terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Aflição de mãe

Capítulo anterior Recomeço
- Oi, meu filho.
Frases como essas são um bote inflável no meio de um oceano de perdição quando estamos boiando à deriva na vida. Por mais decepcionados que estivessem com a minha separação, meus pais me receberam no restaurante com a solidariedade necessária. Inclusive com o meu atraso de quarenta minutos. Pois é, pontualidade nunca foi o meu forte. Mesmo de moto e dirigindo de maneira exageradamente irresponsável.
Marquei em um restaurante perto da casa deles que era um dos seus favoritos. Assim, a aporrinhação com algo que os desagradassem não se acumularia com os assuntos que precisavam ser tocados.
- O que aconteceu?
A pergunta veio de forma direta antes mesmo que me sentasse à mesa. Mamãe nunca foi de rodeios. Tanto que logo após a minha resposta dizendo que aconteceu o inevitável, ela perguntou se a bebida não era o motivo. Na cabeça dela, Maria Fernanda não aguentava mais as longas noites de bebedeiras e acabou fazendo com que eu saísse de casa.
- Dona Vânia – chamá-la de maneira formal em determinados momentos criava uma entonação necessária. – Não se esqueça que foi a sua nora quem deu entrada diversas vezes no hospital com coma alcoólico durante estes anos de casamento. Inclusive na noite de núpcias!
- Mas, claro, também! Acompanhar você deve ser uma tarefa dificílima. Você não bebe. Você entorna. Acha mesmo isso necessário?
Papai permaneceu calado. Era o estilo dele. Ele sabia mais das minhas histórias que a mamãe. Bem, ele sabia apenas de algumas bebedeiras a mais que ela. Nunca soube da parte mais pesada delas. Poupá-los disso, além de um ato egoísta para me livrar de ouvi-los me recriminando, reduzia as já existentes decepções deles comigo.
- Não, mãe. Não foi isso! Foi ciúmes. A situação estava fora do controle e sair de casa era a solução mais viável.
- Ah, mas alguma coisa você aprontou. A Fernanda nunca teria crises de ciúmes sem motivo. Você fica dando trela para as suas aluninhas. Cuidado, meu filho. Fica se envolvendo com aluna. Você pode perder o seu emprego. Você pode ser preso. Ainda mais lá na Pavuna. Não quero nem pensar. Imagine que um pai apareça por lá para te matar.
- Mãe, a Pavuna não é o velho oeste. Quero dizer, não chega a tanto. E, não, não saí com aluna alguma. Ela que foi perdendo a confiança, o controle e o bom senso. Meteu os pés pelas mãos e aqui estamos. Digo, aqui estou.
- Não – ela balançava a cabeça negativamente não querendo acreditar. – Você fez alguma. Maria Fernanda não é maluca.
Muitas pessoas discordariam da afirmação de mamãe sobre a sanidade da Maria Fernanda, inclusive a própria. Éramos dois doidos, inclusive um pelo outro. Entretanto, retrucar não era a melhor das opções. Assim como Tatiana fazia comigo, mamãe vestia a camisa de Maria Fernanda. Era inconcebível que ela estivesse errada. Ficava mais prático culpar o filho pinguço irresponsável. Se bem que isso quando dito em voz alta faz até mais sentido, mas não era o caso.
- Meu filho, pense bem. Uma mulher bonita, inteligente, que gosta de você, carinhosa, se veste bem...
- Tem um excelente útero para gerar meus filhos, né?
- Ok – meu pai interrompeu para fazermos os pedidos. – Vânia, o de sempre? Filho, divide a picanha na pedra comigo?
Pedidos acordados e feitos ao garçom, o silêncio se estabeleceu na mesa. Papai ficou com o olhar perdido mirando a televisão do restaurante, eu bebericando o chope e mamãe ficou de cabeça baixa acenando que discordava com algo. Todos sabiam com o que ela discordava. Até a família, que ignorava a criança batucando os talheres na mesa atrás como se fosse o Olodum, sabia o motivo da discordância de mamãe. Ninguém ousava questioná-la. A ideia era deixar cair no esquecimento.
- Eu não me conformo – ela quebrou o silêncio provando que não precisávamos abordar o motivo da indignação dela. – Uma menina direita... Vocês eram tão apaixonados... Fizeram aquela festa enorme... Demos várias coisas para a casa... Não me conformo.
- Ah mãe – tentou contemporizar com coisas que nem mesmo acreditava. – Vai ver é um tempo. Vai que passa e superamos, não é?
- Tempo? Pois sim – ela fez uma pausa, riu forçadamente e prosseguiu. – Vai ser questão de tempo para ela arrumar outro. Bonita daquele jeito? Pois sim. Sempre que ia para a rua com ela, via os homens babando. Ela chama muito a atenção, meu filho. Aposto que aquele gerente do banco deve estar em cima dela.
- Vânia – papai a interrompeu. – Fazer nosso filho imaginar outro homem sobre a Maria Fernanda não vai ajudar nem um pouco.
- Obrigado, pai – disse para ele. – Acho que mamãe, ao falar em cima, quis dizer dando em cima, chegando junto, ou paquerando como costumavam falar na sua época. Mas, mesmo assim, você trazer a hipótese alternativa de um homem nu sobre a Maria Fernanda foi uma cena bastante útil à conversa. Garçom, mais um chope, por favor! E traga a carta de tequilas, pois será necessário.
- Não, meu filho – mamãe falou para mim, mas gesticulava negativamente para o garçom. – Não vai misturar coisa alguma. Pode pedir mais um chope, mas beba com modos.
- O que seria com modos, Dona Vânia? Com o mindinho levantado? Bebericando fazendo bico?
- Usando canudinho do Bob Esponja – meu pai complementou.
- Aílton, não comece a dar corda para a bobeira dele – mamãe recriminou o papai. – O assunto aqui é sério e você sabe muito bem que nosso filho é muito imaturo.
Para nossa sorte, a comida chegou e a fome era enorme. Fez-se mais uma vez o silêncio. Comentários avulsos sobre o ponto da carne, quantidade de sal no tempero e arrependimento sobre pedir fritas e não batatas portuguesas foram momentos pontuais. Não era apenas o momento que passávamos que criou aquele silêncio. Era habitual conversarmos pouco durante as refeições. Quando estávamos apenas os três, a interação durante o momento de comer era sempre nula. Talvez uma consequência de anos com cada um comendo em um cômodo diferente. Por mais constrangedor que isso possa soar, o entrosamento entre os três em situações como aquela era sofrido e algumas das vezes forçoso. Não que isso denote falta de afeto ou laços familiares. Apenas não éramos uma família de prezar pelo momento à mesa.
- Garçom, outro chope, por favor – era o quarto ou quinto, mas tão necessário quanto os anteriores. – Por que está chorando, mãe? Devo cancelar o chope?
- Não, filho – ela secou uma lágrima, tentou conter outra, prendeu um pouco a respiração e prosseguiu logo após. – Não é isso. Pode beber mais.
Ela abaixou a cabeça na tentativa de conter o choro e se calou. Iniciou-se uma cena constrangedora. Meu pai me olhou como quem manda fazer algo a respeito. Devolvi o olhar para ele indicando que é responsabilidade dele. Mamãe permaneceu de cabeça baixa, lágrimas escorrendo e emitindo sons como se fosse um cãozinho preso do lado de fora de casa. Na mesa atrás, o moleque continuava batucando na mesa para o desespero de todos ao redor. A sensação que se tinha era a mesma quando existe uma infiltração na sua casa que começa a formar uma bolha na tinta da parede. Aquilo não está nem pouco legal, mas mexer vai piorar ainda mais. Optamos pela postura defensiva. Mamãe, como era habitual, partiu para o ataque:
- Eu nunca vou ser avó – a frase foi encerrada com o rompimento do que barrava as suas lágrimas. Ela agora chorava descontroladamente.
- Mãe... Mãe... Mãe... Pai, contenha dona Vânia, por favor.
- Não, não precisa! Não precisa! Passou – ela enxugou os olhos, deu um gole no seu mate e com a voz ainda lutando para não chorar novamente sacramentou. – É verdade! Nunca serei avó. Você é meu único filho e não vai me dar um neto. Isso é muito triste. Estou com o coração partido. São muitas decepções em tão pouco tempo.
- Mas, mãe! Céus – até encerrei a refeição, pois sabia que agora seria complicado. – De onde está tirando isso? Eu sou novo. Seja razoável, por favor. Não tem nem uma semana que me divorciei e já quer condenar o meu futuro.
- Ah filho, vamos ser sinceros. Quem vai querer ficar com você? Só a Maria Fernanda que te aturava. Aquela menina é uma santa. Uma santa! Ela é uma santa e você estragou tudo.
- Pai, você podia me ajudar neste momento que tenho a minha moral espancada pela própria mãe?
- Filho, ela tem certa razão no que diz.
- Tá bom! Pode permanecer no seu silêncio. Ali, olha! Está passando um documentário sobre pesca de baleias albinas cristãs canhotas. Pode voltar a prestar atenção na televisão – acenei para o garçom pedindo mais um chope e antes que continuasse, mamãe me interrompeu.
- Olha só o que acabei de te falar! Mais um chope! Já foram quantos? Cinco? Seis? Quem vai se relacionar com um homem que bebe seis chopes durante um almoço com os pais? Filho, repense as coisas. Estou te pedindo com todo amor de uma mãe.
- Você é engraçada! Insinua que sou um traste de bêbado e agora quer dar carinho de mãe para que eu reveja uma decisão minha que é conveniente com os seus desejos de ser avó. E digo mais... – interrompi minha própria fala para me virar para a mesa de trás. – A senhora poderia por gentileza pedir para essa criança parar com essa batucada dos infernos? Está impossível se concentrar na conversa que estou tendo na minha própria mesa.
- Ele é uma criança – a pessoa que desconfiei ser o pai me respondeu no lugar da mulher com quem me dirigi.
- Eu sei que é uma criança – respondi. – Por isto estou pedindo para os adultos da mesa ensinar para ele como deve ser comportar em um restaurante.
- Você não é capaz de enxergar que ele está brincando? Você não sabe que crianças brincam?
- Sim, sei que crianças brincam. Assim como sei que adultos trepam. E você sabe por qual motivo não estou trepando neste momento? Não responda! Eu facilitarei para você. Eu não estou trepando, nem qualquer outra pessoa adulta deste recinto está trepando, porque aqui não é o local para isto. Agora você poderia ensinar ao seu filho que este não é o lugar para ficar brincando?
Em uma ação involuntária que mais parecia ensaiada, a minha mãe e a suposta mãe da criança intervieram na conversa. A mãe da outra mesa se desculpou pelo filho. Em seguida, a minha pelo dela. Cada uma se virou para a sua mesa:
- Filho, não precisa ser rude.
- Eu não fui rude, apenas fui enfático.
- E você, Vânia, querendo que nosso filho seja pai.
Apesar de desnecessária em uma maneira ampla, mas importante para extravasar, a discussão com o pai da mesa de trás serviu também para distrair mamãe do assunto que a atormentava antes. Entretanto, papai, talvez pela terceira vez em menos de uma hora e meia fez mais um comentário que em nada colaborava comigo. O assunto estava de volta à mesa:
- Aílton, pouco me importa o talento dele. A Maria Fernanda com certeza seria uma mãe maravilhosa e colocaria ele na linha – ela fez uma pausa. – Agora nem isso mais. Vou ter de me satisfazer com os filhos dos outros. Porque sabe que bicho não vou criar mesmo.
- Por que desse negativismo todo, mãe? De onde tirou que nunca poderei ser pai.
- Está bem! Então vamos supor que você conheça uma menina direita. Começam a namorar, se conhecem melhor, noivam e resolvem se casar. Nisso já se passaram mais de cinco anos. Você vai estar com mais de quarenta, meu filho. Quem vai querer fazer um filho com mais de quarenta?
- Ok, eu já entendi a sua lógica. Agora só me explique por qual motivo preciso esperar tanto tempo para engravidar alguém? Basta falar como você quer o seu neto que providencio na hora. Tenho alunas louras, morenas, ruiva, oriental. Escolhe aí.
- Pare com isso, meu filho. Nem brinque com isso. Imagine só um filho fora do casamento. Não, nem quero imaginar. Seria mais uma decepção na minha vida.
- Daí você já está querendo demais do nosso filho, não é, Vânia? Acha mesmo que ele vai casar novamente? Torça para ele pegar um metrô lotado, engravidar acidentalmente alguém e se dê por feliz.
- Pai, preciso dizer que está em uma tarde iluminada mesmo – levantei a tulipa de chope vazia fazendo alusão a um brinde e em seguida gesticulei para o garçom.
- Ah não, filho – mamãe abaixou o meu braço. – Outro chope, não!
- Não, quero a conta mesmo antes que vocês destruam a pouca autoestima que me resta.
- Ah que ótimo então, porque seu pai odeia pegar o Alto da Boa Vista de noite. Vamos logo!
- E por qual motivo pegariam o Alto se moram aqui na Barra?
- Porque vamos conhecer sua casa.
Estava ali uma ideia desastrosa. A possibilidade de minha mãe pisar naquele caos de caixas e roupas espalhadas para todos os lados que chamava de casa era assustadora. Provavelmente seria fatal para ela e meu pai ficaria viúvo em segundos. Não, isto não podia acontecer. Não naquele momento. Quem sabe quando os móveis fossem entregues, restando apenas a falta de espaço natural do apartamento para ela criticar? Precisei vetar enfaticamente aquela ideia.
- Que coisa antipática, meu filho. Aposto que já levou um monte de piranha para conhecer seu apartamento. Já seus pais que são mais importantes não podem ir.
- Sim, várias piranhas, mãe. Inclusive esse é um dos motivos para não levar vocês dois, o apartamento está fedendo a xoxota e vaselina vagabunda.
- Que horror, meu filho. Não diga uma coisa dessas. E você ainda fica rindo, Aílton!
- Eu não fiz coisa alguma, Vânia.
- Ficou rindo. Dá corda para ele falar besteira.
- Que tarde estupenda, hein, pai?
Saímos do restaurante a caminho do estacionamento onde estava o carro deles e minha moto. Durante o trajeto, mamãe insistiu em saber o motivo de não deixar que fossem para a minha casa. Expliquei da bagunça pela falta de móveis e ela se ofereceu para comprarmos imediatamente. Não era necessário, pois já tinha feito isso, bastava apenas que fossem entregues.
- Vamos então ao shopping rapidinho comprar alguma coisa para a sua casa nova?
- Mãe, não precisa. Deixa-me arrumar a casa primeiro e depois descubro o que preciso. Daí eu te aviso.
- Uma lixeira!
- O quê?
- Uma lixeira para o seu banheiro!
- Vânia...
- Não se envolva, Aílton. Eu quero dar uma lixeira para o banheiro do apartamento novo dele.
- Por qual motivo quero uma lixeira para o banheiro, mãe?
- Para jogar papel higiênico, ora.
- Mão, não precisa. Hoje em dia os papéis higiênicos são feitos para dissolver na água da privada.
- E se uma mulher for de regras na sua casa?
- De regras?
- É, de regras! Menstruada! Onde que ela vai jogar o absorvente?
- Mãe, o que uma mulher de regras vai fazer na minha casa?
- É uma boa pergunta, Vânia!
- PAREM VOCÊS DOIS! Sabem que não gosto dessa bobeira. Você não é assim! Eu não te criei assim – ela tentou se recompor. – Vai me dizer que joga camisinha na privada também?
- E por qual motivo usaria camisinha, mãe?
- Ah, não brinque com isso, meu filho. Vai que uma dessas meninas que você leva para casa tentar fazer barriga. Não faça isso, por favor.
- Que barriga, mãe? Eu só como cu.
- Meu garoto!
- PARA! PARA! PAREM VOCÊS DOIS! EU NÃO GOSTO DISSO! PODEM PARAR – coitada da bichinha, ficou toda se tremendo. – Que bobeira. Aposto que não fica falando essas bobagens para as meninas que leva para a sua casa. Vão achar que você é um retardado.
- Eu não levo mulheres para casa, Vânia.
- Aílton, não estou falando com você e não entre na corda dele. Vai ligando o carro! Já vi que nem posso mais passar uma tarde inteira com meu filho sem me irritar – ela abriu a porta do carona, jogou a bolsa no banco de trás por cima do encosto do banco dela e depois retornou para se despedir de mim. – Juízo, meu filho. Pare com essas bobagens e coloque ordem na sua vida. Já que a sua decisão é essa, use-a para recomeçar direito. Não vai me engravidar uma aluna ou uma qualquer. Você promete?
- Prometo, mãe. Agora entra no carro.
- Pare de me enxotar que vou embora na hora que eu quiser. Eu vou me despedir direito de você. Até porque, se depender de você, nos veremos só daqui a quatro meses.
- Eu ando ocupado.
- Anda ocupado. Sei! Para comer essas piranhas por aí você não está ocupado.
- Não fale assim das mães dos seus netos.
- É impossível falar sério com você, não? Me dá um beijo – nos despedimos com dois beijos. – Pelo menos me liga. Ou está ocupado até para isso?
Pronto. Eles se foram. Acabou sendo menos traumático que previa, mas igualmente cansativo. Não desgostava de estar com eles. Porém, quando certos assuntos precisavam ser debatidos, as coisas ficavam desnecessariamente exaustivas. Ela ficava insistindo e eu usando deboche para desviar do foco. Papai, como de costume, optava por se abster para reduzir atrito. Sempre foi assim.
Aquela curta tarde foi emblemática para perceber que certas coisas conceituais provavelmente nunca mudarão. Mamãe continuaria a achar que sou inocente e as mulheres que conheço que são as maldosas. Ela permaneceria a insistir em prolongar certos programas com propostas que remetiam a subornos. Em sua cabeça, uma tarde para comprar algo para mim, seria na realidade comprar a minha companhia por uma tarde. E o principal, cada vez mais ficava evidente que a forma de pensar dela era ingênua ao ponto de parecer uma criança do século passado. Sendo mais preocupante ainda o fato que ela apresentava constante regressão em relação a isto. Talvez isso tenha chances de virar um problema no futuro.
Continua em Sete dias de véspera