sábado, 17 de agosto de 2013

Um bloco uma caneta e o divã





 
Fim de Ciclo (Cefet-RJ)

Aproximadamente oito anos atrás, lá estava eu entrando na antiga coordenação do curso de Administração Industrial no terceiro andar do Bloco E do Cefet. Logo na entrada, um balcão enorme, um funcionário me dá boa tarde (lembro que era bem perto de seis da tarde) e respondo que precisava falar com a professora Mirian. Após ser chamada por ele, ela aparece. Por breves segundos, ela me analisa da cabeça aos pés. Novo, em torno de 26 anos, All Star branco, uma calça de tecido mole (sou péssimo para essas coisas) de cor cinza, camisa polo branca, barba feita e cabelo curto com gel. Em suma, uma pessoa totalmente distinta do que sou hoje.
Pela imagem que tinha à sua frente, sua suposição de que se tratava de um aluno era potencialmente correta. Perguntou no que podia me ajudar e respondi com a cara de cretino que o tempo não muda e ainda tenho: “Não, eu estou aqui para te ajudar!”. Ela deu um largo sorriso, já sabia quem eu era, e me convidou para entrar. Ali se iniciava, quem diria, a minha, até hoje, mais longa experiência profissional. Tanto no meio acadêmico, como no meio corporativo.
Supostamente, como me foi apresentado, a necessidade da minha ajuda por lá era baseada na total incapacidade de um professor em lidar com as turmas de Cálculo I e Cálculo II do curso em questão. E isso era algo amplo, envolvia relações interpessoais, montagem do curso, transmissão do conteúdo etc. Enfim, eles tinham um problema que só poderia ser resolvido de duas maneiras: Ou trocava o professor, ou assumia o risco fazendo a turma ter de aprender a lidar com tal excentricidade. Escolheram a primeira.
Naquele mesmo dia montamos uma nova ementa para as duas disciplinas. Foram tantos os cortes que passou a ser imprescindível fornecer uma carga considerável de exercícios para suprir a carga horária. Após isso, foi combinado de retornar no dia seguinte para a primeira aula com a turma.
No dia seguinte, no Auditório 4-H, iniciava efetivamente a experiência. Confesso que não tive a menor maldade quando a Mirian disse que as aulas aconteceriam em um auditório. De qualquer forma, maldando ou não, lá estava eu e exatos 117 (CENTO E DESESSETE!!!) alunos. Este é um número que nunca mais esquecerei. Mesmo com já alguma experiência em sala de aula, seja com turmas grandes ou pequenas, um número como esse assusta. Com isso, no primeiro momento é inevitável ter a vontade de ser Moises, levantar os braços, separar a turma em duas partes e anunciar: “Turma da esquerda, estão todos aprovados! Podem sair! Turma da direita, vocês aprenderão cálculo!”. Mas não era possível, então tive de, literalmente, enfrentar os 117.
Naquela primeira turma podíamos separá-los em calouros que tinham acabado de entrar no curso (Cálculo I é uma disciplina do primeiro período) e repetentes. O grupo que mais me preocupava era o dos repetentes. Alguns estavam fazendo aquela disciplina pela terceira, quarta, quinta vez, e, convenhamos, independentemente de ter sido com um professor adequado ou não, muitos estariam fazendo novamente. O receio imediato era de que essa parcela de alunos se aproveitasse da turma grande que, por consequência, teria um controle limitado por mim, e utilizasse métodos escusos para conseguir a aprovação.
Enfim, a solução para isso era mais simples do que se imaginava: Tocar o foda-se! Não sou músico e nem tenho talentos musicais, mas se pudesse entrar para uma orquestra, pediria sem pestanejar o Foda-se. Toco o Foda-se como ninguém. Solos, arranjos sofisticados, improvisos, tudo bem fodido (literalmente). Talvez este seja o meu charme que faça grande parte dos alunos gostar de mim.
O curioso é que, mesmo estando em um ambiente novo, com características que tendem a um cenário hostil, consegui me adaptar e sobreviver. Aliás, um pouco acima do esperado. Aquele semestre transcorreu muito bem e, ao término, mesmo com poucos meses de casa, deixava já registrada a minha marca: Facilidade no relacionamento interpessoal com os alunos.
Nesses oito anos, ou dezesseis semestres, podemos estimar uns 1.300 alunos nas sete disciplinas diferentes que lecionei. Já tive de tudo, alunos excepcionalmente bons, zebras falantes, psicopatas, doidos, picaretas, almas polacas de tão puras e os dentro da média. Obviamente, o que se espera é que os extremos se destaquem de alguma forma, conservando alguma lembrança, enquanto que os aparentemente normais acabam sendo lembrados muito mais pela convivência.
Não vou cometer a injustiça de falar pontualmente de alguns alunos, tão pouco de turmas. Até mesmo porque nas vossas colações de grau já costumo falar sobre cada um, sem exceção.
A primeira coisa que fica clara quando se começa a dar aula por lá é que, apesar de ser em uma graduação, todos serem maiores de idade e pleitearem um tratamento de adulto, agem sempre como crianças perdidas esperando por algo na mão. É sempre mais fácil perguntar aleatoriamente algo do que pegar as informações no sistema ou procurar no mural do curso. A consequência imediata é um bando de alunos vagando pelos corredores até achar a sala de aula e, como nos meus primeiros anos por lá, as portas não tinham vidro, eles precisavam abrir. Era um inferno! A cada dez minutos um aluno abria a porta, via o que estava acontecendo dentro da sala e ia embora. Sabe aquela mania de que para espairecer um pouco a pessoa vai até a cozinha e abre a porta da geladeira para pensar? Então, me sentia como uma margarina na geladeira de um albergue para pessoas com problemas de concentração.
Com o tempo passaram a colocar vidros nas portas e, o curioso foi que, as pessoas que antes tinha cara-de-pau suficiente para abrir a porta e interromper uma aula, agora tinham vergonha de parar por cinco segundos para ver o que estava acontecendo. Resultado, a cada cinco minutos era um aluno passando devagar pelo corredor rente à porta, olhando para dentro da sala “de canto de olho” para tentar identificar que aula era aquela. Como se não bastasse, para alguns aquela “olhadela” não era suficiente para identificar, e, com isso, iam e vinham algumas vezes, naquela velocidade bem lenta, encarando a sala. Era aterrorizador! Parecia que tinha um serial killer escolhendo a sua vítima.
Dentre as diversas experiências que vivenciei, lá tive a oportunidade de conviver com relativa frequência com duas irmãs gêmeas: Carolina e Vanessa. Sempre tive a curiosidade sobre gêmeos. Acho assustador duas pessoas idênticas das quais, você não consegue saber quem é quem. Algumas pessoas afirmavam que era possível diferenciá-las. Para mim, eram idênticas e isso sempre revela aquela metáfora de conhecer a pessoa sem saber de fato quem é. Isto é, de rosto, sei quem você é, mas por dentro, não tenho tanta certeza. Agora imagine isso com gêmeos, troque a personalidade pelo nome. Pronto, fica bem clara essa dualidade.
Ainda sobre o mundo dos gêmeos, um dia, para saciar minha curiosidade, cogitei colocá-las sentadas em locais opostos da sala para fazer prova. Daí, em determinado momento de total concentração, beliscaria uma delas para ver se a outra gritaria de dor. Sei que é bizarro, mas já ouvi tanta coisa sobre gêmeos. Soube de uma mulher que, certa vez, teve uma longa crise de falta de ar com momentos ofegantes. Depois descobriram que sua irmã gêmea, que morava em outro estado, estava tendo uma intensa relação sexual naquela mesma hora. Ou o caso dos irmãos gêmeos da Pavuna, os quais quando um tomava banho, o outro que ficava limpo.
Nesta jornada pude comprovar duas teorias minhas. A primeira, que o aluno tem pacto com o diabo. Se existe uma pergunta que você não saberá responder, ele vai fazer. Se você estiver em uma situação constrangedora, ele vai aparecer. Se ele puder infernizar sua vida, ele o vai fazer.
A segunda, de que as meninas amadurecem muito mais rápido que os meninos, e, por consequência, ao final do curso, temos mais meninas que meninos se formando. Eu mesmo posso me usar como exemplo, pois, assumidamente, tenho a maturidade proporcional a de um garoto de 15 anos em uma loja de gibis. Ainda assim, existem casos de evolução que merecem ser destacados. Um deles é o do Túlio, cujo não me canso de falar, tanto para ele, quanto para os outros. Tulio entrou no Cefet com a mentalidade de um adolescente fútil. Nada queria com a vida, tanto que seu desempenho era uma prova disso. Hoje, 48 semestres depois, ele mudou muito. Está responsável e focado para se formar e seguir a carreira. Tudo bem que medindo com calma, talvez sua maturidade hoje bata com a de um guaxinim apaixonado que saiba usar o Instagram, mas a reconhecida evolução precisa ser dada.
Assim como tenho orgulho de falar que participei do processo de amadurecimento do Tulio, digo que tenho todas as fichas apostadas no João Otávio. Sei que vou perder feio por apostar naquele lambari comprido, mas vou me divertir muito enquanto isso pelo menos.
Em sala de aula tive todos os tipos de experiências possíveis. As mais inusitadas viraram histórias e aprendizado, as divertidas viraram lembranças, as tensas viraram assunto de sessão de terapia e todas, mesmo beirando o clichê, foram prazerosas.
Como disse, minha facilidade de relacionamento interpessoal com os alunos sempre foi uma vantagem. Ao mesmo tempo, foi um problema, pois algumas pessoas não entendiam muito bem aquela cena de o professor no meio do bosque do Cefet falando besteira como se fosse um deles. Para muitos dos medalhões ali presentes, o professor universitário precisa ter um posicionamento verticalizado e distanciado dos alunos. Aquilo que fazia era uma afronta e uma aberração. Bem, para eles. Para mim era normal. Construí minha carreira em colégio passando o recreio todo no pátio. Jogava bola com os alunos, ficava ouvindo as lamentações das meninas, discutia seriados, filmes e desenhos animados. Em suma, estava sempre no meio deles e sempre fiz questão de fazer com que se sentissem relativamente próximos de mim. Obrigado a todos os alunos.
Do outro lado da porta da sala de aula estavam alguns professores que tive o prazer de conviver cujos merecem, pelo menos, um parágrafo. Não falarei da Miriam por motivos óbvios (que é não parecer óbvio), tão pouco do Marcelo Nogueira que me atura por 15 longos anos de amizade torturosa. Mas outros, sim, precisam ser lembrados.
De todo o corpo docente, dois professores, para mim, são monstros: Manhães e Teylor. Ambos pela inconfundível capacidade de preparar uma aula, repassar o conhecimento e, antes disto tudo, dominar o conteúdo. O que os diferencia entre si está na personalidade deles.
Mario Manhães tem aquele jeito tranquilo, algo bem sulista, uma fala mansa, quase uma lábia. Quando se dá conta, ele já te ensinou uma grande carga de conteúdo e ainda passou a mão na sua bunda sem que percebesse. Já o Teylor é ácido, mordaz, está te sacaneando e você nem percebe. Talvez por isso ele viva nos extremos. O lema dos alunos com ele é 8 ou 80, ame-o ou deixe-o. Mas isso é compreensível quando, de um lado, temos com cara que por saber muito e ensinar muito, pode cobrar muito e do outro, temos alunos que estudam pouco, se dedicam pouco, mas querem reclamar muito.
Outros professores tiveram influência mais na minha forma de pensar sobre as coisas e refletir decisões. Foram praticamente orientadores profissionais e/ou pessoais. Mauricio Castanheira, o qual é impossível não se apaixonar pelo seu perfil de ursinho Pimpão. Na primeira vez que o vi tive vontade de colocá-lo na estante do meu quarto. Só não o fiz porque ela já estava lotada com o Manoel, Henrique e Laryssa. Ainda assim, tive o prazer de várias conversas com ele. Todas foram pautadas com determinados assuntos e falamos outros completamente diferentes. Beth entrou como o maestro da orquestra. Disse para que parasse de tocar o Foda-se e começasse a tocar a Cautela. Confesso que esse novo instrumento é complicado demais, mas tenho praticado bastante. Em tempo, nenhum dos dois passou a mão na minha bunda.
Dentre os professores cujos desenvolvi uma relação de coleguismo, o Fabio Simone é a prova viva de que desenho animado pode virar realidade. Ele é a versão em carne e osso do Charlie Brown e Linus em uma única pessoa. Já o Marcelo Maciel é o cara ideal para os dias nos quais estiver cabisbaixo. Ele ri de todas as suas piadas, fala que tudo dá certo e ainda te deixa comer os biscoitos do próprio armário. Sobre mão na bunda, o Fabio não sabe ao certo se passou ou se passaram, disse que depende, e o Maciel riu coçando a cabeça.
Mas de todos, o que mais ganha a minha admiração reconhecida é o professor Silvino, cujo sempre chamo de “Meu Herói”. Ele tem o perfil perfeito para os que querem uma desculpa para colocar o burro na sombra e ficar como inútil. Mesmo assim, continua dando aulas e participando ativamente de seus projetos de caráter de responsabilidade social e ambiental. Seu engajamento é tamanho que para conseguir um ponto nas suas disciplinas basta levar 10 latinhas de alumínio para reciclagem, levando uma garrafa pet com óleo de cozinha usado, você ganha dois pontos, e, para aprovação definitiva, basta levar um moleque da cracolândia ou um índio do Maracanã para casa.
Por fim, só tenho a agradecer a todos por tudo. Por terem me recebido de portas abertas, dado um tratamento igualitário e criado condições para que pudesse fazer o meu melhor. Sei que nos veremos por aí e espero que isto aconteça.