quarta-feira, 6 de abril de 2016

Pedaços de uma vida encenada

A incrível improvisação lisérgica de Flávio Nogueira
Início de cena
[♪]: Som de campainha
Um homem (Flavio Nogueira) com mais de cinquenta anos que está vestindo uma calça jeans surrada e uma camisa básica puída abre a porta. Ele está descabelado, olhos vermelhos e com um cigarro pela metade na boca. Do outro lado outro da porta, um rapaz (Armando) por volta de vinte e poucos anos vestindo calça social e camisa social de mangas curtas.
[Armando] Senhor Nogueira?
[Flávio Nogueira] Sou eu. Quem é você?
[Armando] Sou o Armando.
[Flávio Nogueira] Armando.
[Armando] Armando.
[Flávio Nogueira] Armando.
[Armando] Sim, Armando.
[Flávio Nogueira] Quem é você, Armando?
[Armando] Sou o assistente do Tarcísio Bulhões. O editor do jornal Folhetim Diário.
[Flávio Nogueira] Sim. Sim. Armando. Sim. Armando assistente do Tarcisio. Grande Tarcisio! Não tão grande, né? Quanto ele tem de altura? Um metro e setenta? Não, talvez menos. Mas um grande profissional. Você concorda comigo?
[Armando] Sim, concordo, senhor.
[Flávio Nogueira] Concorda com ele ser um grande profissional ou ele ter um metro e setenta?
[Armando] Ser um grande profissional.
[Flávio Nogueira] E quanto você acha que ele tem de altura?
[Armando] Não sei precisar, senhor.
[Flávio Nogueira] Ele é mais alto ou mais baixo que você? Qual seu nome mesmo?
[Armando] Ele é mais alto, senhor. Meu nome é Armando.
[Flávio Nogueira] Sim. Sim. Armando. Grande Armando! Não tão grande quanto o Tarcísio, não é, Armando? Essa foi boa. Quanto você mede, Armando?
[Armando] Não tenho a menor ideia, senhor. Eu estou aqui apenas...
[Flávio Nogueira] Entre, Armando! Entre. Eu tenho uma fita métrica aqui. Vamos medir a sua altura.
Flávio Nogueira conduz Armando para dentro da sua casa. A sala é muito bagunçada. Livros, garrafas de cerveja e bitucas de cigarro para todos os lados. Em uma mesa de centro, Armando visualiza um baseado, cocaína e copos vazios. Flavio Nogueira sai em direção a algum quarto enquanto na sala Armando fica espantado com o cenário. Um tempo depois Flavio Nogueira volta.
[Flávio Nogueira] Olá. Quem é você?
[Armando] Sou Armando, senhor Nogueira.
[Flávio Nogueira] Armando?
[Armando] Sim, senhor Nogueira. Sou assistente do editor chefe do jornal...
[Flávio Nogueira] Ah sim. Sim. Sim. Lembrei. Você veio me entregar uma fita métrica.
[Armando] Não, senhor Nogueira. Eu vim aqui para... O senhor está bem?
[Flávio Nogueira] Sim. Claro. Não. Quero dizer. Depende. Quando fecho os olhos vejo figuras infinitas com cores vibrantes. Sabe do que estou falando, Armando? É só fechar os olhos. Aqui. Olha.
Flávio Nogueira tapa os olhos com as mãos.
[Flávio Nogueira] Vou fechar os olhos. Veja! Bonequinhos cabeçudos. Um do lado do outro. Vão diminuindo de tamanho conforme se enfileiram na direção do horizonte. Vai ficando infinito. Veja! Não acabam. São muitos! Muitos mesmo! Todos coloridinhos. Uma coisa linda. Nem tenho coragem de abrir os olhos.
Flávio Nogueira tira as mãos do rosto e abre os olhos.
[Flávio Nogueira] Olá. Quem é você?
[Armando] Sou Armando, senhor.
[Flávio Nogueira] O que está fazendo aqui?
[Armando] Estou vendo você e seus bonequinhos coloridos enfileirados até o infinito.
[Flávio Nogueira] Você também os viu?
[Armando] Não, não os vi, senhor. Eu na verdade estou aqui para...
[Flávio Nogueira] Deveria ter visto. São muitos! Muitos para valer. Tipo uns trinta. NÃO! Muito mais! Muito mais mesmo! Uns vinte. Não. Isso é menos. Não é? Quanto falei antes?
[Armando] Senhor Nogueira, por favor, posso falar?
[Flávio Nogueira] Sim, claro, rapaz. Você quer uma água? Nem te ofereci. Que falta de educação a minha. Tem água, tem cerveja e uísque. Tenho também um baseado nervoso aqui. Não fui eu que apertei. Eu não sei fazer essas coisas. Mentira! Claro que sei. Eu sou muito ansioso mesmo. Não consigo ficar enrolando e arrumando. Me dá umas coisas, acabo colocando tudo no cachimbo e fumo lá mesmo. CACHIMBO! Você fuma uma pedrinha? Tem também. Tem pó, mas ele é meio ruim. Vou reclamar inclusive com a Marlene. Ela é a minha diarista. Faxineira! Ela arruma essa bagulhada toda que estou consumindo e ainda aperta o baseado. Ela aperta o baseado. Indiquei a Marlene para uma vizinha daqui e ela ficou decepcionada porque não sabia passar roupa. Minha senhora, ela sabe apertar um baseado como ninguém, para quê passar roupa? Enfim, o pó é ruim. Vou reclamar com ela. Tem LSD também. Sabe? Papel? Vocês chamam agora de doce, né? Doce é o cacete! Se eu fosse traficante ia ficar muito puto. Chega o cara perguntando “tem doce?”. Enfiaria minha pistola na cara dele e diria “eu tenho cara de Halloween?”. Será que traficante sabe falar Halloween? Enfim, tem papel. Mentira! Acabou. Gastei tudo hoje.
[Armando] É, eu estou percebendo. Mas não precisa. Obrigado.
[Flávio Nogueira] Então, no que posso ser útil?
[Armando] O Tarcísio está te ligando o dia todo e não consegue falar com o senhor. Agora imagino o motivo. Enfim, já passou do prazo do senhor enviar a sua coluna que será publicada no domingo. Ele pediu para tentar pegar pessoalmente com o senhor.
[Flávio Nogueira] Rapaz, eu esqueci. Esqueci totalmente. Estou nessa já tem uns dias e esqueci. É impossível se concentrar com os bonequinhos...
[Armando] Infinitos com cores vibrante. Eu sei, senhor.
[Flávio Nogueira] Você viu? É só fechar os olhos e...
[Armando] Não feche os olhos, por favor, senhor.
[Flávio Nogueira] Ok.
[Armando] Só preciso do texto.
[Flávio Nogueira] Posso te falar uma coisa?
[Armando] Sim, pode, senhor.
[Flávio Nogueira] Você já viu aquelas bicicletas de andar acompanhado que alugam lá na Lagoa Rodrigo de Freitas? Não literalmente na Lagoa. Literalmente na Lagoa seriam pedalinhos, né? Estou falando daquelas bicicletas que são duas rodas atrás e uma na frente. Bem lá na frente. Tem um ferro comprido toda vida e no final a rodinha. Podem sentar até três pessoas. Não na rodinha. Na casinha que vem atrás sobre as duas outras rodas. Estou explicando direito? Então, lá tem essas bicicletas. Ontem, eu estava vendo várias delas por aqui. Só que no lugar da bicicleta, as pessoas ficam em cima de um enorme cachorro salsicha. Veja só que doideira.
[Armando] Senhor...
[Flávio Nogueira] Qual o nome do cachorro salsicha mesmo?
[Armando] Dachshund.
[Flávio Nogueira] Tem certeza? Não é Cocker alguma coisa?
[Armando] Cocker Spaniel.
[Flávio Nogueira] Isso! Sabia!
[Armando] Não, senhor. Cocker Spaniel é outro cachorro.
[Flávio Nogueira] Outro? Qual?
[Armando] Ele é de pequeno porte também. Tem as orelhas um pouco compridas. Costuma ter um problema de mau cheiro por conta de uma glândula.
[Flávio Nogueira] Isso não é um gambá?
[Armando] Não, senhor.
[Flávio Nogueira] Tem certeza?
[Armando] Absoluta.
[Flávio Nogueira] Você é veterinário?
[Armando] Não, senhor. Sou assistente do...
[Flávio Nogueira] Estou brincando. Sei quem você é. Qual o nome mesmo?
[Armando] Armando.
[Flávio Nogueira] Não, garoto! Está doidão? Do cachorro! Qual o nome dele mesmo?
[Armando] Ahn! Dachshund.
[Flávio Nogueira] Eita que nome difícil. Por isso que ficou popular o nome cachorro salsicha. Ninguém sabe escreve esse demônio de nome. Na verdade, muito não sabem escrever sequer salsicha.
[Armando] Por falar em escrever, senhor...
[Flávio Nogueira] Exato! Você sabe escrever salsicha?
[Armando] Claro que sei, senhor.
[Flávio Nogueira] Soletre, por favor.
[Armando] Senhor, preciso da sua coluna para publicar no domingo.
[Flávio Nogueira] Menino, já disse que não escrevi. Essa semana foi toda nesse ritmo. Não gosto de ser pressionado.
[Armando] Não me leve a mal, senhor. Para mim, estar na casa do grande autor Flavio Nogueira é uma grande honra. Logo, fazer cobranças ao senhor me deixa muito desconfortável. O problema é que o senhor Tarcísio me orientou a não voltar sem uma coluna sua. Claro que ele antecipou que pudesse presenciar uma situação peculiar, mas não imaginava algo deste tipo.
[Flávio Nogueira] É, rapaz. Seu chefe estava certo.
[Armando] Enfim, como pode me ajudar? Não tem um backup ou alguns textos inéditos guardados para situações como estas?
[Flávio Nogueira] Backup! Claro! Tenho alguns textos em um pendrive. Está ali em cima da mesa. Ali. Aquele negócio branco.
[Armando] Senhor, isto não é um pendrive. Isto é um dado.
[Flávio Nogueira] Um dado?
[Armando] Sim, um dado.
[Flávio Nogueira] Que tipo de dado?
[Armando] Um dado erótico.
[Flávio Nogueira] Um dado erótico? Papagaio! Jogue para cá.
Armando joga o dado com pouca força e acaba caindo no chão próximo aos pés de Flávio Nogueira.
[Flávio Nogueira] Tire uma peça de roupa.
[Armando] Ahn?
[Flávio Nogueira] Tire uma peça de roupa. Está aqui! O que sai no dado precisa ser feito. Você jogou o dado e agora precisa cumprir.
[Armando] Eu não joguei o dado. O senhor pediu.
[Flávio Nogueira] Mas você jogou. Tire uma peça.
[Armando] Eu não joguei de jogar. Eu joguei de arremessar.
[Flávio Nogueira] Você jogou. Acabou de confessar. Pode tirar uma peça.
[Armando] Senhor, tente me entender. Eu joguei o dado. Digo. Eu arremessei o dado porque você pediu. Isso não significa que joguei porque estava jogando o jogo. Ah, o senhor me entendeu.
[Flávio Nogueira] Rapaz, a regra é clara. Arremessou o dado, tem de fazer o que saiu. Tire uma peça. Vamos.
[Armando] Ok. Peraí. Pronto. Tirei.
[Flávio Nogueira] Você tirou um sapato.
[Armando] E daí?
[Flávio Nogueira] E daí que isso não conta como uma peça.
[Armando] Claro que conta.
[Flávio Nogueira] Claro que não! Para sapatos, uma peça é o par. É a unidade comercializada. Onde já se viu comprar apenas um sapato? Até um perneta compra dois sapatos, não compra? Ou não? Como será que eles fazem? Será que compram só um e ganham cinquenta por cento de desconto? Não, não é possível. Imagine uma loja que esteja com má sorte e só atendeu ultimamente pessoas sem a perna direita. Não é justo. Além do mais, nunca vi uma loja com cartaz escrito “grande saldão de pés direitos”. Eles compram o par com certeza. Engraçado. Fiquei intrigado. O que eles fazem com o outro pé? Será que jogam fora? Será que existe algum aplicativo tipo Tinder para encontrar a sua cara metade? Digo, seu par de sapatos metade. Imagine só a descrição: “Meu nome é Jorge e procuro pessoas sem o pé direito para dividir pares de sapatos. Calço 42 e possuo joanete. É importante que sejam confortáveis. Não sou preconceituoso, mas dispenso sapatênis.”.
[Armando] Senhor, é uma interessante reflexão. Veja, tirei o outro sapato. Podemos ver o seu texto? Onde está o pendrive?
[Flávio Nogueira] Não sei! Era para estar aí! Provavelmente a menina que trouxe o dado erótico para brincar comigo foi embora com o pendrive por engano.
[Armando] Senhor Nogueira, isto é muito grave. Como faremos agora? Não posso voltar para a redação sem a sua coluna. Meu emprego depende disto.
[Flávio Nogueira] Ok. Não se preocupe, rapaz. Vamos improvisar um agora mesmo. Sou muito bom nisto. Precisamos de um assunto. Fale algo.
[Armando] Desculpe-me, senhor. Estou muito nervoso com a possibilidade de perder o meu emprego. Nada mais me vem à cabeça.
[Flávio Nogueira] Tudo bem. Tudo bem. Sem pânico, rapaz. Sem pânico, Flávio Amaral. Vou escrever sobre algo que falamos hoje. Será um tema recente e fluirá facilmente. PERNETAS! Sim! Um conto fantasia. Uma nova síndrome. As pessoas são vacinadas com genes de lagartixa para se regenerarem em caso de amputação. Isso! Mas vai dar errado! A pessoa tem a perna amputada, só que não nasce outra perna. Não! Vai acontecer ao contrário com as pessoas. A partir do membro amputado começa a surgir uma pessoa. Um gêmeo do amputado, só que sem a outra perna. Daí, todo amputado vai ter um novo gêmeo, mas faltando exatamente a perna que ele tem. Entendeu? É isso! Excelente! Com isso, cada um tendo o seu gêmeo amputado simétrico, os problemas dos pares de tênis pela metade se resolvem.
[Armando] Senhor Nogueira, mesmo para os seus leitores acostumados com seus textos, acredito que esse será muito agressivo. Melhor pensar em outra coisa mais dentro da sua linha habitual.
[Flávio Nogueira] Bem pensado. O que tem em mente? Que linha minha?
[Armando] O senhor costuma escrever muito sobre sexo. Que tal? É um tema fácil. Quero dizer. Para o senhor, deve ser um tema fácil.
[Flávio Nogueira] Sexo? Sim. Sexo! Todos gostam de ler sobre sexo. Eu escrevo muito sobre sexo. Adoro escrever sobre sexo. Vamos pensar em algo. Deixe-me acender apenas o baseado para dar aquela ajuda.
Flávio Nogueira pega o baseado na mesa de centro e acende. Amaral aumenta seu olhar de preocupação com a cena. Após dois tragos bem longos, Flávio Nogueira prossegue.
[Flávio Nogueira] Uma mulher que cansou de responder para os homens se ela gozou. Rosana o nome dela. Sempre que transava, os homens ao final perguntavam para Rosana se ela tinha gozado. Cansada disto, ela passa a emitir certificados para eles: “Parabéns, você me fez alcançar um orgasmo.”. Isso! Não! Melhor ainda. Ela não entrega o certificado na hora. Acabou a transa, o cara pergunta se ela gozou e Rosana responde “compareça no dia 18 de agosto no auditório principal da UFRJ para a entrega de graus.”. Vai ter toda uma cerimônia. Hino nacional no início e tudo. Os homens que transaram com ela perfilados usando beca. Discursos padrões. Homenagem aos pais: “Queremos agradecer aos nossos pais pela educação dada e nunca ter interferido nas nossas punhetas escondidas durante o banho que nos ajudou a conhecer melhor o corpo.”. Homenagem a Deus também: “Agradecemos a Deus por colocar Rosana em nossas vidas e por não nos mandar para o inferno pelo sexo sem fins reprodutivos.”. E, claro, homenagem aos ausentes: “Queremos agradecer aos ausentes. Aos que se foram. Principalmente ao tio Célio que partiu quando eu tinha apenas cinco anos. Tio Célio, se você ainda fosse vivo, estaria me molestando até hoje e provavelmente não teria condições de manter relações com a Rosana.”. Depois, um por um é chamado para receber seu certificado diretamente das mãos de Rosana. Ao final, ao som de Je T’aime Moi Non Plus e sob uma chuva de embalagens de camisinhas, eles tiram a beca e celebram nus.
[Armando] Senhor Nogueira, preciso dizer que estou impressionado com esse baseado. Que história! Ainda assim, acho melhor pensarmos em algo diferente. Não tenho certeza se as pessoas acompanharão a sua linha de raciocínio.
[Flávio Nogueira] Está complicado segurar as ideias dentro de mim agora. É muita coisa vindo de uma só vez. Estou pensando em Copa do Mundo e ao mesmo tempo em remédio controlado.
[Armando] Não sei se são assuntos possíveis de correlação, senhor.
[Flávio Nogueira] Claro que são! Uma pessoa trabalha na coordenação da Copa do Mundo. Rosana! Sim, Rosana! Estou com este nome na cabeça. Vai ver é o nome da menina que deixou o dado erótico aqui e levou meu pendrive. Rosana toma remédio controlado e, caso se esqueça, fica incoerente. Abertura da Copa do Mundo. França e África do Sul. Os times entram em campo. O locutor se espanta: “Meu senhor, o time da África do Sul tem 68 jogadores em campo!”. O repórter de campo explica: “Pois é! Acontece que, no momento de credenciar os times, a responsável tinha se esquecido de tomar sua medicação e errou um pouco no controle dos jogadores.”. O locutor ainda surpreso indaga: “Mas a Copa do Mundo será com 68 jogadores cada time?”. Eis que o repórter responde: “Não! Assim que terminou de credenciar o time da casa, ela tomou sua medicação e voltou ao normal. Só a África do Sul vai jogar com 68 jogadores.”. O locutor fica indignado dizendo que isso era um absurdo. O repórter concorda e prossegue: “Sim, um absurdo. Para se ter uma ideia, a África do Sul precisou fazer um processo de imigração de atletas porque sequer conseguiu encontrar 32 sul africanos aptos a jogar pela seleção, imagine 68. Se reparar com calma, tem ali dois japoneses, um australiano, alguns chineses e três cubanos. Na verdade, dois cubanos, pois um já pediu asilo político e foi substituído por um cachorro salsicha cujo nome é difícil de se escrever. Vamos torcer para que sejam eliminados ainda na fase de grupos.”.
[Armando] É, definitivamente estou desempregado. Senhor Nogueira, seria muito abuso pedir um pouco do seu baseado para amenizar a minha dor pela perda do emprego?
[Flávio Nogueira] Pare de falar bobagens, rapaz. Vai sair esse texto de qualquer jeito e você vai garantir seu emprego. Vai garantir seu emprego e ganhar uma dedicatória. Será o melhor texto da minha história e será em sua homenagem.
[Armando] Muito obrigado, senhor. Fico lisonjeado, mas não vejo como isso será possível.
[Flávio Nogueira] Um texto sobre música.
[Armando] Bem, música é um tema bastante recorrente nas suas colunas.
[Flávio Nogueira] Viu? Música! Um texto sobre música com um tema de apelo coletivo.
[Armando] É uma boa estratégica. Muitos irão se simpatizar com ele assim.
[Flávio Nogueira] Exato! Um texto que fale de Chico Buarque.
[Armando] Chico Buarque. Está aí algo que muitas pessoas falam e gostam de ler. Parece que está em um bom caminho.
[Flávio Nogueira] Um texto sobre Chico Buarque que seja polêmico. Um texto que deboche dele.
[Armando] Ai meu pai...
[Flávio Nogueira] Calma. Está saindo! Transmissões neurais sendo feitas. A história é sobre uma vitrola que só toca Chico Buarque. É isso! A vitrola só toca Chico Buarque porque sua dona só escuta Chico Buarque. A vitrola é muito frustrada com isso, pois adoraria tocar Billie Holiday, Sinatra, João Gilberto e Rolling Stones. Isto não acontece. Sua dona só quer saber de Chico Buarque. Ela se masturba ouvindo Chico Buarque. A vitrola, se pudesse, falaria para ela: “Isso é muito chato. É muito superestimado. Como dizem por aí, ele nem é tudo isso. Chico é na verdade um sambista que comprou um dicionário de rimas.”.
[Armando] Senhor Nogueira, de fato, o senhor conseguiu algo bem polêmico mesmo. Não tenho certeza se isso é publicável.
[Flávio Nogueira] Calma! Preciso explicar a dona.
[Armando] Deixe-me adivinhar. Ela se chama Rosana?
[Flávio Nogueira] Não! Ela não merece o nome Rosana. Ela se chama Marli. É uma lésbica quase da minha idade, encalhada, feminista xiita que não depila a virilha desde a adolescência. Parece que tem dois judeus ortodoxos no meio das suas pernas. Isaac e Jacó. Não! Muito clichê. Renan e Maicon. Não! Com esse nome ela teria dois evangélicos no meio das pernas.
[Armando] Senhor Nogueira, agora tenho certeza que isso não somente não é publicável, como, caso o faça, será preso.
[Flávio Nogueira] Meu rapaz, estou tentando te ajudar, mas você está muito pessimista. Não é possível que as ideias sejam totalmente desprezíveis. Não acredito que nada se salve.
[Armando] Senhor Nogueira, espero que não me leve a mal, pois lhe respeito e considero um dos maiores escritores vivos, mas nada se aproveita. Para não ser tão radical, digo que a ideia do perneta seria viável se o senhor tivesse optado a contar uma história sobre o Saci Pererê.
[Flávio Nogueira] Está aí! Já tive algumas colunas que apenas falavam como as coisas surgiam. Posso fazer uma contando a história do Saci Pererê. Você sabia que o Saci Pererê perdeu uma das pernas jogando capoeira? E tem mais! Ele, em outras regiões, pode ser conhecido como Saci Cererê, Saci Trique, Saci Saçurá, Matita Perê ou Matimpererê. Aliás, Matimpererê é uma palavra tupi-guarani que provavelmente deve significar não dê golpe de capoeira naquela serra elétrica ligada que vai dar merda.
[Armando] Senhor Nogueira, muito obrigado, mas voltarei com as mãos vazias mesmo. Amanhã o senhor Tarcísio entrará em contato com o senhor. Adeus.
Armando vai embora. Flavio Nogueira fecha a porta e vai para seu quarto. Deitada na cama, uma mulher.
[Mulher] Meu Deus, homem! Que demora! Cadê cerveja que foi buscar? Que sapatos são esses em suas mãos?
[Flávio Nogueira] Olá! Quem é você?
[Mulher] ROSANA, HOMEM! ROSANA! 
Fim de cena