segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: A sorte que um dia sorrirá para nós


Matrícula
Certa vez, um amigo canadense ficou assustado quando comentei que, mesmo pagando impostos altíssimos, preciso pagar taxa de bombeiros, iluminação pública e conta de água. Eu sei que a comparação é injusta, afinal o Canadá é quase uma propaganda de margarina que saiu do controle do cenário da cozinha, espalhando-se pela sala, quartos, quintal e tomou posse de todo o país. Como não queria chocá-lo mais ainda, sequer mencionei que, mesmo pagando separadamente pela água, ainda assim preciso de um filtro eficiente, ou posso morrer caso beba a água que sai da torneira.
O fato é que estamos constantemente sendo roubados e não percebemos. Ou percebemos e somos tão bonzinhos quanto os canadenses, com a única diferença que aqui não é um comercial de margarina. Estamos mais para um eterno cenário de propaganda de Pick-up Offroad emprestado para gravações de propaganda de cerveja, se possível da Nova Schin para que a metáfora fique no mesmo nível da realidade. De qualquer forma, alguns roubos estão tão inseridos na cultura geral que sequer mais notamos. Foi o caso de Fabiano.
Ele abre a porta de vidro e deixa duas meninas de aparentemente vinte anos saírem. Elas vestem calças legging que desenham seus corpos abaixo da cintura. Detalhadamente, se é que me entendem. Fabiano, ainda parado na porta, dá aquela checada no “indo” delas, pensa alguma besteira e finalmente entra. Ele se aproxima do balcão, espera a jovem que está arrumando uns papéis lhe dar atenção. Ao notar a presença dele, ela pergunta em como pode ajudá-lo:
- Vim fazer a minha inscrição na academia.
- Ah claro – diz a menina já pegando alguns folhetos para mostrar. – Aqui estão os horários das atividades, o horário da casa e os serviços extras disponíveis.
- Serviços extras?
- Sim – ela responde sorridente. – Sauna, sala de repouso, piscina.
- Puxa, que bom.
- Aqui é a melhor do bairro – afirma enfaticamente. – Já sabe os valores?
- Ah sei – Fabiano responde pegando a carteira. – Liguei ontem. A mensalidade é R$ 150, certo.
- Isso mesmo. Com direito a tudo.
- Posso pagar em cheque?
- Sim, sem problemas.
Fabiano então preenche o cheque. Faz as perguntas de sempre sobre cruzar o cheque, deixar nominal, escrever algo no verso. A menina responde tudo pacientemente. Após preenchido, ele entrega o cheque para ela que confere:
- Perdão – ela devolve o cheque. – O valor está errado!
- Não custa R$ 150?
- Sim – ela diz mostrando alguns valores no folheto. – Mas você precisa pagar mais R$ 90 de matrícula. São R$ 240 no total.
- Matrícula?
- Sim, matrícula.
- Mas a mensalidade não cobre tudo?
- Cobre todas as atividades, menos a matrícula.
- E a que a matrícula me dá direito?
- A se matricular na academia.
- Preciso pagar R$ 90 para você me falar que sou bem-vindo e o mais novo associado da academia?
- Não – ela responde gesticulando como quem quer amenizar. – A matrícula é uma taxa para você fazer a inscrição na academia.
- Então vou pagar R$ 90 para você preencher meus dados em um formulário?
- Basicamente.
- Ora, não precisa – ele diz se apoiando sobre o balcão para enxergar melhor o monitor do computador que ela opera. – Você vai preencher um formulário em Word. Eu sei lidar com o Word. Tenho uma ótima digitação. Olha que legal, vou poupar seus dedos. Evitaria que pergunte oitocentas vezes como se escreve meus dois sobrenomes de origem polonesa. Você não vai passar a vergonha de escrever o nome errado da minha rua, pois provavelmente não sabe que desembargador é com esse e ainda economizarei meus R$ 90.
- Ahn?
- Exato!
- Não, não pode – ela agora fala em um tom agressivo. – Você precisa pagar a matrícula, ou não faremos a inscrição.
- Ok – diz ele com as sobrancelhas levantadas. – Pagarei a matrícula.
- Viu? Bem mais simples.
- Mas apenas se souber me explicar o que estou comprando com esses R$ 90.
- Comprando?
- Claro – ele abaixa as sobrancelhas. – Existem duas situações nas quais dou espontaneamente dinheiro para terceiros. Doação ou quando compro algo. Aqui não parece um orfanato, asilo, nem uma instituição tocada por padres Franciscanos descalços, logo meu dinheiro está sendo entregue para você em troca de algum bem ou serviço. Regra básica da economia.
- Ahn?
- Compliquei, né? Posso falar com quem consiga me convencer o que estou comprando?
A menina sai atordoada tentando entender metade do que Fabiano falou. Ela vai para uma sala, fica por lá por alguns minutos e volta acompanhada de um homem que aparenta ter pouco mais de quarenta, mas se veste como um garoto de quinze, bermuda, camiseta regata e um boné parcialmente encaixado na cabeça.
- Pois não?
- Você é o gerente?
- Pode ser – ele diz para depois se vangloriar. – Sou o dono da academia também.
- Ok, talvez isso seja embaraçoso, porque possivelmente você seja formado em educação física e não tenha a menor noção do que se tratam valores, bens, serviços, mas na ausência de um gerente, que deveria ser, em tese, um administrador, acho que você pode ajudar.
- Ahn?
- Já temos um padrão no atendimento pelo visto, não é mesmo?
- Perdão?
- Esquece – Fabiano gesticula com as mãos. – Estou com um problema sobre a matrícula.
- Sim, qual o problema?
- É que quando pago por algo, gosto de saber o que vou levar. Aqui supostamente estou fazendo uma doação de R$ 90.
- Não, você está pagando pela matrícula.
- E o que é a matrícula?
- É a sua inscrição na academia.
- E o que é a inscrição na academia?
- São seus dados salvos para nosso controle.
- Então tenho de pagar R$ 90 para que salvem meus dados? Você não acha que isso seria o mínimo de vocês?
- Ahn?
- Você não acha que cadastrar os meus dados deveria ser algo que vocês fariam inerente ao pagamento de matrícula?
- Não, o pagamento da matrícula te dá o direito de se inscrever na academia, cedendo seus dados, endereço, foto, tudo para que tenhamos o máximo controle de quem está frequentando o mesmo ambiente que o senhor.
- Mas isso não é um precedente básico para abrir um negócio? Você mesmo controlar quem frequenta seu estabelecimento é um dever seu!
- Senhor – o homem coloca a mão sobre o balcão indicando impaciência. – Não estou entendendo aonde quer chegar.
- Bem, pelo menos agora não sou o único a não entender algo por aqui – Fabiano diz colocando a mão sobre o balcão indicando deboche. – Eu só quero saber pelo quê estou pagando R$ 90, porque pagar essa quantia para que você apenas escreva meus dados em um papel é um despautério!
- Senhor, em concursos públicos se paga matrícula também para preencher seus dados e ninguém reclama.
- Não – Fabiano coloca as mãos na cabeça. – Em concurso público pagamos a matrícula para ter o direito a fazer a prova e disputar uma das vagas. A coleta dos dados é feita pela instituição, sem taxas, para controlar quem vai fazer a prova.
- Ok – o homem retira a mão do balcão e se afasta um pouco. – Foi um exemplo ruim.
- Péssimo!
- Que seja!
Os dois homens ficam calados se entreolhando. A menina, ao fundo, continua sem entender muito. Ou pelo menos achando que o futuro cliente é um louco.
- Vamos fazer o seguinte – Fabiano se aproxima pacificamente do balcão. – Pagarei apenas a mensalidade e não precisa fazer o meu cadastro, ok?
- Senhor, se não pagar a matrícula, não poderá frequentar a academia.
- Somente pagando a matrícula posso frequentar a academia?
- Exato.
- Ok – ele finge estar convencido para em seguida contra propor. – Pagarei APENAS a matrícula então, pois ela me dá direito a usar a academia.
- Não, senhor – o homem fala com as mãos na cintura. – A mensalidade que dá o direito à academia, logo precisa ser paga.
- Então a matrícula e a mensalidade dão direito à academia?
- Não, apenas a mensalidade.
- Então não pago a matrícula!
- Daí não poderá frequentar a academia.
- Senhor – Fabiano fala enquanto aproxima lentamente o rosto do balcão -, você tem ideia do que é um paradoxo?
- Como o senhor mesmo fez questão de falar, sou professor de educação física e nada sei de economia.
- Ahn?
Diz a lenda que eles ficaram nesse diálogo por quase três horas, até que Fabiano se cansou e foi embora sem se inscrever na academia. O dono e a menina ficaram fazendo piadas sobre o pobre homem burro que não conseguia entender o que era uma matrícula. Fabiano desistiu da carreira de advogado e abriu uma consultoria para pessoas reivindicarem o pagamento de matrículas em academias, escolas e outros estabelecimentos comerciais. Atualmente ele tem uma rede enorme de clientes, conta com três funcionários na elaboração de roteiros argumentativos e fatura mensalmente mais que o dono da academia com matrículas em um ano inteiro.


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