Conto anterior da coleção: Matrícula
Almoço e mentiras
Justiliano odiava seu nome. Para
amigos, colegas de trabalho, até atendentes de central telefônica, era sempre
Jota. Poucos sabiam seu real nome. Aliás, poucos sabiam sobre sua vida. Um dos
que fugiam à regra era Wallace, que ele chamava gentilmente de Uólace. Não era
apenas o verdadeiro nome de Jota que Wallace sabia, ele também era seu
confidente para tudo, mas, principalmente, era seu álibi para suas atividades,
digamos, indiscretas:
– Alô!
– Fala aí – respondeu o Wallace. - Fala,
Jota!
– Seguinte, vamos almoçar hoje.
– Beleza – disse Wallace. – Que horas
passa aqui?
– Não, sua besta – Jota falou
pausadamente. – Va-mos al-mo-çar ho-je!
– Eu en-ten-di – respondeu Wallace. –
Que ho-ras?
– Porra, Uólace! Presta atenção!
– O que foi?
– Nós vamos almoçar hoje juntos, mas
você não vai! Entendeu?
– Ah, tá – finalmente Wallace entendeu
e riu – Ok, captei.
– Já sabe, né? – Jota fez uma pausa. –
Se te ligar, almoçamos juntos.
– Tudo bem.
– Falou então.
– Peraí – Wallace interrompeu o Jota.
– O que foi?
– Onde iremos?
– Como assim?
– Para confirmar – Wallace falou com
uma voz enfadonha. – Caso contrário podemos ser pego na mentira.
– Entendi – Jota fez uma pausa dramática
– Em Ipanema!
– Boa! Ipanema! Gostei!
– Beleza – disse o Jota se despedindo.
– Valeu então!
– Não! – Wallace mais uma vez
interrompeu a despedida.
– O que foi?
– Mas onde em Ipanema?
– Faz diferença?
– Claro que faz. Vai que você conta
esse detalhe para ela e não para mim – explicou Wallace. – Um dia podemos comer
novamente lá, ela comentar algo e eu ficar com cara de panaca.
– Você já tem cara de panaca, Uólace –
Jota falou rindo. – Sei lá. No Francesco!
– Está louco? Lá é muito caro!
– Mas você não vai pagar coisa alguma,
demente!
– Não importa – Wallace discordou. –
Ela sabe que sou muquirana. Nunca pagaria uma fortuna em um almoço.
– Está bem! Na Boi Torrado então.
– A churrascaria?
– É!
– Não – respondeu Wallace. – Não
mesmo!
– Ora, por quê?
– Queria comer uma massa.
– Ah, Uólace – Jota se irritou. – Você
pode comer massa.
– Lá não tem massa!
– Mas você não vai comer lá, sua
múmia!
– Ah, mas mesmo assim – Wallace falou
com a voz elevada. – Comi carne a semana toda.
– E daí?
– Ora, e daí que só de pensar em comer
mais carne fico com azia – Wallace fez uma pausa. – Desculpe, arrotei. Não
disse? Preciso de massa hoje!
– Mas que coisa, Uólace – Jota se zangou.
– Sério mesmo?
– Você é engraçado! Quer que eu minta
e ainda passe mal? – ele ficou em silêncio por alguns segundos. – Nada disso.
– Está bom, seu fresco. Vamos na Mama
Bologna!
– Ah, agora sim! Lá tem um talharim al dente sensacional!
– Com molho branco ou bolonhesa?
– Branco – respondeu o Wallace.
– Com bastante queijo ralado em cima e
pedaços de cogumelos?
– Isso!
– MAS NÃO VAI COMER – gritou Jota.
– Como assim?
– NÃO VAI! ISSO É UMA MENTIRA. ESTAMOS
COMBINANDO A BAITA DE UMA MENTIRA. VAMOS DIZER QUE FOMOS ALMOÇAR LÁ, MAS NA
VERDADE VOCÊ VAI COMER NESSA PORCARIA DE RESTAURANTE A QUILO QUE TEM EMBAIXO DO
PRÉDIO QUE TRABALHA, PORQUE É MUITO PREGUIÇOSO PARA IR ALMOÇAR LONGE.
– Ei!
– EI, NADA – interrompeu Jota que
agora fala calmamente – Estamos entendidos? Fomos almoçar em Ipanema, na Mama
Bologna e você pediu o maldito talharim ao molho branco. Entendido, Uólace?
– Ah, tá! Vai aprontar mesmo. Está
muito estressado.
No final de semana seguinte, Jota e
sua esposa passeavam pela orla quando encontraram com Wallace sentado em um
quiosque. Papo vai, papo vem. Aquelas coisas de sempre. Até que a esposa de
Jota convidou Wallace para acompanhá-los para almoçar. Ele topou. No caminho,
ela perguntou:
– Por que não vamos naquele
restaurante que vocês comeram juntos outro dia?
– O Mama Bologna? – perguntou Wallace.
– Sim – respondeu a esposa de Jota. –
Ele disse que lá tem um talharim maravilhoso.
– É? – Wallace se espantou fazendo uma
enorme cara de desdém ao mesmo tempo.
– Não é bom lá? – perguntou a esposa.
– Até que é – respondeu Wallace. – Mas
naquele dia, seu marido, fresco toda vida, não topou a minha ideia de ir ao Boi
Torrado. Sabe como ele é com carnes?
– É fresco mesmo – falou a esposa
apontando para Jota que permaneceu calado.
– Insisti muito, mas ele disse que não
ia de jeito algum lá.
– E você aceitou isso assim? Como ele
pode te obrigar a comer em outro lugar, Wallace?
– Ah, ele prometeu que iria compensar
pagando um almoço no Francesco qualquer dia desses.
– Eu disse isso? – perguntou Jota
espantado.
– E tudo isso porque disse que ele é
muito preguiçoso para almoçar longe do trabalho. – Wallace foi novamente
contundente.
– O QUE? – o Jota se espantou
novamente.
– Não fico surpresa com isso – relatou
a esposa. – O Jota é tão preguiçoso que, se não tivessem inventado o controle
remoto, ele ficaria sem ver televisão.
– Bem colocado – Wallace concordou
rindo. – Você acredita que ele disse exatamente “você não vai pagar coisa alguma,
demente”?
– Ora, que ótimo, senhor generoso –
falou a esposa olhando para Jota. – Um pouco indelicado, mas generoso. Então
vamos hoje, é aqui perto.
– Boa ideia – Wallace se animou. -
Olha só que legal, Jota!
– Muito legal – Jota concordou
debochando. – Você é a mentira mais cara que já vi!
– O que disse, Jota? – perguntou a
esposa.
– Disse que o Uólace é o amigo mais
caro que já tive.
E lá foram eles almoçar no Francesco.
A conta passou dos trezentos. Wallace saiu bem alimentado e satisfeito por ter
comido em local tão sofisticado onde jamais imaginaria ir antes. A esposa ficou
contente com o belo programa de final de semana. Já Jota, bem, ele saiu algumas
centenas de reais mais pobre, mas com a certeza de que mentira pode até não ter
as pernas tão curtas assim, mas usa uma saia cara de seda importada para
cobri-las.
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