terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Histórias reais inventadas por mim

Bacanal
É sempre a mesma coisa. Basta alguém fazer um comentário referente a valer de tudo que meu pai selava o assunto com sua frase habitual: “Existem regras para tudo, inclusive no bacanal onde, dentre várias delas, deve-se respeitar o garçom.”. Ele achava que com essa frase iria se passar por descolado. Inocente! Com ela, só ficava evidente que ele era um careta que nunca participou de uma sacanagem de verdade. Fato, aliás, que me reconforta, pois até onde sei, ele passou a vida toda com minha mãe.
A verdade é que se ele tivesse ido uma vez apenas aos bacanais organizados pelo Rico, apelido nada modesto do Ricardo Teviano, riquinho do bairro, jamais diria algo do tipo. Inclusive sobre os garçons que eram os que mais sofriam. Para se ter uma ideia, eles eram obrigados a trabalhar pelados com o corpo pintado como se estivessem vestindo smoking, contudo, no lugar do guache, usavam Nutella. Daí já viu, né? Quando não estavam cercados pelas mulheres que queriam lambê-los, eram atacados por gordinhos que pretendiam esfregar waffles quentinhos em seus corpos.
Desistências eram coisas fora de cogitação. Bastava a primeira pessoa anunciar uma crise de timidez ou arrependimento que o Rico imediatamente organizava uma fila e obrigava a todos darem umas palmadas no cidadão. Das duas uma, ou servia como lição para nunca mais tentar se meter onde não devia, ou ficaria rapidamente animadinho para entrar na brincadeira. Alguns pediam inclusive uns tapinhas extras seguidos das fantasias mais ocultas:
- Vai! Me castigue por tocar nas suas verduras e não compra-las, seu feirante!
Imprevistos sempre aconteciam, mas Rico sabia lidar como ninguém com eles. Nada podia interromper o bacanal, quanto menos ameaçar que fosse cancelado. Tudo era solucionado. Problemas viravam novidades. Camas quebradas se transformavam em tatames. Câimbras eram encaradas como orgasmos intensos. Tem muita mulher? Hora da folga dos garçons! Tem muito homem? Sinto muito, garçons! Qualquer coisa podia ser contornada:
- Senhor Rico, temos um problema na suíte três.
- O que aconteceu?
- Aparentemente passaram vaselina demais em uma das bailarinas magrelas que contratou. Daí, o Marcão, aquele seu amigo meio grosseiro, agarrou uma delas com muita força e foi ejetada como um sabonete da mão de uma pessoa.
- E qual o problema?
- Ela está pendurada, entalada pela cabeça, no teto rebaixado de gesso.
- Pela cabeça?
- Sim, pela cabeça. O resto para baixo está aparecendo.
- MUITO BEM, SENHORES! QUEM QUER FAZER UM HELICÓPTERO DE VERDADE?
Só não pensem que os bacanais do Rico era uma baderna generalizada. Não, nada disso! Inclusive tudo era escolhido com muito cuidado, até a parte musical. Já teve banda de jazz, um quarteto de cordas, uma dupla de harpas, um grupo de forró e um belo canário da serra que cantou por quinze minutos apenas porque foi atacado por um pervertido sem escrúpulos. Certa vez, calhou de quatro pessoas desistirem quase ao mesmo tempo. Rico ficou possesso com isso, mandou desligar o som que no dia era DJ e colocou os quatro no sofá com as bundas empinadas. Virou-se então para um senhor bigodudo que lá participava e decretou: “Você agora se chama Tito Puente! Faça uma salsa com estas quatro bundas!”. O problema é que o caboclo não sabia que o tal Tito era um grande percussionista americano e a ordem era batucar nas bundas. Ele pensou se tratar de um famoso cozinheiro mexicano e criou um caos ao enfiar manjericão e pimenta no rabo dos desistentes. Não era exatamente o que Rico previa, mas todos acabaram se divertindo e criou-se então o Rabo Nacho.
É claro que vez ou outra a escolha musical não agradava a todos:
- Rico, não me leva a mal, mas essa coisa é muito ruim!
- Você sabe o quanto me custou trazer lhamas cantantes da Guiana?
- Eu imagino, Rico. Só que não consigo me concentrar. Não entendo uma palavra que elas cantam.
- Ora, é muito difícil ensinar português para lhamas que só falam espanhol.
- Ok, eu entendo! Acontece que elas cantam sempre a mesma música.
- Não é sempre a mesma música! Elas estão cantando Raça Negra!
Reclamações obviamente existiam sempre. As mais frequentes eram das ações rotineiras. Mulheres inseguras com o marido que estava muito solto e quase não lhe dava atenção. Pessoas indecisas que diziam estar distraídas pelo bufê. Dúvidas sobre posições desconhecidas eram bem rotineiras. Afinal, nem todos conhecem o cowboy invertido aéreo, a colhedora de mandioca e a Smurfete trepidante. Ainda assim, a mais comum era de maridos sem sorte.
- Rico, minha mulher já transou com uns sete e até agora tudo que consegui foi uma punhetinha.
- Pois é, Rico! A minha também! E eu até agora só consegui bater uma punhetinha para ele.
- Ok, senhores! Vamos testar a concentração dessas lhamas cantantes.
Algumas brincadeiras eram criadas para entreter os participantes. As mais famosas eram Boca do Palhaço e Pescaria. Salto com Vara teve de ser suspenso depois que o Rico passou a aceitar orientais nos bacanais. Outra brincadeira cancelada foi a Tonico Tá no Oco, que por um desentendimento acabou com um grupo de pessoas nuas desvairadas atacando o vigia do prédio com mesmo nome.
O fato é que os bacanais eram bastante animados com uma movimentação intensa. Se tivesse que fazer uma comparação, remeteria às cenas clássicas de perseguição do desenho Scooby-Doo. Todo capítulo tem uma cena em um corredor com muitas portas dos dois lados, então entra personagem em uma, sai em outra, vai outro personagem em mais uma e depois aparece em outra. Aquela confusão de todos entrando em todas as portas, mas nunca se encontrando. Acho que deu para entender a metáfora, né? Bem, até meu pai entenderia.
Por falar em pai, eu preciso fazer uma correção. De fato ele tinha razão, pois até nos bacanais do Rico existiam regras. Na realidade, uma regra. Jamais podiam trocar o canal da televisão. Isto era sagrado. Aconteça o que acontecer, nunca podia tirar do canal de leilão de animais rurais. Não sei ao certo o verdadeiro motivo, entretanto, Rico dizia que aquilo fazia com eles se sentissem menos animais.