sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Barbearia à moda antiga
Amiga de verdade
Quando a Sandra viu no identificador de chamadas quem estava lhe ligando percebeu na hora que coisa séria estava por vir. Carla foi sua colega de faculdade na extinta Gama Filho. Viraram amigas naquela época criando laços muito fortes. Depois da formatura, projetos particulares, como família e trabalho, acabaram afastando uma da outra. Ainda assim, mantinham contato esporádico por e-mail. Permanecia viva entre as duas uma forte ligação de afinidade. Carla ligar para Sandra era sinal de que precisava falar algo com urgência. De fato, era.
Durante o fim do seu casamento, Carla se viu numa sequência interminável de frustrações. A primeira foi com o próprio ex-marido que se mostrou um canalha. Ela a traiu com a professora de hidroginástica da academia. Naquele mesmo dia, por conta do adultério prolongado, suas duas filhas ficaram até quase nove da noite na escola esperando pelo pai. Dado o divórcio, ela se decepcionou novamente com o ex-marido. Com o ego ferido por ter acesso limitado às filhas depois daquele episódio, ele começou a complicar os pagamentos de pensão. Por fim, sem a ajuda financeira do marido, Carla começou a ter sérios problemas com grana. Cortou uns luxos próprios para que o momento não atingisse às filhas. Depois teve de cortar prazeres das meninas, como clube, televisão por assinatura e idas ao teatro infantil aos sábado. A sua situação só piorava a cada mês que se passava.
Sandra sabia da situação de Carla por conta de outras pessoas em comum com quem mantinha mais contato. Na hora que viu o telefone tocando, não pensou duas vezes para tirar tal conclusão. Ela ia pedir dinheiro emprestado. Carla não se prolongou muito na conversa, tampouco entrou no assunto grana. Foi sucinta e objetiva. Queria marcar de conversar com Sandra pessoalmente. Entendendo que seria algo necessário a se fazer, a amiga topou se encontrar. Sandra sempre achou meio delicado esse negócio de emprestar dinheiro, mas um encontro com Carla para ouvir suas mazelas e dar um ou outro conselho já seria alguma coisa ao menos.
Quando Sandra chegou ao barzinho que marcaram, Carla já a aguardava e aparentava estar por lá por algum tempo. Seu semblante era um misto de preocupação com ansiedade. Mesmo assim, quando avistou a amiga adentrando, abriu um enorme sorriso. Não se viam há muito tempo. Abraçaram-se, trocaram beijinhos e, antes de se sentarem, cada uma comentou quase que ao mesmo tempo algo sobre o cabelo da outra. Riram e, enfim, se sentaram.
- Sabe, Sandra? Quero agradecer por vir. Sei que existem coisas que nos colocam em berlindas, mas a necessidade fala mais alto. E, de verdade, preciso fazer isso. Não é algo nada fácil. Não é mesmo. Precisei de muita coragem para fazer isso. E saiba que só estou aqui porque é você. Jamais faria isso com outra pessoa. Talvez, somente uma pessoa com uma relação de carinho recíproco tão grande quanto você conseguia entender o motivo de chegar a este ponto.
Sandra, que até então só acenava assertivamente com a cabeça e concordava com sons abafados pela garganta, interrompeu a Carla. Ela pediu para a amiga ser paciente porque as coisas precisam ser feitas com calma. Com Carla calada, ela prosseguiu dizendo que deveriam pedir algo para beber primeiro. Uma bebidinha de leve para relaxar. Palavras da própria. A amiga relutou e, em seguida, preferiu dizer que a bebida seria para dar coragem. Sandra concordou, riu e pediu dois cosmopolitan.
- Nossa – a Sandra interrompeu o próprio primeiro gole. – Isto lembra muito a época da faculdade, não é?
- Sim, bastante!
- Época boa! Saíamos da aula e íamos direto para o bar do Azevedo. Ficava lotado de aluno da educação física. Bando de homem sarado enchendo a cara de cerveja.
- É mesmo! E nós duas bancando as estilosas circulando com cosmopolitan em mãos.
- Éramos chiquérrimas. Chamávamos mais a atenção que aquelas pé-de-cana bebendo cerveja em copo de botequim.
- Além do fato que nenhum homem se oferece para pagar uma cerveja. Mas um drinque. Ah, um drinque todo homem quer pagar. Ainda mais para duas meninas finas e bonitas como nós duas.
- Nossa – Sandra se interrompeu para mais um gole e depois prosseguiu. – Saímos completamente bêbadas sem gastar um tostão. Época boa. Era tudo mais barato, por assim dizer.
As duas caíram na gargalhada. Quando os risos pararam, ficou um silêncio constrangedor que foi disfarçado com longos goles terminando os drinques. Sandra pediu mais dois. Carla voltou a puxar o assunto delicado. Temendo pelo que vinha, Sandra abriu o cardápio e disse que precisavam escolher algo para comer. A amiga transpareceu aflição com a nova interrupção. Então a Sandra se justificou dizendo que era melhor pedir a comida naquele momento e, enquanto esperavam, conversariam. As opções eram limitadas por se tratar de um bar simples. De qualquer forma, era uma deixa para a Sandra procrastinar a tal conversa. Até que surtiu certo efeito. Dentre as opções, existiam coisas que uma não comia e coisas que quebravam a dieta da outra. Era uma tarefa complexa encontrar algo que não se encaixasse nas restrições das duas e as apetecesse ao mesmo tempo. Feito finalmente o pedido, assim que o garçom saiu em direção da cozinha, Carla engoliu seco e deu entender que tomava coragem para prosseguir. Sandra foi mais rápida.
- Você vai adorar a porção de minis hambúrgueres. Não são enormes como os que estão na moda. São bem pequenos. Além de serem bem leves.
- É, Sandra – Carla parou de falar para dar um gole no seu segundo drinque. – Eu tenho evitado bastante comida com pão...
- Bobagem – Sandra interrompeu a Carla. – O pão daqui além de fininho é macio. Não é como aqueles pães tradicionais de hambúrguer que são massudos. Você vai adorar.
- Entendi. Bem, falando assim, fico até mais animada. Sabe como é, né? Pão massudo, carne processada...
- Não! – Sandra interrompeu a amiga novamente. – Aqui é artesanal. Eles compram a carne, moem, montam e tudo. Tudo feito na casa. Nada de carne de hambúrguer pronta de supermercado.
- Isso faz uma grande diferença mesmo. Dá um ar diferencial à coisa, não?
- Claro! E oh – Sandra fez uma pausa dramática. – O molho é sensacional. Ele tem um toque picante que fica na ponta da língua sem arder demais. É ótimo.
O silêncio constrangedor acompanhado dos goles em seus respectivos drinques retornou à mesa. Sandra foi a primeira a terminar o seu drinque. Repousou o copo sobre a mesa e jogou um olhar perdido para a decoração no alto do bar. Parecia que estava admirando apesar de já ter perdido as contas de quantas vezes já pisara por lá. Carla terminou o seu em seguida, arrumou os cabelos, passou a mão no rosto, ajeitou umas pulseiras em um braço, coçou o outro e assim seguiu demonstrando inquietação. Mesmo sem olhar diretamente para a amiga, Sandra percebeu a movimentação de Carla. Optou então por continuar admirando o que já conhecia de longa data. O desconforto de Carla permanecia notório. Era evidente que a qualquer momento ela tocaria no assunto. Evitando mais uma vez o que estava por vir, Sandra propôs uma foto para registro.
- Amiga, precisamos publicar uma foto nossa. Tem um monte de gente da Gama no meu Facebook. Eles vão adorar nos ver juntas.
Com um sorriso amarelo, Carla se aproximou de Sandra. Não era possível identificar se era má vontade, frustração ou cansaço com a dificuldade em fazer o que tinha planejado. Ainda assim, a foto foi tirada. Sandra não gostou do resultado. Tinha saído um homem andando ao fundo. Ela queria que a decoração aparecesse. Carla então topou uma segunda foto. As duas aprovaram. Enquanto Carla voltava para sua cadeira, Sandra mudou de ideia. Sugeriu que uma foto com as geladeiras abarrotadas de cerveja ao fundo ficaria mais divertida. Lá se foram as duas até o balcão. Pediram para um garçom tirar a foto das duas. Ele tirou. Tira mais três para garantir, pediu a Sandra. Carla já mostrava cansaço. Voltaram para a mesa. Sandra olhava o celular passando foto para cá e para lá. Carla com semblante apreensão. Enquanto uma tomava coragem para falar, a outra ofereceu o celular. Pediu para escolher uma foto dentre as duas que supostamente ficaram boas. Carla não queria fazer aquilo. Mesmo assim, foi simpática. Analisou uma e depois a outra. Preferiu a segunda, na qual estava com um sorriso mais natural, além de não parecer tão rechonchuda quanto na primeira. Sandra fez uma exclamação de alegria. Ia publicar finalmente a foto. Enquanto a amiga mexia minuciosamente no celular, a outra se preparava para finalmente falar. Recolheu fôlego como quem toma coragem e, quando ia começar, Sandra voltar a interrompê-la. Mudou de ideia. Elas nunca foram de cerveja. Não fazia o sentido para ela uma foto com as duas próximas a uma enorme geladeira com cervejas. A foto deveria ser com as duas brindando os seus tradicionais e saudosistas cosmopolitans. A pobre da Carla (sem ofender a situação financeira dela) estava mais uma vez sendo obrigada a postergar por alguns minutos o que pretendia fazer. Sentaram-se novamente lado a lado, pegaram seus drinques, montaram o sorriso e seguraram posição. Seis fotos. Uma vai prestar, brincou a Sandra. Dessa vez, a Carla sequer voltou a seu lugar. Preferiu permanecer ao lado de Sandra analisando as fotos. Tinha entendido que era um mal necessário e que participar talvez tornasse as coisas mais fáceis. Gastaram um bom tempo decidindo a melhor das fotos. Uma foi descartada porque a Sandra parecia que estava sem um dente. Era sombra, concluiu a Carla. Sorrisos falsos, drinques cobrindo o rosto e falta de foco foram as desculpas para descartar outras até chegar à conclusão da vencedora. A foto que seria digna de registrar aquele encontro em que cada uma delas tinha planejado algo e apenas uma delas conseguira êxito até então, a Sandra e sua procrastinação. Ao menos, com a escolha da foto, Carla teria a oportunidade de falar, pois sua amiga ficaria quieta publicando a foto. Enganou-se. Chegaram os minis hambúrgueres. Sandra colocou o celular de lado e atacou um deles. Ao mesmo tempo começou a fazer comentários sobre a suculência e a harmonização dos ingredientes. Carla percebeu que não teria a deixa que precisava, deixou então para depois. Preferiu comer e ficar trocando elogios sobre os pequenos sanduíches. Voltou-se então para o seu lugar.
Finalmente encerrado os hambúrgueres, Carla não sabia mais como conduzir a situação. Ela sentia a necessidade de colocar o assunto na mesa e ao mesmo tempo achava que não cabia mais ao momento. Provavelmente iriam beber os drinques que chegaram junto com os sanduíches e depois pediriam a conta. Era uma situação bastante delicada que ela não queria estar passando, mas se fazia necessária. Durante esse tempo de reflexão, e quem sabe agonia, de Carla, Sandra continuava alheia aos evidentes sinais de que a amiga lhe passava a cada instante. De forma silenciosa, Carla praticamente gritava pela atenção de Sandra que permanecia passiva àquilo tudo. Para piorar, contudo sem o conhecimento da amiga, Sandra estava fazendo tudo intencionalmente. A situação beirava a um jogo mental em que, em algum momento, alguém sucumbiria entregando os pontos. Carla não podia permitir isso Não, ela não podia sair de lá com a situação sem estar finalizada. Provavelmente, caso acontecesse, ela voltaria arrasada para casa. Coragem não era mais necessário. Carla precisava também se impor à mesa. Ela tinha de tomar a conversa para si e conduzir de acordo com o que pretendia. Era necessário que ela repetisse exatamente o que ensaiou algumas vezes na frente do espelho e outras durante o banho.
- Então, amiga – Carla iniciou a sua fala, mas foi com um tom passivo, o que permitiu que Sandra a interrompesse.
- Então – Sandra mostrou o celular para a amiga. – Precisamos escolher a legenda da foto.
- Ah, Sandra. Por favor... – Carla disse de forma passiva e foi novamente interrompida pela Sandra.
- Sem A, Nem Be. Pode matutando alguma coisa. Estava pensando em algo como “A irmã que meus pais não me deram”. O que acha?
- Meio forçado, né?
- Pode ser – Sandra fez uma pausa para refletir. – Ao menos vai ficar fofo. Dá uma ideia então.
- Não sei, Sandra. A minha cabeça está zonza de tão ocupada com outra coisa.
- Outra coisa? – Sandra percebeu que estava escorregando em uma casca de banana da Carla e se fez de desentendida. – Pare de bobagem. Estamos aqui para nos divertir. Sem esse negócio de trazer problemas do dia-a-dia para cá hoje. Que tal “E lá se vão quinze anos de amizade”?
- Lá se vão? Parece que eu morri e acabou.
- Ai, que horror, Carla – Sandra riu um pouco. – Tem razão. Não faz muito sentido. Vou colocar então “Da faculdade para a vida”.
- Que tal colocar “A amiga que pode sempre contar comigo”?
Sandra não sentiu apenas uma alfinetada, mas uma espada atravessando seu peito. Instalou-se um clima tenso na mesa. Carla esperava que Sandra reagisse de tal maneira que permitisse que continuasse com o que pretendia. Sandra, por sua parte, se fez de rogada e aproveitou a deixa para fechar a cara não dando margem à Carla para prosseguir. Aproveitando ainda o clima na bom, Sandra pediu a conta. Quando o garçom chegou com a bendita, Sandra deu um único gole final no seu drinque, deixou o dinheiro na conta, disse para o garçom ficar com o troco e se levantou. Em seguida, armou um falso sorriso e se despediu de Carla dizendo que desta vez a conta ficaria por sua conta. A amiga não queria aceitar de jeito algum. Marque uma próxima para ser a sua vez de pagar, disse a Sandra que saiu apressadamente.
Na beira da calçada, à espera de um táxi qualquer, Sandra foi surpreendida por Carla. Ela queria se desculpar. Disse que precisava muito conversar algo com ela, mas que não teve a oportunidade naquela noite. Depois, agradeceu, pois acreditava que acabaria estragando a noite criando uma situação embaraçosa desnecessária. Sandra disse que entendia e, com a maior cara deslavada, falou ela era uma grande amiga e, por isso, não precisava ficar de melindres. Carla fez uma mea culpa. Por fim, Carla tirou um envelope da bolsa. Explicou que já imaginava que talvez não conseguiria falar e decidiu então ter uma segunda opção, uma carta explicando tudo. Pediu para a amiga ler em casa com calma e que, caso achasse que deveria, entrasse em contato com ela. Sandra consentiu, pegou a carta, deu dois beijinhos na Carla seguidos de um longo abraço e entrou no táxi.
Já em casa, enquanto tomava banho, Sandra foi interrompida pelo marido. Ele perguntou como tinha sido o tal encontro. Antes de sair, Sandra tinha contado o que esperava e como pretendia se comportar. Sandra então respondeu ao marido contando detalhe por detalhe. O marido se divertiu bastante com a cara-de-pau da esposa. Quando terminou o banho, Sandra também terminou a história e o marido fez uma piada:
- Sacanagem, amor. A mulher está toda complicada com grana e você ainda a leva num bar caro para beber drinques acompanhados de sanduíches sofisticados?
- Minis sanduíches!
- Que seja – o marido riu da ponderação da esposa. – Você só aumentou a dívida dela.
- Que nada! Eu paguei a conta toda.
- A conta toda? SANDRA! Quanto deu essa brincadeira?
- Pouco mais de duzentos.
- Ah Sandra – o marido se interrompeu para coçar a cabeça. – Resolveu fazer caridade?
- Meu bem, quanto você acha que ela ia pedir emprestado? Eu imagino uns mil. Por baixo, uns oitocentos. Gastei duzentos, entretive a Carla à noite toda e fiquei livre de um prejuízo maior.
- Até parece. E a carta?
- Ah, nem li e nem vou ler para não ficar com remorso. Fiz o que podia.
- Posso ler?
- Pode! Pega lá na bolsa.
O marido de Sandra foi até a sala, pegou a carta na bolsa e voltou para a porta do banheiro. Enquanto Sandra secava as pernas apoiando um pé por vez na privada, o marido recostado na porta lia a carta. Seu semblante era péssimo. Quando terminou, ao ser perguntado pela esposa se era tão ruim assim, ele respondeu que ela não iria querer saber. Foi embora, rasgou a carta e a jogou fora.
Naquela noite, certa de que fez a ação certa, Sandra dormiu com a consciência limpa. Já o marido, ficou a noite toda acordado. Era difícil pegar no sono com a certeza de que a amiga da esposa sabe que ele está a traindo com a fisioterapeuta.

Próximo conto da coleção em breve