(Presente)
O carro
parou exatamente em frente ao destino, quase como se a vaga estivesse reservada
a eles. Foi apenas uma coincidência, pois era um domingo, dia de pouquíssimo
movimento naquela pequena rua em Vila Isabel. Ela fica no que costumam referenciar
como começo do bairro, pois está na altura do início da Avenida 28 de Setembro,
maior avenida e referência do bairro. Para quem não o conhece, o bairro Vila
Isabel possui duas ruas principais. A mais conhecida, a Avenida 28 de Setembro,
começa na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UERJ, e termina literalmente
no chamado final do bairro, quase no Túnel Noel Rosa que leva para outros
bairros da zona norte. A segunda rua é a Teodoro da Silva, a qual os moradores
preferem pronunciar Tiodoro da Silva, mania que motivou o nome de um motel nela
localizado: Te Adoro.
Assim
que desligado o motor, Sandra, que estava no banco do carona, sai. Ela deu a
volta no carro enquanto Vagner, que dirigia, saía também. Eles pararam lado a
lado de costas para o carro. Nisso, Marlene saiu do banco de trás com Júlia no
colo. Artur foi o último e, como de costume, estava com cara de emburrado.
Todos fora do carro ficaram quase que perfilados de frente para o destino.
- Que
muro alto – disse Julia.
De fato
era um muro alto. Aliás, se me permitem opinar, era um muro exageradamente
alto, sequer era possível ver o que estava por trás dele. Talvez os demais
estivessem constrangidos de fazer esse comentário. Ou até mesmo coagidos por
aquilo que era completamente diferente do que esperavam. Julia, por ser apenas
uma criança de cinco anos, acabou falando a primeira coisa que lhe veio à
cabeça, o que possivelmente foi o que os outros pensaram também.
- Pelo
menos devia ser uma casa muito segura – ponderou Marlene tentando quebrar o
silêncio.
- Casa?
Casa que nada – disse Artur olhando ao redor como quem aponta as redondezas
para os outros. – Era uma empresa. Não tem uma casa nessa ruazinha.
O
diminutivo usado não era desprezo, apesar do temperamento sempre hostil de Artur.
A rua era muito pequena, tinha no máximo 50 metros e ligava duas ruas
transversais. À primeira vista, parecia uma rua agradável de casas. Daquele
tipo de rua onde todos os vizinhos se conhecem, nos fins de semana as crianças
brincam na rua e fazem decorações para festa junina. Apenas adentrando que é
possível notar que as tais casas são todas na verdade empresas, pois seus
letreiros são discretos. Tem um consultório veterinário, empresa de segurança
privada, escritório de advocacia, firma de entregas expressas, uma gráfica e o
tal muro alto como definido pela Julia.
O
silêncio se restabelece. Marlene recrimina Artur com o olhar que, em troca, esboça
uma careta de cansaço e tédio. Vagner, que estava tenso desde quando deu a
partida no carro, sinaliza agradecimento para Marlene com uma expressão facial
simpática. Sandra pega Julia do colo de Marlene como quem vai tomar iniciativa
e começar a andar dando prosseguimento aos planos. Contudo, Julia faz mais um
comentário deixando todos desconfortáveis novamente.
- Que
muro branco.
Além de
alto, era um muro inteiramente branco. Na realidade, era mais para marfim, mas
isso porque estava escurecido e um pouco encardido. Ele não era pintado, era de
azulejos retangulares colocados na vertical.
- Parece
um banheiro – completou Julia para piorar ainda mais a situação.
-
Banheiro nada – retrucou Artur. – Parece um lavabo de empresa furreca. Deve ter
sido planejado por algum engenheiro dessas empresas mequetrefes daqui.
Desta
vez foram todos que olharam recriminando Artur que, como todo adolescente
rebelde, se sentiu vitorioso ao conseguir atenção da pior forma possível.
Entretanto, a suposta vitória durou poucos segundos, pois logo após Marlene fez
um comentário roubando sua atenção:
- Deve
ser pela praticidade – ela disse apontando para o muro. – Com esse bando de
pichadores por aí, um muro assim é fácil limpar e fica sempre bonito.
Todos
se calaram como se engolissem o argumento de Marlene. Só que não tinha o que
argumentar, o muro era muito alto, muito feio e realmente parecia um banheiro.
Para piorar, ele tinha uma porta, como de acesso a pedestres, feita de metal
pesado bem estilo de empresa mesmo, pintada toda de branco e um portão para
carros do mesmo jeito. A primeira impressão era indiscutivelmente ruim. Sandra
chega a olhar para Vagner como quem pergunta que tipo de furada é aquela que
ele está arrumando. Ele, notadamente sem jeito, tenta desconversar:
-
Vamos, gente – ele diz gesticulando e andando na direção da porta menor. –
Vamos entrar. Tenho certeza que irão gostar do que vão ver.
Vagner
se enrola com o molho de chaves que tem em mãos. São muitas e este é o
argumento dele, mas não convence muito bem, ele está nervoso também. Depois de
testar umas três das várias chaves, então a porta é aberta. Ele cede passagem a
todos e entra por último. Fica até parecendo um anfitrião mesmo sendo a segunda
vez que coloca os pés por lá.
Aparentemente,
a primeira reação das pessoas não foi muito simpática. Aliás, para ser mais
preciso, pode-se afirmar que a reação foi um coletivo sorriso amarelo. De
início, o que se via era a casa, sua fachada tinha o mesmo comprimento do muro,
isto é, não existiam corredores laterais externos para levar a um suposto
quintal nos fundos, caso exista. Ela era toda em um azul bem claro com uma
única porta de acesso e janelas indicando que possuía dois andares. Tanto a
porta, quanto as janelas, todas eram brancas.
- Boa,
coroa – diz Artur colocando a mão sobre um dos ombros de Vagner. – Realizou o
sonho da mamãe de ter uma casa branca com as janelas azuis. Só que ao
contrário.
Sandra
coloca Julia no chão e abraça Vagner agradecendo a ele e dizendo que achou a
casa bonita, mesmo sua expressão indicando o contrário. Julia corre pelo pátio cimentado
que separa a casa do muro em toda a sua extensão. Marlene ensaia ir atrás de
Julia, mas para com as mãos na cabeça:
- O que
foi, Marlene?
- Nada,
patroa – ela responde. – Apenas uma dorzinha de cabeça chata.
- Não é
a sua pressão?
- Não,
patroa. Estou tomando meus remédios como o Seu Vagner indicou. Foi só uma
pontadinha enjoada que me deu agora.
Marlene
enfim pega Julia no colo e Vagner coloca a chave na porta que dá acesso à casa.
Sandra o abraça em expectativa para o que está por vir e recebe em troca dele
um sorriso. Artur fica escorado na parede com os braços cruzados e com cara de
desdém. A porta se abre:
- Oh
meu deus!
(Continua em 1.2)