-
Que sala grande!
A
observação de Julia foi a mesma que provocou a reação de Sandra e Marlene
fazendo com que exclamassem a mesma coisa juntas. Era uma sala enorme, maior
que muito apartamento. Com boa vontade, era possível fazer até quatro ambientes
separados sem deixar os móveis apertados. Obviamente estava vazia de mobília.
Seu piso exigia um novo tratamento de sinteco, assim como as paredes urgiam de
reboco e tinta.
-
Isso é uma espelunca – esbravejou Artur assim que entrou por último.
-
CHEGA, ARTUR – grita Sandra. – CHEGA! Estou cansada dessa rebeldia
desnecessária. Nada te faz feliz, nada te satisfaz. Tudo que sabe é reclamar,
colocar defeito, destratar os outros. Cansei! Se não tem algo de bom para
falar, fique calado.
O
clima fica ruim na sala. Marlene que, apesar de ser uma pessoa de pouca instrução,
é bastante safa para as coisas do dia-a-dia, vai para outro cômodo com Julia no
colo para que ela não veja a bronca que a mãe dava no Artur. Ela abre a
primeira porta e entra, trata-se da cozinha e fica pasma com o que vê.
-
Não sou obrigado a aceitar tudo que me impõem – rebate Artur. – A vida não
funciona assim.
-
Funcionam, sim – Sandra se impõe com o dedo em riste. – A vida não é como seu
maldito videogame em que você aperta os botões e acontece exatamente o que você
quer que aconteça. A vida, mocinho, não é como Facebook, em que você pode
escrever qualquer porcaria e sua patotinha vai curtir e comentar dando corda.
Não, não é mesmo. Acredite! A vida é muito pior e injusta. Muito mais do que
imagina. E se acha que se mudar para um bairro longe dos seus amiguinhos, ou
longe do shopping onde você gastava a tarde inteira fazendo nada, é a pior
coisa que pode lhe acontecer, você está muito enganado. Existem coisas muito
piores, como ser mãe, esposa, patroa e sensata ao mesmo tempo.
A
fala de Sandra é interrompida por uma pancada seca e alta: TUM! Vagner e Sandra
se assustam e correm na direção da porta em que Marlene entrou com Julia.
Vagner é o primeiro a entrar perguntando se está tudo bem. Marlene responde que
sim.
-
Mas é que ouvimos – Vagner não consegue completar a frase porque Marlene está
muito empolgada com o que vê.
-
Patroa, olha essa cozinha – diz ela apontando para todos os lados conforme vai
comentando. – Olha o tamanho deste fogão. Deve ser industrial. E a geladeira.
Olha essa bancada! E ainda posso pendurar as panelas sobre a bancada que nem
aqueles programas de chef.
Sandra
concorda, mas sequer consegue balbuciar algo de tão espantada. A cozinha é
enorme, com tudo nela tão grande quanto deveria ser. Era possível fazer comida
para alimentar um batalhão ali. Ainda assim, ela retoma o fôlego do esporro, do
susto e da boa surpresa com a cozinha:
-
Marlene, seu sonho de fazer comida para fora e ganhar dinheiro extra vai se
realizar.
Além
de concordar com a patroa, Marlene se empolga com o cenário, com a
possibilidade, com tudo. Tamanha é a sua empolgação, que ela deixa Julia sobre
a bancada central da cozinha e começar a planejar coisas em voz alta. Cardápio,
pratos, a logística de como vai funcionar, horários. Faz tudo isso de frente
para o fogão, como se fosse um general em frente ao grande mapa da guerra
planejando o próximo movimento de suas tropas. Vagner e Sandra, logo atrás
dela, se cutucam concordando com a felicidade dela. A cena é ingênua, mas ao
mesmo tempo cheia de emoção e sincera. Marlene chega ao auge do seu raciocínio
quando é interrompida por uma sequência de novas pancadas secas e altas: Tum!
Tum! Tum! Tum! Tum!
-
ARTUR – grita Sandra. – AGORA ESTÁ SENDO INFANTIL. PARE DE ANDAR PELA CASA
BATENDO OS PÉS NO CHÃO!
-
Mas estou aqui – responde ele.
Os
adultos se viram para trás e lá está ele, sentado em um balcão ao lado da porta
por onde entraram. Os três então se entreolham assustados, enquanto Julia
finalmente se vira também e, ao ver Artur, o chama pelo nome. Ele repete o
próprio nome para ela em voz alta, mas prolongando a última sílaba como a
sonoplastia de filmes de fantasmas de baixo orçamento.
-
Pare, Artur. Pela sua irmã, pare – diz Sandra logo depois se virando para
Vagner. – Será que veio daquela porta?
Ela
se refere a uma pequena porta no meio de uma das paredes. Ela, além de pequena,
é baixa. Vagner se aproxima dela e Sandra pergunta se ele sabe o que tem ali.
Ele diz não saber, pois a primeira e única vez que esteve na casa, foi tudo
muito rápido.
-
É ali que escondem os corpos – fala Artur.
-
Já disse para parar, Artur. Coisa mais estúpida.
-
Estúpida, mãe? Vocês escutaram um barulho estranho, não sabem do que se trata,
ao invés de fugir, querem ir atrás e minha brincadeira para tentar quebrar a
tensão é estúpida?
-
Sabe, patroa – diz Marlene enquanto pega Julia no colo e circula o balcão
central da cozinha para se posicionar no ponto mais oposto possível da porta. –
Isso me dói muito, mas tenho que concordar com o garoto problema.
-
É garoto enxaqueca, Marlene – Sandra a corrige. – E não tem nada de estúpido em
checar do que se trata. Provavelmente foi apenas um gato preso atrás dessa
porta.
-
Um gato, patroa? Com esse barulho, é mais fácil ter sido um touro.
Vagner
gesticula com a mão para que façam silêncio. Ele está com a mão na maçaneta e
quando vai começar a abrir, Artur fala: “Outro gato!”. Todos olham sérios para
ele que batendo os ombros diz:
-
Ih, esqueci que nunca assistiram Chaves na vida.
Vagner
enfim abre a porta. Nada! É uma despensa, daquelas que você consegue entrar e
dar uns três ou quatro passos dentro, com prateleiras por todos os lados. Está
completamente vazia. Nem uma lata sequer.
As
atenções então se voltam para a terceira porta na cozinha localizada na parede
oposta da porta por onde entraram. É uma porta comum de acesso provavelmente a
outro cômodo e, como todas as outras da casa, totalmente maciça, sem a chance
de prever o que está por trás dela. Vagner, mesmo não querendo fazer suspense,
se dirige até ela vagarosamente. Sandra então toma sua frente, coloca a mão na
maçaneta e abre.
-
MARLENE, MULHER! VENHA VER ISSO!
É
um pátio enorme nos fundos da casa. Além de possuir o mesmo comprimento do muro
da rua, ele deve ter, no mínimo, o dobro de largura. Ele tem o chão todo em
cimento e diversas mesas de concreto com bancos também de concreto ao redor. Estranhamente,
se olharmos como um todo, as mesas formam um círculo com um grande espaço ao
meio, bem no centro do pátio. Nenhum deles se atenta para esse detalhe. Eles se
espalham pelo quintal olhando as mesas. Marlene fala em voz alta que é possível
fazer ali um bom restaurante popular a céu aberto. Sandra senta em uma das
mesas e pergunta o que fazer com tantas. Vagner sugere abrir um bingo
clandestino. Artur cogita sediar a copa do mundo de sueca. Julia apenas corre
entre mesas e bancos.
-
Vai voltar à caça de assombrações, mãe? – Pergunta Artur assim que a mãe se
levanta da mesa e se encaminha para a porta por onde vieram.
-
Não, seu bobo. Vou ver o resto da casa. Quero saber se ela consegue me
surpreender mais ainda.
Ela
finaliza a frase, abre a porta para voltar a cozinha e entra. Depois disso se
escuta um grito de Sandra. Vagner e Marlene correm na direção da porta. Artur
corre na direção de Julia. Marlene é a primeira a chegar à porta e também
grita.
-
O que foi? – Pergunta Vagner enquanto se aproxima às pressas. – O QUE FOI?
(Continua em 1.3)