêncio se restabelece. Marlene recrimina Artur com o olhar que, em troca, esboça uma careta de cansaço e tédio. Vagner, que estava tenso desde quando deu a partida no carro, sinaliza agradecimento para Marlene com uma expressão facial simpática. Sandra pega Julia do colo de Marlene como quem vai tomar iniciativa e começar a andar dando prosseguimento aos planos. Contudo, Julia faz mais um comentário deixando todos desconfortáveis novamente.
- Que muro branco.
Além de alto, era um muro inteiramente branco. Na realidade, era mais para marfim, mas isso porque estava escurecido e um pouco encardido. Ele não era pintado, era de azulejos retangulares colocados na vertical.
- Parece um banheiro – completou Julia para piorar ainda mais a situação.
- Banheiro nada – retrucou Artur. – Parece um lavabo de empresa furreca. Deve ter sido planejado por algum engenheiro dessas empresas mequetrefes daqui.
Desta vez foram todos que olharam recriminando Artur que, como todo adolescente rebelde, se sentiu vitorioso ao conseguir atenção da pior forma possível. Entretanto, a suposta vitória durou poucos segundos, pois logo após Marlene fez um comentário roubando sua atenção:
- Deve ser pela praticidade – ela disse apontando para o muro. – Com esse bando de pichadores por aí, um muro assim é fácil limpar e fica sempre bonito.
Todos se calaram como se engolissem o argumento de Marlene. Só que não tinha o que argumentar, o muro era muito alto, muito feio e realmente parecia um banheiro. Para piorar, ele tinha uma porta, como de acesso a pedestres, feita de metal pesado bem estilo de empresa mesmo, pintada toda de branco e um portão para carros do mesmo jeito. A primeira impressão era indiscutivelmente ruim. Sandra chega a olhar para Vagner como quem pergunta que tipo de furada é aquela que ele está arrumando. Ele, notadamente sem jeito, tenta desconversar:
- Vamos, gente – ele diz gesticulando e andando na direção da porta menor. – Vamos entrar. Tenho certeza que irão gostar do que vão ver.
Vagner se enrola com o molho de chaves que tem em mãos. São muitas e este é o argumento dele, mas não convence muito bem, ele está nervoso também. Depois de testar umas três das várias chaves, então a porta é aberta. Ele cede passagem a todos e entra por último. Fica até parecendo um anfitrião mesmo sendo a segunda vez que coloca os pés por lá.
Aparentemente, a primeira reação das pessoas não foi muito simpática. Aliás, para ser mais preciso, pode-se afirmar que a reação foi um coletivo sorriso amarelo. De início, o que se via era a casa, sua fachada tinha o mesmo comprimento do muro, isto é, não existiam corredores laterais externos para levar a um suposto quintal nos fundos, caso exista. Ela era toda em um azul bem claro com uma única porta de acesso e janelas indicando que possuía dois andares. Tanto a porta, quanto as janelas, todas eram brancas.
- Boa, coroa – diz Artur colocando a mão sobre um dos ombros de Vagner. – Realizou o sonho da mamãe de ter uma casa branca com as janelas azuis. Só que ao contrário.
Sandra coloca Julia no chão e abraça Vagner agradecendo a ele e dizendo que achou a casa bonita, mesmo sua expressão indicando o contrário. Julia corre pelo pátio cimentado que separa a casa do muro em toda a sua extensão. Marlene ensaia ir atrás de Julia, mas para com as mãos na cabeça:
- O que foi, Marlene?
- Nada, patroa – ela responde. – Apenas uma dorzinha de cabeça chata.
- Não é a sua pressão?
- Não, patroa. Estou tomando meus remédios como o Seu Vagner indicou. Foi só uma pontadinha enjoada que me deu agora.
Marlene enfim pega Julia no colo e Vagner coloca a chave na porta que dá acesso à casa. Sandra o abraça em expectativa para o que está por vir e recebe em troca dele um sorriso. Artur fica escorado na parede com os braços cruzados e com cara de desdém. A porta se abre:
- Oh meu deus!
(Continua em 1.2)