sábado, 15 de novembro de 2014

Apenas jogar papo fora


Devia ser a sexta vez que trocávamos olhares e ainda permanecia no mesmo local. Parte dessa inércia é culpa da minha total incapacidade de determinar quando alguém está afim de mim ou quando alguém está me desprezando. A outra parte é por conta da minha timidez que insistem em dizer que é invenção minha. Acreditem, sou tímido, até demais. Vocês que estão habituados a conviver comigo apenas quando bêbado. Não existe bêbado tímido, existem apenas bêbados prestes a desmaiar. Em momentos de bebedeiras, timidez é um sinal clássico de se levar alguém para o hospital ou iniciar conversa com outra pessoa.
Não sei se cansada por aquele cerimonial que não levava a lugar algum, ou se intrigada para descobrir se eu era um retardado, ela se aproximou e puxou assunto. Aqueles cumprimentos de sempre, trocamos nossos nomes, o dela era Michele, além de pausas breves e constrangedoras entre perguntas e respostas. Nada muito diferente da rotina antes da conversa engatar ou da habitual virada de costas. A conversa fluiu então:
- Acho que já te vi algumas vezes por aqui antes – ela afirmou e ainda assim colocou um ar de dúvida.
- Sim, provavelmente – respondi tentando olhar apenas nos seus olhos, apesar de seu decote possuir poderes magnéticos. – Moro literalmente aqui em cima.
- Hum, sócio daqui então?
Ela tinha um talento para instigar a conversa, o que era desnecessário considerando aquele decote. Ainda assim, não era o meu propósito inicial. Não tinha nem três semanas que me mudara, estava arrependido e depressivo. Só queria beber algo e depois dormir. Aparentemente ela estava tornando minha meta simplória em algo mais complexo do que precisava.
- Só beber uns tragos e nada mais? Impossível – ela disse incrédula. – Homem quando quer fazer isso não vai para bar badalado, fica em casa.
Ela tinha certa razão em seus argumentos. Eu podia facilmente ficar em casa bebendo o pouco de álcool que lá restava, mas daí a graça de se divertir vendo as pessoas passando vergonha seria desperdiçada. E, convenhamos, normalmente eu proporciono esse prazer aos outros. Eu mereço uma noite de retribuição ao menos.
- Você só está piorando – ela disse rindo logo após que expliquei meus propósitos originais. – Isso é papo para tentar comer alguém.
- Está funcionando?
- Céus, você é horrível e maligno – a afirmação foi seguida de uma apertada no braço que para todo bom entendedor significa muito. – Estou começando a gostar de você.
Um cretino sempre reconhece outro cretino, e ela era uma cretina por essência. Era algo que podia se encaixar no meu propósito, alguém com talento para proporcionar uma conversa divertida e ao mesmo tempo interessante. Seu único defeito era ser atraente. Não queria distrações hormonais, queria apenas uma noite tranquila de quinta-feira que se encerrasse na sexta-feira. Já tive muitas noites de quinta-feira que se estenderam por meses em furadas repetidas e tentativas frustradas de desvencilhar contato.
- O que faz da vida – ela perguntou dando margem para ser sincero ou apenas manter o personagem. – É meio tarde para alguém que supostamente trabalharia cedo amanhã.
- Destruo a vida as pessoas.
- Nossa, que interessante – ela falou erguendo seu chopp como fazendo um brinde. – É advogado familiar?
Cada vez mais genial e entrosada com o meu cinismo, ela estava se tornando irresistível. Naquele momento, a parte física dela sequer importava mais, tornara-se sexy na minha maneira favorita. Disse então que aquela era a minha vocação apenas, mas que, por influência do mercado, eu era desempregado.
- A minha profissão – ela repetiu a minha pergunta, talvez para pensar na resposta. – Sou professora de educação infantil.
- Professorinha então?
- Sim, podemos dizer assim.
- Ora, está tentando me seduzir – disse com um olhar declaradamente debochado. – Não instigue meus fetiches, mocinha. Posso te chamar de tia Teteca?
Sua risada era uma delícia, ainda mais sabendo que eu a provoquei. O destino é um desgraçado debochado mesmo. Cansei de perder a conta das vezes que saí com a piores das intenções e tudo que consegui foi terminar a noite tocando punheta no banho pensando em alguma garota que sequer olhou para mim. Desta vez, só queria meia dúzia de chopps e voltar para casa. Contudo, o maldito me apresenta a minha versão feminina, com peitos no tamanho certo, sorriso fatal e cabelão. Ah, como cabelão me abala.
- Isso foi muito direto para quem tinha um propósito mais conservador.
- Ei, não persista nessa ideia de desmistificar o meu propósito. Estava sendo sincero.
- Suas atitudes confirmam, mas sua fala desmente.
Assumir, meio que indiretamente, que está me analisando é uma boa forma de me conquistar. Se a pessoa fizer isso com talento então, praticamente tatua o nome na minha mente. Sim, porque pelo coração ninguém me ganha. Minha cota de se apaixonar pelos motivos errados está esgotada tem tempo. Precisava então confirmar o quanto ela era boa em me analisar.
- Claro que suas intenções são dúbias – ela me respondeu com certa propriedade. – Suas falas são de quem quer seduzir e envolver a pessoa na conversa. Já seus olhos são comportados, direcionados apenas para o meu redor.
- Mamãe ficaria tão orgulhosa da segunda parte.
- Imagino que sim, mas meus peitos estão ofendidos.
- Oh me desculpe. Não era a minha intenção – retruquei fitando desavergonhadamente o decote. – Olá, meninas! Vejo que estão com frio.
- Você é horrível – ela reagiu rindo e cobrindo o decote. – Vejo também que está bem alegre.
- Não se iluda pelo meu pau. Ele é um idiota que se entusiasma à toa. Nem sempre me representa. Ele confunde a euforia do meu cérebro com a sua conversa achando que iremos trepar.
- Trepar? Bem, não podemos negar o seu romantismo, não é mesmo?
- Ora, não fique melindrada. É apenas um termo técnico específico dentro de uma cadeia classificatória ténica.
- Então espera um minuto – ela se interrompe para em um único gole terminar a metade restante de seu chopp e depois prosseguir. – Preciso de uma dose razoável de álcool para este momento. Pois bem, me diga da cadeia.
- A nomenclatura vai de acordo com o nível de profanidade do ato obsceno. Isto é, quando mais sacanagem e sujo, mais alto está na cadeia.
- E qual é o mais baixo de todos?
- Depende do baixo. Pode ser o baixo no sentido de imundo e no sentido de pior colocação.
- O último!
- É o que só tem papai e mamãe. Leva o nome de fazer amor. É monótono, desprezado pela maioria das pessoas felizes e o culpado pelo fim dos relacionamentos.
- É, não os condeno. E depois, o que tem?
- Pela ordem, subindo na cadeia de obscenidade estão fazer amor, fazer sexo, transar, trepar, foder e rodízio de pizza que é uma putaria do caralho.
Em situações normais de temperatura e pressão, qualquer outra mulher me chamaria de idiota, viraria as costas e passaria uma boa parte da vida me difamando para as amigas. Confesso que ela me chamou de idiota, sim, mas não foi embora. Ela ficou e riu. Riu como nunca naquela noite. Para os meus propósitos originais, era como se a tivesse feito gozar como nunca. Ao menos o assunto era sexo, o que ajuda na analogia.
- Você está sendo muito rigoroso – sua réplica foi interrompida primeiro pelo garçom que trouxe mais uma rodada de chopp e depois interrompida para brindarmos e dar o primeiro gole. – Sexo é bom de qualquer jeito.
- Não disse que era ruim. Apenas mencionei a classificação por alto, você se interessou e dissertei sobre. Para mim, sexo também é bom de qualquer forma. Inclusive sozinho.
- Sim, adoro sozinha. Poucos superam o que alcanço sozinha.
- Então vamos combinar o seguinte – fiz uma pausa para mais um gole e também dar um ar de suspense à minha proposta. – Como disse, queria sair apenas para tomar um chopp. Nada de flertes ou algo do tipo. Vamos lá para casa, você brinca sozinha e eu assisto. De uma maneira muito estranha terei conseguido cumprir com a minha proposta original e você ainda terá um final de noite espetacular.
- Ah seu fofo – agora foi a vez dela fazer uma pausa dramática para beber seu chopp. – Já estava nos meus planos ter um final de noite espetacular. Cabe apenas a você querer participar efetivamente ou não.
Mulheres bem resolvidas com iniciativa são as minhas favoritas e as que mais me intimidam. Talvez uma coisa explique a outra. Não bastante, estávamos no oitavo ou nono chopp. Não me recordo. Eram muitas coisas favoráveis para inverter a noite.
Eu sei que estou parecendo um frouxo nessa ladainha, mas o histórico me obriga a fazer isso. Estou talvez na minha última chance e, como disse inclusive para ela, já arruinei com a vida de muita gente. Precisava ao menos uma vez provar para mim mesmo que era capaz de manter uma meta estabelecida. E, convenhamos, ela era um teste à altura.
- Baby, estou começando a achar que está levando para o lado pessoal essa coisa de provar que era balela o meu objetivo de noite.
Ela deu mais um gole no chopp, apoiou seus cotovelos na mesa para melhor se aproximar de mim. Em seguida, deixou propositalmente o decote exposto. Olhou para um lado, olhou para o outro e voltou a me olhar. Ensaiou que ia começar a falar algo, se conteve, molhou os lábios e aí sim falou:
- Deixa eu ver se entendi bem, baby – faço uma ressalva para dizer que adoro quando usam esse termo para debochar de mim. – Você vai insistir nessa posição de se manter irredutível, para ganhar um jogo que você mesmo inventou e no final nenhum dos dois na realidade saem ganhando?
- Você assim faz parecer terrível. Não é tão simples. É uma coisa própria com fundamentos.
- Ok – ela começou a se levantar. – Devo ficar feliz por você ao menos?
- Não precisa disso – fiz um gesto para que se sentasse. – Vamos combinar o seguinte. Sábado agora nos esbarraremos propositalmente sem querer aqui. Estarei sem objetivos ou provas pré-estabelecidas. De quebra, estarei orgulhoso da minha conquista de hoje.
- Não vai ter sábado – ela continuou a se levantar. – Sabe por qual motivo? Porque não sou daqui e volto para a minha cidade amanhã de tarde. Entende a razão por ser tão decidida?
Na manhã seguinte, pouco depois de meio-dia, eu e Michele tomamos coragem de sair da cama para tomar café na padaria aqui da esquina. Comemos, ofereci em seguida carona, ela disse que não precisava, bastava acompanha-la até o ponto de taxi.
- Que horas vai embora?
- Para onde?
- Para a sua cidade.
- Eu moro em São Cristóvão, bobinho. Esqueceu que comentei que te vi outras vezes por lá no bar? Nos vemos no sábado?