Conto anterior da coleção: Projeto Brasil YYY
217 dias
Com passos pesados e arrastados,
Gerson subiu as escadas do seu prédio que não tinha elevador. Ele morava no
último andar, na cobertura, onde era o apartamento do zelador que o alugou para
fazer uma grana extra. Ao entrar em casa, foi recebido por um ar carregado que
já impregnava a casa há dias e por algumas cartas ao chão que foram passadas
por deixado da porta. Mesmo sabendo do que se tratava, ele se abaixou para
pegá-las. Avisos de cobranças, ameaças de corte de serviço e novas faturas que
igualmente às demais não seriam cumpridas. Era o fechamento com chave-de-ouro
de um dia de merda. Passou dez horas na rua à procura de emprego e o máximo que
conseguiu foi gastar o final de sola do seu sapato velho que tinha sido
presente de três natais atrás. Entrou no banheiro, lavou as mãos e o rosto,
apoiou-se na bancada e fitou o próprio rosto no espelho. Estava mais
envelhecido do que nunca. Sua aparência era péssima. Gerson era o símbolo da
derrota em pessoa. Ninguém daria uma chance para aquele homem. Pensou em ligar
para os seus filhos, mas sabia que a ex-esposa não o atenderia. Depois esboçou
um sorriso. Não tinha créditos no celular mesmo e o telefone da casa ainda fora
cortado. Olhou-se no espelho mais uma vez e em voz alta disse para si que era suficiente.
Estava na hora. Entrou no box, pegou a ponta da gravata e a amarrou bem firme
no cano do chuveiro. Olhou pela última vez para uma saboneteira escurecida por
musgo com quem se despede do pouco que tem e soltou o corpo deixando-o desabar.
Um início de cheiro de cigarro entrou
no nariz de Gerson provocando incômodo. Ele acordou. O banheiro estava escuro e
o cheiro de cigarro era forte. Instintivamente, ele se levantou e, ao sair do
box, se deparou com um homem de pé à porta do banheiro fumando. Ele vestia um
alinhado terno negro, com camisa cinza escuro e uma bela gravata escarlate. Não
era possível ver seu rosto, pois pendia sua cabeça para frente e assim o
deixava encoberto pelo impecável chapéu negro que usava. Gerson ficou parado e
calado olhando o homem que calmamente levava o cigarro à boca, tragava e depois
soltava seguidas baforadas pequenas. O silêncio permaneceu por alguns minutos
até que Gerson o quebrou:
- Você é quem eu estou pensando?
- Sim.
- Como sabe em quem estou pensando?
- Porque sou quem está pensando, logo
sei o que está pensando.
- Você veio me buscar?
- Eu não busco pessoas, Gerson. Eu
castigo pessoas.
- Você vai me provocar dor e
sofrimento então?
- Não, eu já passei dessa fase de
sadismo gratuito. Isso perdeu a graça depois que lançaram 50 Tons de Cinza. Agora
uso a vulnerabilidade de vocês a meu favor. Facilitando para você, porque não
tenho o dia todo, coloco vocês para trabalharem para mim.
- E o que você... – Gerson iniciava a
pergunta quando foi cortado pelo homem.
- Veja bem, eu não tenho tempo de
sobra, então vou agilizar tudo por aqui. Você em vida cometeu 217 pecados.
Foram 217 pecados. Foram 217 atitudes condenáveis que você precisa pagar agora
para poder subir aos céus. Para cada pecado seu, você terá de viver um dia
extra neste mundo. Contudo, você não é mais uma pessoa qualquer. Você morreu.
Aliás, morreu nada! Se matou. Atitude dos fracos. Confesso que sou fã de vocês,
pois são os mais fáceis de convencer. Enfim, são 217 dias vagando por este
mundo, interagindo com pessoas que não desenvolverão mais laços com você.
Inclusive, para elas, você nem terá mais esse rosto. Você estará vivo, mas não
será você. Será outra pessoa completamente diferente, apenas com a mente que
sempre teve. E nem é uma mente qualquer, né? É uma mente atordoada, não é,
suicidinha?
- Então, resumindo, preciso apenas
existir por mais 217 dias? Quero dizer, mais 5.208 horas iguais às minhas
últimas, com a exceção de que não terei mais as obrigações mundanas de antes?
- Não é bem assim. Pode ser mais
rápido, como pode ser mais demorado do que calculou. Aliás, estou impressionado
com a sua habilidade. Enfim, o meu calendário funciona de maneira diferente.
Para mim, o dia não acaba quando o relógio bate meia-noite. Não! O que
determina um dia completo para mim, no seu caso, será quando você matar uma
pessoa. Passados os 217 dias completos que me deve, sua alma poderá subir aos
céus livre de todos os pecados e ficar em fim aliviada.
O homem virou-se de costas e foi
embora. Gerson ficou parado no meio do banheiro ainda assimilando aquela gama
de informações. Ele queria dar fim a tudo e o que acabou conseguindo foi
iniciar uma considerável sequência de tarefas das quais duvidava ser capaz de
efetuar.
Passado um tempo refletindo hipóteses
e soluções, Gerson foi à cozinha, pegou algumas facas e um grande garfo,
guardou todos na cintura da calça e seguiu escada abaixo. Chegando à rua, viu
que era tarde da noite e poucas pessoas estavam pelas redondezas. Ele entrou
numa rua deserta e viu uma mulher gorda que devia ter quase cinquenta anos
andando só. Ela carregava várias sacolas de supermercado. Em passos pesados e
com pouco ar, ela seguia rua acima como uma locomotiva cansada de viagem.
Gerson apertou o passo se aproximando dela por trás. Segurou a faca pelo cabo e
se posicionou melhor para enfiar no pescoço da fácil vítima. Não conseguiu.
Tinha cometido 217 pecados em vida, mas não achava justo usar uma mulher inocente
para pagar por um deles dentro de um conceito de justiça distorcido de uma
entidade. Resolveu voltar para casa e se sentou no chão. Ficou sentado por muito
tempo. Olhando o relógio na mesinha da sala calculou que permaneceu no mesmo
local por uns dois dias ao menos. Não sentiu fome, nem sono. Percebeu que ficar
ali parado, por mais que não resolvesse o seu problema, ao menos não criava
novos.
- Você é muito burro – a voz do homem
ressurgiu da cozinha junto com o cheiro do cigarro. – Existem maneiras mais
inteligentes de quitar a sua dívida comigo sem entrar em dilemas morais.
Ninguém lhe disse que seria fácil. A dificuldade vai se manifestar de duas
maneiras distintas e cabe a você escolher com qual delas quer lidar. A
dificuldade de saber que escolheu pessoas inocentes porque não ofereceram
resistência é uma delas. Vai pesar na sua consciência hipócrita, mas pelo menos
será prático. A outra é a dificuldade física que, ao escolher marginais,
pessoas ruins e pecadores em um nível mais baixo que o seu, terá resistência,
pois irão lutar e revidar até a última gota de vida, mas em contrapartida não
pesarão na sua consciência. Qual vai escolher? A eternidade nas suas condições
cedo ou tarde afetará seu senso crítico e escolher qualquer coisa será questão
de tempo. Decida-se e ponha um fim nisso.
O homem foi embora deixando Gerson com
a cabeça confusa. Ainda sentado no chão, Gerson provocava em sua cabeça uma
luta ardilosa entre seus princípios e as ideias do homem. Ele refletiu por
muito tempo enquanto esperava anoitecer mais uma vez. Quando a escuridão tomou
a cidade, ele voltou à rua e foi em direção a uma parte do bairro que era
bastante perigosa. Ficou andando sem direção e sem pressa até que foi abordado
por um rapaz que lhe pediu a carteira. Era o que Gerson procurava. Sem hesitar,
sacou uma das facas e partiu para cima do rapaz que não fugiu. Durante o
combate, algumas de suas facas caíram e o rapaz pode pegar uma delas tornando a
luta mais igual. Ao final, Gerson conseguiu matar o rapaz, mas o saldo era
péssimo. Cortes e perfurações por várias partes do seu corpo. Enquanto avaliava
o estrago, o cheiro de cigarro voltou ao ar.
- Parabéns – disse o homem chegando
sorrateiramente por trás de Gerson. – Você conseguiu encerrar finalmente seu
primeiro dia.
- Mas a que custo? Estou todo
arrebentado!
- Não se preocupe. Você é diferenciado
dos demais. Isso vai curar numa velocidade absurda. Em menos de quatro horas
normais você estará inteiro e novo.
- QUATRO HORAS? Você tem ideia do
quanto isso dói? É dor por todo o meu corpo. Eu não aguento quatro horas com
essa dor. Você consegue imaginar o quanto está doendo?
- Não, não sei o quanto isso dói. Só
sei que algumas pessoas não revidam, logo não devem causar todo esse sofrimento
físico. Pense nisso com calma. Talvez uma dor na consciência por um curto tempo
até a sua subida ao céu seja menos penosa que uma dor física por várias horas
por 217 vezes. Ah, e não fique mal acostumado, pois não vou ficar aparecendo a
cada dia completado. Assim eu espero.
O homem se foi mais uma vez e Gerson
ficou mais confuso do que nunca. Já estava morto, o que fizesse naquele momento
não seria mais considerado pecado, portanto teria acesso ao céu de qualquer
forma. Talvez não fosse o momento de questionar as leis divinas e jogar de
acordo com as regras. Se as condições permitiam maneiras de tornar tudo
conveniente, por que não fazer?
Gerson então esperou o fim da
madrugada e foi para o ponto final de uma linha de ônibus que iniciava pela
manhã sempre lotada. Entrou com os trabalhadores ainda assonados e esperou o
ônibus partir. No meio do caminho, sacou sua faca, atingiu um golpe bem dado no
motorista e arrancou o seu corpo já inerte do banco. Assumindo o volante, sem
dar chance aos passageiros que fugissem de dentro do ônibus, Gerson acelerou
pela longa principal e, numa curva fechada, jogou o ônibus contra um enorme
muro. Foi uma barbaridade.
- Estou impressionado, rapaz – a voz
do homem e seu característico odor de cigarro despertaram Gerson que estava
desacordado no box do seu banheiro. – Sessenta e seis mortos de uma tacada só.
Está de parabéns!
- Ué, voltei ao meu banheiro?
- Aparentemente, você também morreu no
acidente, então te trouxe de volta para cá.
- E cada um deles serviu como um dia
completo?
- Sim, rapaz, cada morte no acidente serviu
como um dia completo. Parece que você está finalmente entendendo como funciona.
Assim que o homem saiu, Gerson voltou
para a rua em direção ao ponto final. Segundo seus cálculos, mais três ônibus
daquele, ou dois um pouco mais cheios, e ele estará na paz eterna do céu.
Chegando ao ponto, um policial estranhou aquele homem ansioso pela saída do
ônibus. O policial então abordou o Gerson, fez a revista tradicional
encontrando as facas e o prendeu.
Na prisão, Gerson foi colocado numa
cela separada onde, na companhia de um senhorzinho preso por um pequeno furto,
aguardava para ser transferido para uma das celas coletivas. Entendendo que não
tinha o que perder e querendo ganhar tempo, ele aproveitou que seu companheiro
de cela é uma pessoa frágil e partiu para cima dele. Golpeando a cabeça do senhorzinho
contra as grades, Gerson conseguiu sucesso na sua ação. Somente bem depois que
os guardas apareceram. Estupefato com o ocorrido, o diretor da penitenciária
transferiu o Gerson para a solitária e o avisou que ficaria por lá por tempo
indeterminado. Gerson se viu acuado. Ficar isolado naquelas condições
atrapalhava seus planos. Constatando que sua caminhada rumo ao céu estava
emperrada, ele entrou em desespero e enxergou apenas uma solução. Improvisando
suas calças como uma corda, ele se matou enforcado.
- Mas é um suicidazinho por natureza
mesmo – a voz do homem surgiu com seu tradicional cheiro de cigarro.
- Era a única solução que... Ei! Por
que ainda estou aqui? Não deveria acordar no meu banheiro?
- Você que se meteu nesse problema.
Agora você que se vire sozinho.
- Peraí! Eu preso aqui não é benefício
algum para nenhum de nós dois. Só vai emperrar meus planos e ocupar seu tempo
comigo.
- Se vira – disse o homem antes de ir
embora atravessando o robusto portão maciço de ferro.
Gerson voltou a entrar em pânico.
Aquilo era inadmissível para ele. Algo precisava ser feito. A única maneira naquele
momento de tentar ajustar o placar a seu favor seria atacando os guardas quando
entregassem as refeições. Todavia, com ou sem sucesso, isso só prolongaria mais
ainda seu tempo pela solitária, comprometendo cada vez mais sua ascensão ao
céu. Não se esquecendo de que após o primeiro incidente, eles teriam mais
cautela com o Gerson tornando quase impossível um novo ataque. Sim, algo
precisava ser feito e Gerson possuía limitações de ideias à sua disposição.
Recorreu às calças como corda novamente.
- Além de suicidazinho, é um teimoso –
disse o homem ressurgindo na escuridão.
- Onde estou? Ah, obrigado! Nunca
fiquei tão feliz em voltar para o meu banheiro.
- É, mas não vai se acostumando. Foi
desta vez apenas porque estava em uma sinuca de bico...
Gerson dessa vez nem esperou o homem terminar
de falar e sair. Ele mesmo partiu em disparada agradecendo mais uma vez e depois
se despedindo. Gerson foi correndo a uma conhecida loja de utensílios de
construção na região que algumas pessoas sabiam que vendia armas ilegalmente
nos fundos. Chegando lá, disse claramente suas intenções e um atendente o levou
para os fundos. A loja estava quase fechando e só estava o tal atendente por
lá. Gerson se desculpou e, antes que o atendente pudesse entender do que se
tratava o pedido de desculpas, pulou com uma faca em cada mão na sua direção. Foi
tudo muito rápido. Com o corpo do rapaz ainda quente estirado no chão, Gerson
saiu com duas sacolas cheias de armas diretamente para casa. Somente uma coisa
existia em sua mente, encerrar essa contagem o quanto antes.
Gerson estava mudado com tanta pressão
por encerrar com tudo de vez. A influência do tal homem era evidente e
crescente. Seu ar de depressivo e derrotado foi mudando para colérico e
inconsequente. Não era mais um homem fracassado. As pessoas, ao se depararem
com ele na rua, viam um homem claramente perigoso e instável. Imponente e
decidido, Gerson voltou ao tal bairro perigoso em direção a uma conhecida boca-de-fumo.
Os chamados soldados do tráfico, mesmo armados, foram surpreendidos por um
homem louco com armas em mão atirando para todos os lados. O efeito surpresa
foi favorável ao Gerson que não possuía uma mira muito boa, nem mesmo traquejo
para o manuseio das armas. No primeiro minuto de tiros, confusos com o que
acontecia, as vítimas foram alvos fáceis para o Gerson. Depois, o jogo mudou de
cenário e começaram a revidar. Ao final, seis traficantes mortos, além do
Gerson que foi alvejado.
- Boca-de-fumo com homens armados –
disse a voz acompanhada pelo cheiro de cigarro acordando o Gerson. – Vou
repetir. Boca-de-fumo com homens armados. Quando eu achava que você estava
ficando esperto, você não dá um passo para trás regredindo. Você dá um pulo.
Qual o seu problema, homem? O que você tinha em mente?
- As coisas não saíram como eu
planejei... – Gerson foi interrompido pelo homem.
- Não saíram como planejou? O que
tinha planejado? Seja honesto comigo, porque tudo que consigo imaginar era você
morrendo logo cara.
- Minha expectativa era surpreender
todos e não restar um sequer. Daí, sairia sem maiores problemas.
- Homem. Homem. Estou começando a
achar que seu único talento é se matar. Qual a sua limitação cognitiva de
entender que, procurando por pessoas ruins, elas revidarão dificultando o seu
trabalho? Pare de se preocupar com consciência, inocência e pessoas boas. A
morte é uma certeza que não tem para onde fugir. Imagine da seguinte forma.
Você antecipando a morte de uma pessoa inocente, provavelmente ela terá menos
tempo de vida, logo potencialmente terá cometido menos pecados. Fato que nos
leva a concluir que ela precisará de menos tempo nessas condições que está
agora. Veja que lindo! Você vai minimizar os problemas dessas pessoas no pós-morte.
Facilite o seu lado, homem. Agilize as coisas. Você ainda tem 139 mortes pela
frente. Ou dias, se prefere colocar dessa forma mais purista.
O homem se vai e mais uma vez Gerson
fica confuso. A ordem do universo não podia ser algo tão equivocado como aquele
homem dissera. Na cabeça de Gerson não fazia o menor sentido. Ele chegou a
relembrar da vida real. De como as coisas eram de verdade. Sim, existiam loucos
que aleatoriamente matavam pessoas. Pessoas más que só traziam maldade. Estaria
então explicado de onde elas surgem e suas motivações? Sim, talvez estivesse. Só
que na matemática a conta não fechava. Muitas pessoas precisariam pagar por
seus pecados após morrer e, por isso, o número de pessoas más deveria ser
proporcional a essa quantidade. Todavia, nem chegava perto. Será que poucas
pessoas após morrer aceitavam o discurso que vale qualquer coisa para pegar os
pecados? E se fossem poucas, o que as outras faziam? Aceitavam matar apenas as
pessoas más? Ora, não existiam tantos relatos de justiceiros assim no mundo.
Não, a conta não fechava. Para fazer sentido, era necessário entender que
existia uma quantidade quase obscena de pessoas vagando por aí se negando a
pagar pelos seus pecados naquelas condições. Bem, se fosse realmente isso, onde
estariam? Não, as contas não fechavam.
- É isso! As contas não fecham –
Gerson exclamou em voz alta.
O homem disse que Gerson precisava
pagar por 217 pecados. Logo, pagaria com 217 dias ou 217 mortes, se assim
preferisse falar. Antes de sair, o homem afirmou que ainda existia um débito de
139 mortes. Gerson, mesmo fracassado na vida profissional, sempre foi bom em matemática
e em fazer contas rapidamente. Com esses valores, ele concluiu que o homem
contabilizou 78 mortes. Foi ali que ele enxergou a sua brecha. Pelas suas
contas, ele tinha matado um trombadinha na madrugada, sessenta e seis pessoas
num ônibus, o idoso na cela e seis traficantes. Isso totalizava 74 pessoas.
Faltavam quatro na contagem feita pelo homem. Esses mesmos quatro se referiam
ao próprio Gerson que morrera quatro vezes durante esses processos. Isto é,
qualquer morte valia, inclusive a própria. Gerson tinha sua solução. Bastava se
matar mais 139 vezes. Contudo, tinha percebido que o homem nunca mencionara tal
possibilidade, tampouco exposto a contagem. Portanto, precisava ser discreto
quanto a isso. No início, foram pequenos suicídios leves com a desculpa de consultar
o homem.
- Eu vou falar pela última vez – disse
o homem em tom sério e intimidador. – Pare com isso! Está me irritando e você
não quer me ver irritado. Se você tem mais alguma dúvida, que tire agora. Não
aceitarei você ficar me invocando para perguntas tolas sobre poder encontrar as
suas vítimas para fazer uma reunião de novos amigos de afazeres.
Gerson não inventou uma nova desculpa
e o homem foi embora. A contagem, que agora era controlada minuciosamente por
Gerson, tinha chegado em 93. Faltavam 124 ainda. Isto é, faltavam 124 maneiras
criativas de se matar sem que o homem percebesse. A primeira já estava
planejada e Gerson colocou em prática.
- Você é muito burro – falou o homem
com seu inseparável cigarro acordando o Gerson mais uma vez. – O que você
pensou desta vez? Por favor, seja sincero. Estou muito curioso em saber qual
foi o seu plano mirabolante desta vez.
- A minha proposta era provocar uma
briga generalizada numa torcida organizada e, assim, contabilizar várias
vítimas ao final.
- Veja bem... – o próprio homem se
interrompe para dar uma maior dramaticidade à sua fala. – Até faz sentido o seu
plano. Faz mesmo. Preciso ser sincero. O problema foi você entrar no meio de
uma torcida organizada com a camisa do time rival. Era óbvio que você seria
espancado. Eles não tiveram dó de você mesmo. Preciso dar os parabéns a eles.
Já a você... bem... a você só me resta rir. Sequer uma “mortezinha” junto da
sua. O máximo que conseguiu foi machucar a mão dos que tanto te bateram. Eu vou
embora para não rir na sua frente.
Lá estava Gerson só novamente no seu
banheiro. Entretanto, o ambiente era completamente o oposto do que estava
começando a se habituar. Se antes ele ficava cercado de agonia e indecisão
sobre como resolver sua suposta evolução espiritual, agora ele estava aliviado
e vendo as coisas andando a seu favor. A primeira simulação surtiu com sucesso.
Só lhe restava prosseguir com o plano usando o máximo de imaginação possível.
- Não, não era uma ideia genial. Você
é muito burro! Se jogar debaixo de um trem no intuito de provocar um descarrilamento
é uma péssima ideia. Só uma mente confusa como a sua acharia que isso daria
certo.
O roteiro seguia na maneira planejada.
Gerson bolava as piores ideias para o tal homem, mas, na verdade, eram
suicídios geniais. Ele pulou de um prédio querendo supostamente acertar uma
massa de pessoas, porém, errou nos cálculo e caiu em cheio na marquise. Tentou
roubar um tanque de um quartel e, obviamente como era esperado, foi alvejado
nos primeiros passos. Apesar de muitas das suas ideias possuírem uma essência
similar entre si, não se pode dizer que ele repetiu uma sequer.
- Como assim você engoliu gasolina e
com um isqueiro tentou ser um dragão humano? Você não pode ser tão burro.
Não, Gerson não era burro. Seu
fracasso profissional era culpa de sua baixa autoestima e falta de preparo. Todavia,
nunca foi um cara burro. Era esperto até demais. Tanto que provou a si mesmo ao
colocar em prática o mais louco plano na tentativa de se matar 139 vezes. E não
eram 139 simples mortes. Eram 139 mortes diferentes e dissimuladas, por assim
dizer. Em determinado momento, por mais estranho que isso possa soar, Gerson
começou a achar divertida a brincadeira. As dores provocadas antes das mortes
por pancadas e outros ferimentos nem o incomodava mais. Não seria surpresa se
alguém visse Gerson com um baita sorriso estampado no rosto a caminho da sua
suposta morte mais uma vez. A cada nova morte estapafúrdia, mais próximo da
ascensão ele se encontrava. Por isso, era um momento de regozijo. Gerson
poderia finalmente elevar sua alma.
- Você por aqui? – perguntou o Gerson
espantado com a presença do homem no seu banheiro. – Tem tempo que não aparece
para me receber. O que houve?
- Eu percebi o que estava fazendo. Eu
sabia desde o início. Não se esqueça de quem eu sou e do que sou capaz de
fazer.
- Isto significa que estou encrencado?
- Não, eu não vim para isso. Estou
aqui para dizer que resta apenas uma um dia. Mais uma única morte e estará tudo
encerrado.
- Então eu consegui?
- Sim, podemos dizer que conseguiu.
- Posso então encerrar de qualquer
forma essa última?
- Não!
- Não?
- Não! Eu que irei fazer isso. A
última será minha. Está pronto?
- Estou. – Gerson então mudou de ideia
rapidamente e se interrompeu. – Espera! Quero lhe fazer uma pergunta.
- Pois faça.
- Tentei entender como as coisas
funcionavam. Onde estavam todas as outras pessoas que morreram e precisavam
pagar pelos seus pecados. O que elas decidiam fazer?
- Isso que você passou não serve para
todos. É algo que só é feito aos suicidas. A proposta é testar até que ponto você
consegue recuperar a sua humanidade que foi perdida ao ponto de dar cabo pela
própria vida. Você precisou de pouco tempo para se sentir desconfortável com o
que lhe foi oferecido e, no intuito de ser uma pessoa melhor, encontrou a uma
solução razoável. Posso prosseguir?
O homem fez apenas um gesto com a mão
à distância na direção de Gerson que apagou. Um tempo depois, Gerson acordou
novamente em seu box sentado no chão e, por isso, nada entendeu. Tateou o corpo
e estava vivo. Mais vivo do que nunca. Ele não tinha morrido. Sua primeira tentativa
de se matar falhara. Ele caiu no chão e, com o impacto, desmaiou. Foi tudo um
sonho. Foi um aviso. Foi um grande aprendizado e ele assimilou direito. Nunca
mais ficaria para baixo. Lutaria até o fim pelo sua vida e o sucesso dela. A
partir daquele momento, um novo homem surgiu. Confiante, determinado e
otimista.
Gerson então se levantou e sentiu um
peso. Na ponta da sua gravata estava amarrado o chuveiro. O cano não tinha
aguentado seu peso e se rompeu, foi assim que ele caiu e desmaiou. Com o chuveiro
e parte do cano em mãos, Gerson de frente para o espelhou quebrou a sua
promessa de nova vida e se lamentou pela primeira vez:
- Droga! O proprietário vai descontar isso no meu aluguel.
Próximo capítulo da coleção: Neguinha