sábado, 13 de setembro de 2014

Histórias Reais Inventadas por Mim


Operação Caboclo Manco
Devia ser algo por volta de oito e quarenta, quase nova da manhã. Estava acordado desde às cinco. A tensão do que seria meu dia não me deixou dormir muito. Tinha acabado de lavar meu rosto pela milésima vez e parado de frente para o espelho repetia mentalmente as frases que talvez precisaria usar em breve. É um ritual que costumo refazer em ocasiões importantes. Não tenho o hábito de gravar roteiros, pois, como sabemos, a vida não é um filme, por mais clichê que isso possa soar. O outro lado não sabe do script que monto na cabeça, então esperar que eles ajam exatamente como previ é muita inocência. Prefiro me preparar com argumentos chaves, frases ágeis e manter toda linha de raciocínio afiada para não ser surpreendido com alguma resposta inesperada. Enfim, como disse, eram quase nove da manhã quando ouvi o barulho da porta do quarto sendo aberta. Já era em tempo:
- Minha nossa senhora! Jesus! Maria! José!
A camareira invocou toda as entidades nas quais acreditava ao me ver saindo do banheiro apenas de calça jeans e apontando uma arma para ela. Ela não reagiu, apenas ficou parada com um olhar assustado enquanto rapidamente fechei a porta atrás dela. Ela largou as toalhas que segurava no chão e a segurando pelo braço a conduzi até a cama onde a joguei de costas para baixo. Ela ainda repetia nome de santos quando me debrucei sobre ela e enfiei o cano da pistola em sua boca:
- Quem é você? O que está fazendo aqui? Quem te mandou aqui? Quem está te pagando? Quem é você? Me responda! Vamos! Fale, sua espiãzinha de merda!
Ela sequer conseguia responder com o cano enfiado quase na sua goela. Mesmo que quisesse, era tanta pergunta em tão pouco tempo que nenhum cérebro conseguiria assimilar metade delas. Sim, estava agitado. Exageradamente agitado. Parte por conta da situação em si que exigia isso, parte por conta das anfetaminas que tinha tomado quando acordei e percebi que não conseguiria pregar mais os olhos mesmo. A expressão dela era de pânico total. Talvez por ter sido surpreendida, talvez por se assustar facilmente. O fato é que uma mulher na idade dela, por volta dos quase sessenta, que trabalha como camareira de hotel de beira de estrada já deveria estar acostumada a qualquer tipo de barbaridade. Ela desandou a chorar, o que somado à pistola enfiada em sua garganta dificultou bastante a entender o que dizia. Ela repetia seguidamente que era apenas uma camareira e nada mais.
- Mentira – falei e depois repeti gritando. – MENTIRA! Você é uma infiltrada. Foi paga para entrar no meu quarto e revirar as minhas coisas.
- Não, senhor – ela dizia com a voz e as mãos trêmulas enquanto saia de cima dela. – Sou apenas uma camareira. Entrei em seu quarto para arrumar ele e trocar as toalhas. Só isso. Eu juro.
- Mentira – ameacei bater com a arma nela que se encolheu instintivamente. – Você entrou para me espionar. Sabia que eu não estaria aqui. Você se deu mal.
Ela parecia confusa com tudo aquilo. De fato, não estava apenas assustada, estava confusa também. E se uma delas já é suficiente para comprometer a sua velocidade de raciocínio, imaginem ambas.
- Não, senhor – ela com aquele tom de voz praticamente suplicava. – Não tinha como saber se o senhor não estava aí. Pela manhã arrumamos todos os quartos.
- Não me faça de idiota – apontei novamente a arma para ela que acenava com a cabeça meio que negando, meio tentando desviar de algo que poderia atingi-la. – Idiota! Você acha que sou idiota? Vou está me chamando de idiota?
Antes que ela pudesse me responder, fui até a porta, abri, conferi a maçaneta do lado de fora e a fechei com força. Voltei com passos pesados e a arma apontada em sua direção. Ela, ainda deitada na cama, se arrastou um pouco para se distanciar. Peguei seu pé e a arrastei de volta para perto de mim. Segurei seu pescoço com força, colocando-a sentada na beira da cama, e apontando a arma para a porta perguntei:
- Cadê a porra do “Não Perturbe” que coloquei na porta? Cadê, sua desgraçada de merda! Você tirou a porra do aviso e, mesmo sabendo que não queria que entrassem, tentou a sorte. Só que se deu mal, sua cretina. Eu estava aqui dentro.
Ainda a segurando pelo pescoço, joguei a camareira na cama, mas agora de bruços. Sentei sobre suas pernas e a revistei. Estava limpa. Puxei-a então pelo colarinho e a coloquei sentada aos pés da cama, bem de frente para mim.
- Escute bem, sua vadia – minha arma estava encostada no topo da sua cabeça impedindo que ela olhasse para cima. – Melhor abrir o jogo. Quem te mandou aqui? Foi o Cesar?
- Eu já disse, senhor. Sou paga para arrumar quartos apenas. Sou uma camareira.
- Impossível! Você está debochando da minha cara e eu não gosto de deboches. Eu sei que foi o Cesar. Eu sei que você está envolvida na Operação Caboclo Manco.
- Não conheço Cesar algum, senhor. Não sei dessa operação. Acredite em mim.
Fiz uma pausa e me afastei dela. Fui até a porta me certificar se estava trancada. Depois fui até a janela, fechei os vidros e cerrei as cortinas. Dei mais uma olhada ao redor como quem se certifica que está em um ambiente seguro e em seguida sentei-me ao seu lado.
- Ok – iniciei colocando uma de minhas mãos em sua perna. – Talvez tenha exagerado. Mas você precisa entender que estou no meio de algo extremamente perigoso e volátil.
Ela pela primeira vez parou de chorar desde o momento em que me viu. Com o olhar estranhamente sereno me encarou, dando entender que poderia acreditar nela. Ficamos nos olhando por longos e eternos segundos.
- Tá bom, me escute com atenção – falei com o tom mais pacífico possível e colocando a arma no chão distante de nós dois. – Não sei se você sabe, mas aqui neste hotel costumam rolar vários encontros, digamos assim, de negócios com alguma crosta de sujeira.
Ela enxugou o rosto das lágrimas retardatárias que ainda corriam pela sua pele enrugada. Depois de duas ou três fungadas, ela falou que não sabia do que tinha dito. Para ela, era apenas um hotel para encontro de casais sem grana para um pouco de luxo, ou amantes cometendo adultério.
- Não seja inocente. Muitos desses encontros que você pensa se tratar de um casal dando uma rapidinha, na verdade é uma reunião de negócios. Os piores chefes do crime passam por aqui. Deixe-me te mostrar uma coisa.
Levantei e fui até minha mala. Peguei um pequeno envelope pardo que estava em um compartimento separado e voltei a me sentar ao seu lado. Abri o envelope e escolhi uma, de algumas fotos que ali estavam guardadas, sem que ela visse as demais.
- Conhece esse cara?
A foto era de um homem aparentando ter uns quarenta, quase quarenta e cinco anos. Era uma foto boa, pois ele estava sozinho, e bem de perto, sem o risco de ser confundido com outra pessoa. Ela nem precisou tirar a foto das minhas mãos para olhá-la mais próxima. Bastaram poucos segundos:
- Não sei o seu nome. Nem o que faz. Mas ele vem muito aqui. Uma vez por semana. Toda terça-feira.
Estávamos em uma terça-feira e desconfiava que ele poderia estar por lá. Ela disse que ele sempre aparecia acompanhado de uma mesma mulher, mas nunca demonstrou algo suspeito.
- E olhe que sou muito atenta às coisas. Tanto que rostos que se repetem, gravo facilmente.
- E para você, ele e essa mulher são um casal que aparecem aqui toda terça-feira para trepar e depois vão embora?
- Que horror! Eu não gosto desses termos, mas sim. Eles são um casal de amantes que sempre estão aqui para namorar.
Retirei uma segunda foto do envelope. Nela, uma mulher de quase quarenta, bonita, bem vestida. A camareira reconheceu tão rapidamente quanto o homem da outra foto. Eu sorri para ela um sorriso de lamentação, com um tom de pena.
- Aparentemente você não é tão atenta quanto pensa – falei enquanto guardava as fotos no envelope. – Preciso que me diga se eles estão aqui e qual o quarto.
Ela parecia recuperada do susto. Diferentemente de todas as ações até aquele momento, ela não mais agia na defensiva de maneira passiva. Ela agora tomou uma atitude, se levantou dizendo “não” repetidas vezes enquanto se afasta de mim.
- Essa é uma das características chave neste hotel. Nunca comentamos coisa alguma sobre os clientes.
A agitação então voltou imediatamente. Fui em sua direção com arma em punho e a pressionei contra a parede. Encostei o cano no seu pescoço e com a outra mão segurava seu braço com força. O pânico a dominou novamente.
- Escute aqui, sua maldita. Não é porque não está envolvida com a Operação Caboclo Manco que vou pegar leve com você. O homem daquela foto vende armas e vem aqui toda semana negociar com aquela mulher que comanda uma meia dúzia de bocas de fumo aqui na cidade. Ou você acha que aqueles imbecis analfabetos são capazes de elaborar negociações sofisticadas com traficantes de armas internacionais? Está vendo aquela mala? Está cheia de fotos e documentos que comprovam isso tudo. Quer ver?
Soltei a camareira e fui em direção da mala sobre a mesa. Segurei o zíper e antes de começar a abrir, perguntei mais uma vez a ela se queria ver. Ela balançou o rosto negando, cobriu o rosto com as mãos e voltou a chorar. Ela balbuciou que não queria se envolver com coisa suja. Andei então para perto dela novamente:
- Então me escute com atenção – disse retomando o tom pacífico. – Recebi ordens claras de vir até aqui, pois é o único momento que eles se sentem seguros, e por isso estão sem aqueles armários dando proteção. Eu tenho de matar os dois e, com isso, até que as bocas de fumo consigam se reorganizar, a polícia já fez o seu trabalho prendendo eles. É simples, meu anjo. Você me leva até o quarto deles, usa essa chave mestra que possui e vai embora como se nada tivesse acontecido. Eu farei meu trabalho e ponto final. Duas horas depois você volta, encontra sem querer os corpos e ninguém vai desconfiar da sua participação.
Ela continuava a chorar e se tremia toda. Desta vez não era mais medo, era nervosismo. A mensagem tinha sido entendida e ela estava prestes a topar. A ideia de participar, mesmo que rapidamente e indiretamente, de algo do tipo a deixava aflita. Ela hesitou várias vezes antes de dar uma resposta, até que resolveu fazer uma pergunta:
- Como posso ter certeza que ninguém vai desconfiar?
- Eu montarei um cenário de tal forma que os policiais que aqui chegarem acharão que foi um crime passional. Deixarei os dois pelados, como que flagrados por um marido traído. Só o pessoal envolvido na Operação Caboclo Manco sabe de fato quem são eles. Para a polícia local será apenas um caso de traição que terminou com um banho de sangue.
Ela concordou com a cabeça. Fechei então a minha mala deixando tudo pronto para ir embora assim que terminasse o meu serviço. Coloquei uma camisa, escondi a pistola por debaixo dela e segui a camareira pelo corredor. Ela parou em frente a uma porta, apontou indicando que era aquela, destrancou a porta com a chave mestra e, enquanto se afastava, segurei seu braço:
- Se alguém da organização souber que você nos delatou, eles vão me mandar de volta atrás de você. E, acredite, assim como não quero ter de te matar, você não vai me querer te caçando.
 Com os olhos arregalados, contendo as lágrimas e engolindo seco, ela disse que não era para eu me preocupar. Logo depois ela desapareceu pelo elevador. Em seguida, abri a porta e entrei no quarto cumprindo o que tinha dito a ela.
Por muito tempo da vida, tinha curiosidade em saber como uma pessoa conseguia lidar com uma morte nas costas. Eu não sou matador profissional e confesso que estou lidando bem com isso. Três meses depois do evento, ainda lembro dele com satisfação. Sinto um pouco orgulho do dia que convenci uma pobre senhora camareira, confundindo sua cabeça, para me ajudar a matar minha esposa e seu amante. Quando me lembro do nome da operação que inventei para persuadi-la, chego a gargalhar. E confesso que isso tem me ajudado bastante a passar os dias na prisão.