Nem
adiantou tentar convence-la a ir de moto, ela estava decidida que iríamos de
Metrô. Sua preocupação não era voltar de carona comigo depois de beber, pois já
havíamos feito isso várias vezes, mesmo com seu chatíssimo discurso de que é
perigoso. O que ela queria mesmo era usar o tempo no Metrô para conversar. Ela
estava preocupada com o ritmo dos últimos dias.
- Você
não acha que está perdendo o controle das coisas novamente? - Ela perguntou com
o jeito tranquilo de sempre quando quer dar um esporro, mas ao mesmo tempo não
quer correr o risco de provocar uma reação intempestiva minha.
Eis uma
pergunta que admite apenas duas respostas: sim ou não. Adoro perguntas que só
permitem essas duas saídas, pois elas tornam tudo mais dinâmico. Ainda assim as
pessoas insistem em responder com algo totalmente fora dessas opções
disponíveis.
- Este
é o Edifício Carlos Prestes? - Perguntei certo dia ao porteiro para saber se
estava no endereço certo.
- Aqui
é Rio Branco 543, senhor - ele responde, não sanando minha dúvida e me fazendo
refletir sobre a sua dificuldade em lidar com sim ou não.
Obviamente
temos casos nós quais a pergunta não admite essas duas respostas, mas continua
aberta unicamente para duas opções. Perguntas que nelas mesmas explicitam as
duas respostas possíveis. Perguntas que você já antecipa para a pessoa o que
ela pode responder. Ainda assim, a probabilidade da terceira opção surpresa é
maior. Situações como essas tendem a criar um ligeiro disturbo na mente da
pessoa mais centrada envolvida na conversa. É o caso de quando perguntamos ao
porteiro do mesmo prédio se o escritório do advogado Marcelo Tomarim fica no
quinto ou sexto andar e, para o seu desespero, ele responde "sim".
Ironicamente, nessa hora ele consegue lidar com uma das possíveis respostas
disponíveis, pena que da outra pergunta.
Com o
passar do tempo, você vai se tornando mais intolerante a situações como essas.
E, não sendo suficiente, passa a ser tomando pela cretinice da resposta
surpresa quando assume o papel de interrogado. Mas para isso, é imprescindível
que quem faça a pergunta seja potencialmente alguém quem iria responder a
terceira opção quando perguntado.
-
Senhor, é crédito ou débito? - Pergunta a caixa do supermercado ao finalizar a
conta.
- É
isso! - Respondo com um belo sorriso sacana no rosto.
A
pergunta da Tatiana era obviamente um caso de sim ou não. E, talvez por
acreditar que tinha muito mais coisa envolvida ali, respondi dando um tiro no
meu próprio pé. Aliás, um tiro duplo.
- Você
acha que essa pergunta faz sentido? - Falei para ela no mesmo tom tranquilo.
- Baby,
só os idiotas respondem uma pergunta com outra pergunta - A desgraçada me
atacou com minha frase favorita e nem podia revidar.
Passamos
pouco mais de um minuto calados, um fuzilando o outro apenas com o olhar. Meu
olhar dizia "sua maldita, te odeio". Já o dela era "mentira,
você me ama e sabe disso". Merda! E ainda estávamos na estação Afonso
Pena, faltando mais onze estações até nosso destino.
- Então
me explique por qual motivo essa pergunta não faz sentido.
Não
acreditei quando ela pediu isso. Para mim, era algo tão óbvio que sequer
precisava ser explicado. Tratava-se de lógica básica. Para que se perca o
controle de algo novamente é condição sine
qua non que antes você tenha recuperado o controle desta mesma coisa, fato
que, convenhamos, eu estava longe de ter feito. Nada mudara desde então. Talvez
uns breves lampejos de discrição ou esporádicos dias de isolamento do mundo,
mas o controle reassumido, jamais.
Não
foram essas exatas palavras que usei para explicar a ela. Até porque, sejamos
francos, ela não saberia o que é uma condição sine qua non. Ainda assim, após explicado, ela se calou e, olhando
para o vazio à sua frente, fez uma expressão muito triste. Se tivesse usado mesmo
o termo sine qua non, pensaria que
ela estava prestes a ter um derrame de tanta força que fazia para tentar
entender o significado. Nunca a vi com o rosto daquele jeito, e vale lembrar
que já passamos por várias situações adversas juntos. Talvez estivesse com essa
fisionomia no episódio do pai dela enquanto o acompanhava antes da minha
desastrosa aparição. Mas como ao chegar tumultuei tudo, não posso saber como
estava a sua expressão. Tudo que lembro era sua cara de desespero gritando para
que eu me parasse.
- Você
precisa de um motivo - ela, com calma, quebrou o silêncio após colocar a mão na
minha perna. - Você precisa de alguém.
Não sei
se é um charme, ou uma deficiência mesmo, mas acho incrível a capacidade que
ela tem de ser imbecil quando conversamos de assuntos sérios. Não que ela em
outras circunstâncias não seja. Sim, ela é! Mas em outras circunstâncias é
proposital. É como se fosse a nossa língua oficial, quase como esperanto dos
imaturos.
- Quem
vai querer algo comigo, baby? Quem vai encarar essa furada?
Não
estava criando uma situação de autodepreciarão para receber elogios depois. Era
quase que uma pergunta com uma constatação implícita. Tínhamos concordado que
minha vida era um caos, passava em média três finais de semana fora da cidade
por mês fazendo merda em várias cidades do país e quando estava no Rio era
aquela zona de sempre. Ninguém toparia entrar nesse carrossel que, no lugar de
unicórnios coloridos andando em círculos ao som de agradáveis músicas
instrumentais de menestréis, tinha motos sujas de graxa e óleo sacolejando ao
som de AC/DC. Exceto, é claro, outra pessoa tão desequilibrada quanto eu. Só
que teríamos um novo problema e não mais uma solução.
- Então
que tal um filho?
O
alto-falante anunciou a Estação Carioca. Puta que pariu! Ela ainda tinha mais
cinco estações para sugerir ideias de merda.
-
Imagino então que, se meu problema fosse temperamento agressivo e instável,
você sugeriria como solução comprar um fuzil.
-
Idiota - ela disse, depois riu, recuperou o ar e prosseguiu. - É sério, você
não tem ideia como isso muda a vida de uma pessoa. Existe uma relação intensa.
Algo químico. Algo biológico. Algo natural mesmo. Uma conectividade entre os
dois que muda tudo. E já muda desde o primeiro momento.
- Isso é
ótimo - falei já dando entender o tom de sarcasmo. - Não bastasse a ideia de criar
um filho, também sugere que eu gere a criança dentro do meu ventre. Então terei
de mudar de sexo! Só melhora!
Preciso
reconhecer que é algo bonitinho o esforço que ela fazia para tentar me colocar
na linha. Reconheço também que ela tem ideias de merda. Afinal, se não é viável
conseguir alguém para tentar um relacionamento o mais curto seja comigo,
imagine convencer este mesmo alguém a propagar meus genes. Ela tinha tanta vontade
que desse certo e estava tão estúpida ao mesmo tempo que beirava o que deveria ser o
conceito original de romantismo.
- Sei
que você não tem coragem, tão pouco vontade de passar um mísero final de semana
comigo em uma viagem. Sei que tudo que você pensa de mim é que sou a última
pessoa apropriada para entrar na sua vida. Mesmo assim, estava aqui pensando
comigo mesmo, que tal se fizéssemos um filho? Iria visitá-lo no único final de
semana de cada mês que estou no Rio. Bem, nem todos, pois rolam uns eventos
profanos imperdíveis. Você sabe, né? Foi assim que nos conhecemos, não é mesmo?
Mas tem um detalhe. Nos raros dias que ficarei com ele, é aconselhável a sua
supervisão integral. Sabe como é, né? Sou distraído! Vai que bebo a mamadeira
dele e dou a ele a minha Stelinha. Sem falar nos meus constantes blackouts por sofás, recepções de hotel
e elevadores. Não vai dar muito trabalho, não. Fique relaxada. O único porém
será a presença de duas potenciais máquinas de vômito, mas a criança sabemos
que é só nos primeiros meses. E aí, o que acha? – Finalizo a fala olhando com
um sorriso forçado para um ponto aleatório à nossa frente, como se estivesse
falando com uma terceira pessoa imaginária.
- Você
é tão idiota – ela exclamou entre uma risada e outra. – Eu teria um filho com você.
- Ah
mas que ótimo! Mais uma ideia genial sua. Vamos misturar a sua imbecilidade com
a minha demência incurável e faremos quem sabe um inhame.
- Nada
disso – ela retrucou me dando uma ombrada. – Você tem coisas boas. É alto,
inteligente, tem senso de humor.
- Puxa,
vou interpretar isso como uma cantada – disse colocando o braço em volta do seu
ombro. – Vamos descer aqui mesmo e voltar lá para casa para iniciarmos a
prática.
- Larga
de ser escroto – ela tirou meu braço de cima do seu ombro dando uma gargalhada.
– Não vai ter sexo, seu idiota!
- Baby,
você sabe muito bem que como todo homem, a punheta faz parte da minha vida. Mas
mesmo com tanto tempo de experiência, punheta com mira telescópica é
complicado. Vai ser difícil acertar sua xoxota à distância de primeira.
- Para,
seu nojento – ela me empurrou. – Sabe que odeio essa palavra.
É curioso
notar que, logo depois de falar que vai brincar de tiro ao alvo com a vagina de
alguém usando o seu próprio esperma, esta pessoa implica apenas com a
terminologia que lhe atinge. Na minha cabeça, a preocupação deveria ser de fato
com o que estaria literalmente me atingindo e onde. Mas enfim, consequências de
conversas sérias que são levadas na banalidade.
Antes
que pudesse discorrer meu já manjado argumento sobre o quanto o termo xoxota é
genial, chegamos à Estação Flamengo. Lá era nosso destino. E, segundo ela, três
amigas estavam à nossa espera.
- Por
favor – ela falou segurando minha mão – não me envergonhe. Promete isso para mim?
Merda! Uma pergunta de sim ou não. E está aí
algo que não posso prometer, não é mesmo?