sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Histórias reais inventadas por mim

Negociação
Todos se lembram daquela manhã de agosto quando o país parou. Os canais de televisão, as rádios, os sites, o assunto era um só. As pessoas em casa, nos restaurantes, bares, lojas de shopping e no trabalho pararam o que estavam fazendo para acompanhar o que acontecia na até então desconhecida loja de material de construção do Seu Aristeu. Ninguém acreditava no que estava presenciando. Jamais foi visto algo do tipo. Vou até contar do início para que tenham uma ideia melhor da barbárie.
Não tinha nem vinte minutos que Seu Aristeu abriu a loja e lá estava o Orlando. Ele era um freguês assíduo que, por fazer muitos serviços na região, estava sempre por lá comprando material. Como dizia, lá estavam Seu Aristeu, o Orlando, mais dois funcionários e quatro clientes. O movimento ocorria dentro da normalidade, olha uma peça aqui, pede outra, não tem, tenta uma segunda opção. Tudo ia bem até que em determinado momento, esperando um dos funcionários voltarem com o joelho que pediu, Orlando resolveu se distrair com o jornal que estava sobre o balcão. A primeira notícia que viu lhe atordoou de tal maneira que ficou pálido, seu sangue esfriou, suas pernas tremeram e seu olho esquerdo piscou várias vezes solitariamente, mas isso era um tique nervoso que ele já tinha.
“Prefeito e vereadores suspeitos de desviar dinheiro da saúde municipal.”
Conforme andava com seus olhos pela matéria, um piscando mais rápido que o outro, seu sangue começava a esquentar e sua mente fazia conexões com o passado recente. Tudo fazia sentido. Há três meses ele ficara viúvo porque não tinha equipamento no hospital público do seu bairro. Equipamentos que poderiam ter sido comprados com o dinheiro desviado pelos políticos da reportagem. O sangue ferveu e invadiu o cérebro aos litros tomando controle (ou criando a falta de) da situação:
- NINGUÉM SE MEXE NESSA BODEGA OU CABEÇA DELE VAI ROLAR!
As pessoas na loja tomaram dois sustos. O primeiro com o grito do Orlando e o segundo ao verem que ele estava com uma serra de mão encostada no pescoço de um dos clientes. Com um pouco de medo, mas ao mesmo tempo assustados com aquele momento inesperado do sempre tranquilo Orlando, todos resolveram colaborar e se sentaram no chão. Orlando então abaixou as portas da loja deixando apenas uma fresta e gritou para que todos na rua pudessem ouvir:
- CHAMEM A POLÍCIA E A TELEVISÃO! ESTÁ ACONTECENDO UM SEQUESTRO AQUI – E foi assim que tudo começou.
Em poucos minutos chegou a polícia e logo depois a televisão. Vários canais estavam lá para fazer a cobertura que até então não era ao vivo, pois parecia apenas um assalto que deu errado. A atenção só ficou redobrada quando o negociador da polícia, o major Viega, iniciou os trabalhos e divulgou as exigências do tal sequestrador:
- O meliante disse que não vai liberar os reféns, mas que aceita fazer uma permuta por outras pessoas e daí iniciar uma nova negociação com a instituição. – Ele parou, pois um repórter ao fundo perguntou como seria a troca e logo depois deu prosseguimento. – Pois bem, ele disse ter em sua posse sete reféns e quer trocar por sete políticos a sua escolha. São eles, o prefeito, o presidente da câmara dos vereadores e outros cinco vereadores.
Começaram então as especulações. Qual o interesse nele nos políticos? Enquanto a cúpula da polícia se reunia para decidir como agir, Orlando começou a gritar suas motivações e isso criou um rebuliço maior ainda. Tínhamos novas especulações. Iria ele matar os reféns? Quem está a favor dele? Quem está contra ele? Seriam seus motivos nobres? Era a melhor maneira de combater a corrupção? Somo todos Orlando?
Imagino que estejam pensando que não existe tanto motivo assim para o país se mobilizar com um sequestro com algumas exigências com viés particular. De fato, é algo bem incomum, porém realmente não justifica e nem os condeno por pensarem assim. A mobilização geral aconteceu conforme a negociação deu prosseguimento. Aparentemente, Orlando não esperava uma negativa e, como era uma pessoa de pouca instrução, sua capacidade de negociação e improvisação acabou comprometendo o que viria a seguir. Logo, o que era uma comoção nacional com uma causa até então nobre, virou um sensação de pena coletiva por tamanho constrangimento:
- COMO ASSIM NÃO FARÃO O QUE PEDI?
- Sinto muito, mas o que pediu está além da nossa jurisprudência e acima da nossa alçada – afirmou o major Viega. – Mas podemos negociar a libertação dos reféns para que tudo termine bem para ambos os lados.
- Como terminar bem para ambos os lados? Não tem como terminar bem para o meu lado. Eu já estou viúvo. Quero que não termine bem para o lado dos envolvidos na morte da minha Zildinha.
- Sentimos muito, senhor, mas exatamente por isto não poderemos acatar à sua solicitação. Nosso objetivo é garantir a integridade dos reféns. Trocá-los por outros que não terão a integridade garantida não faz sentido.
- E o que faço então? Libero eles por nada? Vocês estão loucos? Acham que sou bobo?
- Senhor, peço que seja razoável. Podemos negociar algo que seja para amenizar a dor da perda da sua Gilda.
- ZILDA!
- Exato! Peça algo que a faria feliz.
- Algo que a faria feliz? Deixe-me pensar. Só um instante. (pausa) Já sei! Eu quero o presidente da Colgate.
- Como?
- O presidente da Colgate. Aquela marca de pasta de dente.
- Eu entendi, mas como assim você quer o presidente da Colgate? Qual a relação?
- Ele arrasou os negócios da Zildinha ao lançar pastas de dente com aqueles tubos largos de tampas grossas que ficam de pé quando colocados de ponta cabeça. A minha Zildinha vendia aqueles trecos de acrílico que você podia colocar até quatro escovas de dente e um tubo para deixar na pia do banheiro. Agora, ninguém compra porque o tubo não passa mais por ali. Para piorar, os estojinhos que ela vendia para levar pasta e escova de dente para o trabalho também ficaram incompatíveis. Ficou tudo encalhado! TUDO!
- Podemos pensar algo para as nécessaires.
- Nessa o que?
- Nécessaires! Os estojinhos! Podemos tentar vender como estojo escolar.
- Não tem como! Está escrito em letras grandes que é um porta kit dental. Tem até um dentes desenhados. Seria como usar um pote de geleia como porta brincos ou quinquilharias. Não, ninguém vai comprar! Eu preciso deste homem e suas ideias mirabolantes destruidora de negócios alheios.
- É, meu senhor, não vai ser possível.
- Como não? Nada aliviaria mais a alma da minha Zildinha do que isto!
- Eu sei, mas teremos de fazer outra coisa para aliviar a alma da sua Gilda.
- ZILDA!
- Isso! Peça outra coisa, mas seja razoável. Pense antes de pedir. Deve existir outra coisa que a faça feliz.
- Ok! Está bem! Eu quero falar com alguém da Brastemp.
- Ah meu senhor! Mas tenha paciência. O que foi agora? A geladeira quebrou e estragou a torta que ela fazia por encomenda?
- Claro que não! Não deboche da minha Zildinha.
- Ok, me desculpe. Então se explique.
- São essas novas malditas máquinas de lavar em que o compartimento do sabão líquido não segura o produto, daí ele escorre antes dela encher e mancha a roupa toda.
- Ok, meu senhor. Foram dadas as oportunidades. Irei autorizar que o esquadrão faça a sua parte encerrando de vez a negociação.
- NÃO! NÃO OUSE! ESTOU NERVOSO E FRUSTRADO! EU ARREBENTO A GARGANTA DELE E DE OUTROS MAIS ANTES QUE CONSIGAM DAR O SEGUNDO PASSO!
- Tudo bem! Tudo Bem! Sem exaltação! Vamos retornar à negociação. O que podemos fazer por você?
- Como assim? Sou novo nessa área. Nunca vi sequer filme de sequestro, logo não sei como agir.
- Normalmente pedem um helicóptero para fugir.
- Mas eu não sei como dirigir com troço destes.
- Ah, mas poucos sabem. Por isto pedem sempre com um piloto.
- Tá bom! Tá bom! Só que mesmo com um helicóptero para onde iria? Eu moro ali na esquina mesmo.
- Você pode ir para uma cidade perto e se esconder na casa de um cúmplice. Ou ir para outro ponto distante, de lá pegar um carro já fora do nosso alcance e fugir.
- Gostei da primeira ideia. Minha tia Alzira mora na cidade de São João do Torrão de Fubá. Não é tão perto, mas é um ótimo lugar para me esconder.
- Viu? E a quantos quilômetros fica daqui?
- Por volta de 180, no máximo 200.
- Bem, se o helicóptero estiver com tanque cheio, dá para ele te levar e voltar.
- Ótimo! Quero então um helicóptero com tanque cheio e piloto.
- Não temos helicóptero disponível, senhor. Terá de pedir outra coisa.
- AH, MAS VÃO TODOS PARA O INFERNO! EU VOU MATAR ESTE CABRA E É AGORA!
- CALMA! CALMA! CALMA! VAMOS COLOCAR A CABEÇA NO LUGAR! Que tal algo que lhe traga conforto? Algo que diminua essa confusão na sua cabeça.
- Certo! Justo! Eu quero o Maurício!
- Maurício? Quem é o Maurício?
- O desenhista! O Maurício de Souza!
- Ah sim, claro! Imagino que tenha sido uma referência na sua infância e falar com ele irá reconfort...
- Não! Nada disso! Eu tenho uma dúvida mesmo. Nunca entendi aquelas histórias do Cebolinha com o Louco. Aquilo acontecia mesmo ou era um delírio do Cebolinha?  Ou o Louco dava drogas para o Cebolinha e os dois viajavam juntos?
- Está bem, senhor! Encerramos aqui as negociações. Nós vamos entrar!
- NÃO! NÃO! PAREM ONDE ESTÃO! EU VOU CORTAR A GARGANTA DELE – E Orlando parou ao notar o desespero de seu refém, olhou ao se redor e viu a mesma expressão nos outros que lá estavam sob seu terror já infundado, por fim, passeou com os olhos pelas prateleiras reparando em cada produto como se fosse a última coisa que veria antes de ser preso e tomou a decisão. – OK, EU TENHO APENAS UM PEDIDO. APENAS UM!
- Pois então diga, senhor!

- Eu quero falar com o desgraçado que mandou padronizar para essa maldita tomada de três pinos.