sábado, 23 de abril de 2016

Pedaços de uma vida encenada

Um para lá, dois para cá
Casa noturna com pouca iluminação direta. Balcão de bebidas, uma mulher encostada nele se distrai com o cardápio de drinks. Um homem para ao seu lado.
[Henrique] Boa noite!
[Vanessa] Boa noite!
[Henrique] Se incomoda se fizer uma cena clichê de cinema da década de 50?
[Vanessa] Hum... O que seria isso?
[Henrique] Oferecer para você uma bebida.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] É tão cafona assim?
[Vanessa] Não, não é. Foi divertido mesmo o que disse. E se eu quisesse algo década de 40? O que receberia?
[Henrique] Provavelmente ofereceria para acender sua cigarrilha.
[Vanessa] Ah é? Que pena. Eu não fumo. Então vamos para a década de 30. O que teria para mim?
[Henrique] Neste caso, só me restaria me comunicar com você em linguagem de mímico ou me oferecer para ganhar um balde de água na cabeça.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Por favor, volte à década de 50. Por favor.
[Vanessa] Ok, década de 50. Pode me pagar uma bebida.
[Henrique] O que você achou interessante aí do cardápio? Bebidinhas divertidas com chapeuzinhos? Drinks coloridinhos?
[Vanessa] O que você vai beber?
[Henrique] Bem, como sou um homem simples, de gostos rústicos e hábitos populares...
[Vanessa] Gostos rústicos? Você vai pedir uma dose de água de cachoeira? Ou vamos cortar um pedaço de cactos e beber seu néctar?
[Henrique] Tem essa opção aqui? Prevejo uma ótima noite.
[Vanessa] Bobo.
[Henrique] Muito precoce para iniciar os elogios, não?
[Vanessa] Muito... Bobo.
[Henrique] Ok, já entendi seu ponto de vista. Bem, vou pedir uma cerveja. E você?
[Vanessa] Está bem, eu te acompanho na cerveja.
[Henrique] Tem certeza? Esta é a chance de pedir alto. Depois de pedir uma cerveja no primeiro encontro, não tem como elevar mais o padrão nos seguintes.
[Vanessa] Isto não é um encontro.
[Henrique] Baby, o que te disse sobre não discutirmos a relação em público?
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Enfim, é a última chance de subir o valor de mercado... Peraí... Isso soou péssimo. Estou dizendo do valor dos seus gostos.
[Vanessa] Você é péssimo.
[Henrique] Já pedi para diminuir com os elogios.
[Vanessa] Ah, você não viu metade. E pode ficar tranquilo, sou uma mulher fácil de se agradar. Mas não se empolgue com isso porque...
[Henrique] Nem mais uma palavra... Rapaz! Tudo bem? Duas cervejas, por favor, enquanto a gata aqui do lado dispara mais um elogio para mim... Obrigado. Estava dizendo?
[Vanessa] Dizia que você é péssimo e que isto não é um encontro.
[Henrique] Tá bom! Vou respeitar seu ponto de vista. Como prefere chamar?
[Vanessa] Duas pessoas bebendo cerveja e conversando de maneira descontraída por um curto tempo.
[Henrique] Curto tempo? Como assim? Já vai me deixar? Não acredito. O que está acontecendo? Bem que notei que ultimamente andava fria e distante comigo. É aquele cara da contabilidade que fica te cercando na hora do almoço? Pode falar. Não, não diga. Não sou capaz de lidar com isso. Vamos focar em nós dois. Vamos salvar este relacionamento. Uma viagem no fim de semana. Vamos para a serra. Serra, frio, lareira, edredom, fondue, vinho. Faremos nosso primeiro filho e dessa vez deixo você escolher o nome. Mesmo se insistir em colocar Henrique.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] É, eu sei que ouvindo em voz alta Henrique é um nome horrível. Todo Henrique um dia já foi uma criança gordinha com tetinhas.
[Vanessa] Você é horroroso. E o pior é que já conheci um Henrique que era gordinho na infância.
[Henrique] Todos são. Todos.
[Vanessa] Enfim... Apesar de toda a sua loucura, até que gostei da proposta da serra. Exceto a ideia de ter filhos que não me agrada nem um pouco.
[Henrique] Ok, sem filhos. Vamos criar gatos. Doze gatos. Gatos pedem nomes eruditos. Colocaremos nomes de autores neles: Hemingway, Veríssimo, Dostoievski, Neruda, Clarice...
[Vanessa] Para, homem! [RISOS] Pare! Se controle.
[Henrique] Tudo bem... Parei...
[Vanessa] Muito bem. Apesar de você ficar mais interessante falando compulsivamente.
[Henrique] Ahá! Eu sabia...
[Vanessa] Pare! Deixe-me falar.
[Henrique] Quietinho.
[Vanessa] Como dizia, somos duas pessoas bebendo cerveja e conversando de maneira descontraída por um curto tempo. Já, já, minha companhia chega.
[Henrique] Ahn... Você é comprometida.
[Vanessa] Não diria comprometida.
[Henrique] Opa!
[Vanessa] Não se anime. Como disse, é minha companhia. Estamos nos conhecendo.
[Henrique] Conhecendo? Então estão no... Sei lá... Terceiro encontro?
[Vanessa] Segundo.
[Henrique] Ahá! Até o fim do segundo encontro tudo pode ser cancelado sem prejuízo para o solicitante. Isto é uma cláusula universal das regras básicas de relacionamento a dois. Pode ler nos termos de compromisso do Tinder. Está lá. Não que eu tenha o Tinder. Apenas soube por um amigo de uma prima que comentou em uma rede social algo do tipo.
[Vanessa] Não vai ter cancelamento algum. Eu já disse que estamos nos conhecendo.
[Henrique] Para quê? Nessa nossa conversa você já me conhece mais do que ele. Sabe que curto serra, frio, edredom e fondue. Descobriu também que sempre queimo a língua na parte do queijo e sujo a camisa com o chocolate.
[Vanessa] Não sei, não!
[Henrique] Bem, é bom saber porque te farei passar vergonha. Sempre uma lambança generalizada.
[Vanessa] Que horror! Bem... Eu também sou bastante desastrada.
[Henrique] Deixe-me adivinhar. Estabanada, esbarra em tudo, vive cheia de roxos misteriosos pelas pernas e evita entrar em loja de taças de cristais.
[Vanessa] MEU DEUS! Como sabe?
[Henrique] Essa frase é quase uma previsão de horóscopo, se adequa a quase todas as mulheres.
[Vanessa] Quase todas?
[Henrique] Sim, quase todas, exceto pelas que não acreditam nisso. Só que como elas não vão ler mesmo, então podemos dizer que se adequa a todas que leem.
[Vanessa] Que terrível. Faz sentido, mas é terrível.
[Henrique] Bem, posso pedir outras duas cervejas enquanto liga para o rapaz cancelando o encontro?
[Vanessa] Não vai ter cancelamento.
[Henrique] Você às vezes é muito turrona, sabia? Rapaz, mais duas cervejas, por favor. E dessa vez, traga aquela te paguei para dissolver sonífero.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Aqui está. Um brinde ao nosso primeiro encontro!
[Vanessa] Um brinde à minha advogada que vai ter de dar entrada no pedido de uma medida cautelar contra você na segunda bem cedo.
[Henrique] QUE HORROR!
[Vanessa] Como que horror? Você me parece muito maluco e mal te conheço.
[Henrique] Como mal me conhece? E tudo que já sabe de mim?
[Vanessa] Eu sequer sei seu nome.
[Henrique] Hum... Ok... Deixe-me apresentar. Meu nome é Henrique.
[Vanessa] Você está me zoando?
[Henrique] Não mesmo.
[Vanessa] Céus, você era uma criança gordinha com tetinhas.
[Henrique] Você tinha me prometido no nosso primeiro encontro nunca fazer bullying da minha infância.
[Vanessa] Foi mais forte do que eu. Meu nome é Vanessa.
[Henrique] Vanessa com W?
[Vanessa] Não, com V mesmo.
[Henrique] Um N ou dois?
[Vanessa] UM! Quem tem dois no nome?
[Henrique] Ah, não duvide da criatividade de mães que precisam muito afirmar no nome dos filhos o quanto eles são especiais. Obviamente com o tempo eles vão descobrindo que o nome acaba virando uma maldição. Poucas pessoas vão escrevê-lo corretamente. Nas lojas de lembranças raramente terão quinquilharias com os nomes gravados exatamente como gostariam que fosse. Sem falar do risco de se juntarem com outra pessoa com um nome tão exótico quanto e acabarem formando um casal cujo nome parece uma reação química.
[Vanessa] Você é inacreditável.
[Henrique] Inacreditável do tipo ótimo que dá vontade de agarrar no meio da rua e torcer para chover ao mesmo tempo? Ou inacreditável por visivelmente possuir transtornos psicológicos que colocam em risco membros da sociedade analisada, diagnosticada e tratada?
[Vanessa] Eu ia falar inacreditável do tipo enxergar tudo de maneira desastrosa. Mas já que falou em transtornos...
[Henrique] Ora, para quê prosseguir? Vamos continuar apenas com a sua tese da minha realidade míope. Segundo encontro então? Quando foi o primeiro?
[Vanessa] Semana passada. Aqui mesmo.
[Henrique] Frequenta muito este local?
[Vanessa] Não era muito de sair até um ano atrás. Depois que me divorciei voltei para a vida noturna e virei um pouco figurinha marcada aqui. E você?
[Henrique] Eu?
[Vanessa] Sim, você! Você frequenta muito este lugar?
[Henrique] Ah sim. Antes e depois do seu divórcio.
[Vanessa] Jura? E nunca nos esbarramos?
[Henrique] Na verdade, eu tinha te notado semanada passada. Te achei muito interessante, mas como estava acompanhada... Quero dizer... Estava conversando com um rapaz que provavelmente é o que você vai dar um pé na bunda hoje...
[Vanessa] PARA!
[Henrique] Ok. Como dizia, tudo verdade. Só que não iria interromper a sua conversa.
[Vanessa] Olha, a sua personalidade tagarela descontrolado é bastante divertida, mas mentiroso cara-de-pau para me agradar não cola.
[Henrique] Saia preta curta, uma blusa de tecido mole em uma cor meio cinza com brilho e seu penteado era uma trança.
[Vanessa] Meu... Pai... Do... Céu! Você é mesmo um psicopata Serial Killer.
[Henrique] Ah pare com isso! Foi fofo.
[Vanessa] Foi assustador!
[Henrique] Não vou falar mais coisa alguma.
[Vanessa] Por que? Acha que consegue ficar pior que isso?
[Henrique] Meus gostos. Você jamais entenderia.
[Vanessa] MEU DEUS! VOCÊ LEU 50 TONS DE CINZA!
[Henrique] Ah para! Foi uma referência boa e apropriada para a deixa. Vai! Dá um desconto. Fui sagaz.
[Vanessa] Tá, vou dar o braço a torcer. Foi bem rápido mesmo. Agora disfarce que ele está chegando.
[Henrique] Qual o nome dele?
[Vanessa] Ahn?
[Henrique] O nome! Qual é?
[Vanessa] Por que quer saber?
[Henrique] Mas que raios de mulher teimosa. Nem quero imaginar quando estivermos com setenta anos morando em Iguaba. Fale o nome dele.
[Vanessa] Você é doido! César! O nome é César.
Um homem se aproxima e Henrique toma a frente de Vanessa.
[Henrique] César! Ainda bem que você chegou. A Vanessa não para de falar de você. Só que preciso te pedir uma coisa...
[Vanessa] Não vai pedir coisa alguma. Oi, Cesar. É o seguinte... Este é o Henrique. Ele é ex-namorado de uma prima minha. Não sei se comentei deles para você. Relação conturbada. Vai e volta. Terminam, fazem as pazes, brigam novamente. Enfim... Aquela coisa chata de sempre. Esbarrei com o Henrique aqui e ele começou a lamentar as pitangas comigo.
[Henrique] Muito triste.
[Vanessa] Fica quieto. Ele fica nervoso quando o assunto é minha prima e fala compulsivamente. Ele a ama demais.
[Henrique] Demais.
[Vanessa] É, ele ama a minha prima.
[Henrique] Eu amo a Jenifer.
[Vanessa] Quem?
[Henrique] Jenifer, sua prima.
[Vanessa] É, ele ama a minha prima Jenifer.
[Henrique] E não é Jenifer com apenas um N e um F, não. São dois.
[Vanessa] Exato, ela mesma. Posso continuar?
[Henrique] Pode. Foi só para ele se situar melhor na história. Amo a prima Jenifer, irmã de Jeferson.
[Vanessa] Pois é, irmã de Jeferson que se não me engano deve ter até um W no final do nome.
[Henrique] EXATO!
[Vanessa] Então, César. Desculpe-me por esse papo maluco, mas estou apenas te explicando a conversa aqui com ele. Tem como esperar uns dez minutos lá na área externa e já saio. Só vou tentar colocar a cabeça desse rapaz em ordem.
[Henrique] Obrigado, César. Juro que não vou ocupar muito o tempo dela...
César saindo de cena.
[Henrique] Não vou ocupar muito tempo, não. Vou ocupar minha vida com você, sua doida. Esse foi o pé na bunda mais sutil e discreto que já vi na vida. Como não te amar?
[Vanessa] Pare de se achar. Não foi um pé na bunda de ninguém. Apenas ganhei mais dez minutos.
[Henrique] Com dez minutos dá tempo de irmos a algum cartório 24 horas e nos casarmos. Se aqui fosse Vegas, nos casaríamos com um padre Elvis e Storm Troopers como testemunhas.
[Vanessa] Pare, homem. Não é nada disso. Estou apenas curiosa sobre o que viu na sexta passada.
[Henrique] Ah sua danadinha! Você quer que eu massageie um pouco seu ego para depois se agarrar com aquele almofadinha que pelo corte de cabelo deve dormir de rede na cabeça? É isso mesmo? Pois saiba que ainda bem que tenho uma combinação de baixa auto-estima como inocência de uma chinchila e, só por isso, farei o que está pedindo.
[Vanessa] Cara, você fala muito para quem tem apenas dez minutos em jogo.
[Henrique] Temos algo em jogo? Parece que as coisas agora ficaram interessante para o meu lado, não é mesmo?
[Vanessa] Homem de Deus, você é a versão humana do coelho da Alíce no País das Maravilhas.
[Henrique] Olhas os elogios voltando para...
[Vanessa] FALA!
[Henrique] Ok... Você estava de saia...
[Vanessa] Eu sei como estava vestida. Quero saber da sua impressão.
[Henrique] Ahn... Você estava linda. Estava estonteante. Naquele dia, sim, você poderia e teria todo o direito de me achar um Serial Killer. Acho que fiquei uns dez minutos te admirando. Com um detalhe, fiquei te admirando conversando com outro cara. Daí quando cheguei aqui hoje... Bem, estava despretensioso... Aí te vi no balcão e nem pensei na possibilidade de estar acompanhada do tal cara. Respirei fundo e apareci. Então... Cá estou...
[Vanessa] Acho que é a primeira vez que fala mais de uma frase em sequência sem me irritar.
[Henrique] Ora, sua fofa. Bem, parece que sobrevivi a você então. Além disso, você ganhou o tal elogio que queria ouvir. É neste momento que você faz um elogio que soará mais como um eufemismo para mim e irá embora?
[Vanessa] Você ainda tem mais cinco minutos e quero outro elogio.
[Henrique] Outro?
[Vanessa] Sim, você me elogiou pelo que viu na semana passada. Quero algo de hoje.
[Henrique] Vanessa, não sei onde está querendo ir com essa conversa, mas não se esqueça que sou uma pessoa um pouco descontroladamente articulada.
[Vanessa] Quatro minutos.
[Henrique] Você está tão linda como se fosse a primeira vez, mesmo parecendo hoje uma mulher completamente diferente da semana passada.
[Vanessa] Ahn? Como assim?
[Henrique] Bem, basicamente na semana passada você estava uma mulher da noite. Sua saia curta e blusa com brilho chamavam atenção igualmente à maioria das mulheres solteiras por aqui. Hoje, com esta calça e uma blusa social em cor clara, você está mais discreta. É como se na semana passada você estivesse vestida para curtir e badalar. Já hoje está parecendo namoradinha de relacionamento estagnado. Ou alguém indo para festa de criança sem pais divorciados interessantes.
[Vanessa] Que horror! Não acredito que gastou seus últimos minutos falando esta besteira tão grande.
[Henrique] Acabou o tempo?
[Vanessa] Sim, acabou. Passar bem, Henrique.
[Henrique] Peraí! Não saia daí. Eu tenho direito a uma apelação.
Henrique se afasta, vai até uma porta que dá acesso à área externa e grita:
[Henrique] CESAR! AQUI! NÃO! PODE FICAR MAIS UM POUCO AÍ. PRECISAMOS DE MAIS DEZ MINUTOS. NÃO VAI ACREDITAR. A VANESSA ESTÁ LIGANDO PARA A MÃE DA JENIFER PARA TENTAR COMOVÊ-LA A ME AJUDAR. QUEM DIRIA? ELA ESTÁ LIGANDO PARA A DONA STEPHANIE. MAL QUEIRA SABER COMO SE ESCREVE.
Henrique volta para Vanessa.
[Vanessa] Você é inacreditável. Não bastante tudo, ainda difama minha família imaginária.
[Henrique] Pois é, eu te avisei antes. Deixe-me refazer a minha colocação. Note que não vou mudar o sentido do que disse, talvez explicar melhor a minha intenção. Semana passada... Vanessa da semana passada. Mulher produzida para a balada. O que eu vi ali? Mulher descontraída que antes de qualquer coisa está procurando diversão. Uma mulher que não se preocupa como a noite vai terminar. Hoje. Vanessa de hoje. Contida, discreta e tentando passar despercebida pela casa. E tem um detalhe. Está no segundo encontro. Quer mostrar que não é apenas baladeira, mas tranquila. Mulher para namorar. Aposto que seu ex-marido não curtia sair.
[Vanessa] Hum... Entendi seu ponto de vista... Talvez seja meu subconsciente me pregando uma peça. De fato, quando casada, raramente saíamos para vida noturna. Ele tinha um péssimo hábito de levar os amigos para ficar jogando videogame lá em casa e eu passava a noite na varanda com as esposas bebendo prosecco e tentando rir das mesmas histórias de sempre. Depois de quase um ano divorciada e dando oportunidade para vários caras que confundem as coisas achando que mulher na noite é só para a noite, acho que me sabotei. Conheci um cara legal e...
[Henrique] Sou eu!
[Vanessa] Cala a boca! Conheci um cara legal que não estava cheio de pressa e parecia querer dar uma chance maior a coisa e o que faço? Me visto como a antiga Vanessa caseira. Que ódio! Qual o problema de vocês?
[Henrique] Vocês quem, Fraulein Maria?
[Vanessa] Quem?
[Henrique] Fraulein Maria! Noviça Rebelde! Suas roupas. Você recatada.
[Vanessa] Ah não pesquei. Enfim, estou falando de vocês homens que não nos levam a sério, confundem tudo e nos deixam assim como baratas tontas.
[Henrique] Novamente... Vocês quem? Eu não faço isso. Quero dizer... Eu levo vocês a sério. Não faço o tal negócio de confundir a cabeça de vocês. O que precisa estar bem definido dentro de você é qual Vanessa você quer ser. Hoje estou lidando com as duas ao mesmo tempo. Esteticamente, na minha frente está a mocinha da varanda. Já na interação está a Vanessa baladeira, capaz de ficar um bom tempo conversando com um total estranho... Estranho nos dois sentidos, não precisa falar... Fica conversando com um total estranho ao ponto de dispensar, mesmo por alguns minutos, o encontro que tinha marcado.
[Vanessa] E qual você prefere?
[Henrique] Faz diferença?
[Vanessa] Para mim, sim.
[Henrique] Consegui ter importância para você.
[Vanessa] A sua opinião tem.
[Henrique] Você sabe ser cruel, não é mesmo?
[Vanessa] Você não viu nada. Jamais entenderia meus gostos.
[Henrique] Sua cafona! Uma mulher vestida assim jamais leria 50 Tons de Cinza.
[Vanessa] [RISOS]
[Henrique] Bem... O que importa para mim é a interação.
[Vanessa] Não, quero saber dos trajes.
[Henrique] Eu prefiro você sem eles.
[Vanessa] Estava indo tão bem que diria que ia conseguir isso.
[Henrique] Peraí... Deixe-me consertar mais uma vez... Isso não é justo. Eu sou ansioso.
[Vanessa] Confessa. Seja honesto. Vamos. Se, na semana passada, eu estivesse vestida assim, jamais chamaria sua atenção.
[Henrique] Claro que não! Digo... Como discordo do que disse?
[Vanessa] Dizendo que sim.
[Henrique] Discordo com um sim?
[Vanessa] Sério que acha que vai me conseguir ver nua assim?
[Henrique] NÃO! Digo... Ok... Serei sincero. Só reparei na sua roupa semanada passada bem depois de quando te vi. O que me chamou a atenção foi seu sorriso. E que inveja daquele maldito almofadinha bananão aceitando esperar passivamente lá fora que te provocou um sorriso tão lindo.
[Vanessa] Meu senhor! O César!
[Henrique] Ah agora você vai esperar. Prometo que serei rápido. Vou começar citando na íntegra a passagem de Dante e Virgílio pelo primeiro círculo do inferno em A Divina Comédia.
[Vanessa] Fala logo, homem. Pare com essa baboseira de referências que você já me ganhou com a proposta da serra com fondue.
[Henrique] Sério?
[Vanessa] FALA!
[Henrique] Eu já entendi o ponto da sua curiosidade. Você quer saber com qual das duas vestes de Vanessa eu me interessaria para namorar, correto?
[Vanessa] Exato!
[Henrique] Nenhuma das duas.
[Vanessa] Ah, e você é o cara que não gosta de confundir as cabeças e que leva as mulheres a sério? Ficou com meu suposto sorriso lindo na cabeça e veio puxar assunto apenas para tentar me pegar. Depois iria me descartar no meio da madrugada, né? Eu já devia desconfiar. Eu conheço seu tipinho.
[Henrique] Meu tipinho?
[Vanessa] Sim, seu tipinho. Você não me engana. Devia ter desconfiado quando disse que sempre frequentou isso aqui. Solteirão convicto. Vem com essa fala cheia de veneno, amolece o coração das mulheres, usa e vai embora. Eu não estou tão afiada quanto gostaria, mas esse ano solteira, passando o que passei, consegui ficar um pouco ligada com pessoas como você. Estou mais arisca e capaz de me defender da tática de caça.
[Henrique] Tática de caça?
[Vanessa] Isso! Tática de caça. Esse método que usam para cantar a mulherada.
[Henrique] Eu, honestamente, nunca pensei assim. Sempre enxerguei como uma dança. Minha mãe dizia que na época dela, na época dos grandes bailes, os rapazes mais namoradeiros... Termos dela... Os rapazes mais namoradeiros eram os que sabiam dançar. Tiravam as mocinhas para a pista e mais da metade do trabalho estava feito. Eu nunca soube dançar. Então a conversa virou a minha dança. Tiro as mulheres para dançar e, tentando ditar o ritmo, as conduzo para meu habitat natural, a conversa furada que cerca e envolve. Não vou mentir, sou treinado pelos clássicos. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa. Harry & Sally. MASH.
[Vanessa] MASH?
[Henrique] É, MASH é necessário para afiar o diálogo de cinismo. Como dizia... Faço isso mesmo, mas porque estou interessado na pessoa. Essa história de transformar mulher em descartável é coisa da sua cabeça. Eu nunca fui solteiro a vida toda. Fui casado por quase sete anos. Nem por isso paramos de frequentar a noite. Éramos um casal da noite. Acabou, não deu certo, mas continuamos pessoas da noite. Ela com a vida dela e eu com a minha. Só que isso não implica necessariamente que queremos ficar solteiros para sempre para curtir a noite. Eu curtia a noite acompanhado e sei perfeitamente fazer isso.
[Vanessa] E por que não está então?
[Henrique] Não está o quê?
[Vanessa] Acompanhado.
[Henrique] Porque não encontrei uma pessoa que quisesse entrar nessa vida comigo.
[Vanessa] Ora, se é só isso, por que respondeu nenhuma das duas? Deveria ter respondido que prefere a Vanessa da semana passada.
[Henrique] Respondi nenhuma das duas porque jamais pensaria em namorar alguém que acabei de ver na noite.
[Vanessa] Ah então a mocinha do sorriso lindo não é mais tão interessante para você?
[Henrique] Claro que é. Tanto que estou aqui falando com você mesmo sabendo que ao final da conversa é com outro cara que vai ficar. O que precisa entender é que você ser interessante, depois de toda conversa que tivemos, virou um atributo óbvio para conseguir minha atenção. O problema está em você decidir qual Vanessa quer ser. Quando descobrir é só me procurar neste mesmo balcão que frequento tem muitos anos. Com certeza estarei preparado para te metralhar com uma sequência de frases surreais que tentarão te tirar do sério... Rapaz, por favor, apenas uma cerveja desta vez porque ela está de saída, creio eu.
Vanessa sai calmamente, vai até a porta que dá acesso à área externa e grita:
[Vanessa] CÉSAR, PRECISO QUE VÁ ATÉ O MEIER BUSCAR MINHA PRIMA JENIFER. PEGUE UM TAXI QUE VOU TE MANDANDO AS ORIENTAÇÕES PELO CELULAR.
Vanessa volta para o lado de Henrique.
[Vanessa] Eu quero ser a Vanessa que se irrita com sua incapacidade de calar a boca, a ponto de resolver isso te beijando.
[Henrique] Rapaz, eu me enganei. Pode pegar outra cerveja, por favor.