sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Mais uma dose (shot 1.1)

Barraca de Festa Junina (efeito Sutro)


Não tenho certeza da primeira lembrança que tenho. Era de madrugada. Com certeza de madrugada. Estava em uma cozinha desconhecida. Uma cozinha de alguma residência. Não estava caído, nem sentado, nem deitado. Estava de pé com as mãos apoiadas na bancada da pia. De costas! Isso mesmo! De costas para a pia, com as mãos apoiadas na bancada. Exatamente naquelas posições que ficamos quando estamos pensando em algo. É isso! Essa era a minha primeira lembrança daquela noite. Estava tudo muito confuso na minha cabeça.
O curioso é que não estava acordando. Não! Era como se tivesse parado ali para me recompor, pensar em algo. Sei lá. Minha cabeça deve ter viajado longe e me dei conta somente a partir deste momento. Coisa estranha que não esclareci ainda.
Lembro de ter olhado ao meu redor. A cozinha era uma sujeira só. Muitos papéis, estilo guardanapos e embalagens de comida pelo chão. Copos plásticos e tampas de garrafas também. Ao centro tinha uma mesa. Imunda! Muitas guimbas de cigarro e uma miscelânea de cinzas com resto de cocaína.
Fiz uma rápida checagem pelo meu corpo. Documentos ainda estavam no bolso de trás. Celular no da frente, mas sem bateria. Estava completamente vestido, camisa abotoada, nenhuma mancha de qualquer tipo de resíduo que fosse. Isso já era um bom sinal.
Virei-me para a pia. Muitos copos, latas vazias, um prato com algo que parece ser restos de pedaços de frango e uma garrafa azulada de formato retangular. Abri a torneira, molhei minhas mãos e passei no rosto e nuca. A água era gelada como a bunda de um pinguim. Não dava para ficar mais acordado que aquilo. Resolvi sair dali.
Abri a porta que estava à minha esquerda. Estava na sala. Um sofá escuro, parecia ser de couro, estava repleto de pessoas. Umas dez, acredito eu. Não contei. Largadas seria a melhor maneira de definir como estavam amontoadas. Difícil saber onde começava uma pessoa e onde terminava a outra. Difícil também definir se estavam dormindo, desmaiadas, em coma. Mal me mexi.
Olhei para o lado, uma televisão ligada em um canal musical qualquer passava um show do Van Halen. Acho que estavam tocando Right Now. Sim, com certeza era essa música. Lembro que fiquei parado mais um pouco só para ouvir o solo que tanto gosto. Que desperdício! Os irmãos Van Halen dando o melhor deles e nenhuma daquelas pessoas sequer mexeu um músculo. Eram bem mais novos do que eu. Geração perdida.
Olhei mais à frente. Uma mesa de jantar repleta de copos, garrafas, guimbas de cigarro e algumas carreiras incompletas. Moleques imbecis. Apesar de novos, nessa mesma idade eu já sabia dosar as coisas. O contraditório nisso é que sequer sei como fui chegar neste local. Tão pouco sei o que fiz para ter uma amnésia recente dos fatos.
De trás de uma das portas, que parecia levar a um quarto, tocava um som barulhento. Talvez fosse Black Metal. Odeio esse som. Escroto. Incompreensível. Sem melodia. Pior ainda com as risadas e gritos que vinham do mesmo quarto. Nem me aventurei a descobrir o que lá se passava. Voltarei para a cozinha... Espere!
Atrás da mesa, caída no chão, parecia ser uma menina. Pois é, essa molecada de hoje em dia só quer saber de cabelo comprido e se vestir como andróginos. Não tenho como distinguir. Não quis me mexer! Não me aproximei. Aliás, sequer dei um passo além da porta. Apenas forcei a vista e a vi melhor. Sim, era uma menina. Supostamente bem mais nova que todos naquela sala. Ela, sim, posso dizer que estava desmaiada. Camisa mal vestida com um peito de fora e toda suja de vômito. Geração de merda! Se não estivesse tão confuso ou perdido, até reuniria energias para tentar ajudá-la. Fica para outro dia, menina.
Voltei para a cozinha. O cheiro da cozinha era horrível, mas perto do fedor da sala, era algo totalmente suportável. Poderia comparar com os perfumes baratos que minha mãe usava em uma fase da vida. O nome era Alfazema de Mauá. Como odiava aquele perfume, mas o suportava mesmo assim. Tentei de todas as formas convencê-la a parar de usá-lo. Nunca consegui. Um dia, do nada, ela de... Estou divagando. Preciso de um cigarro. Nada nos bolsos. Nada sobre a bancada. Nada sobre a mesa. Passei o dedo nos restos de cocaína ali espalhados e esfreguei na gengiva. Abri a geladeira. Garrafas de cerveja. Latas de cerveja. Uma garrafa de vodka pela metade. Uma jarra de leite com uma cor duvidosa. Fico com a garra de vodka. Vou para a outra porta.
É uma varanda! De frente para os fundos da casa. Um enorme quintal gramado, que igualmente ao resto da casa, está florido de copos, garrafas, guimbas e pessoas no chão. Encostado em uma árvore, um rapaz passa a mão nos cabelos de uma moça deitada em suas pernas. Mais para o meio do jardim um círculo de pessoas riem de algo que um rapaz de longos cabelos louros está contando. Ao fundo do quintal, alguns casais se agarram. Melhor não encarar. Não sei o que fazer. Ouço uma voz: “Oi!”. À minha direita, na varanda, um banco longo de madeira. Nele, uma garota de cabelo curto, bem batido, negros, está olhando para mim. Ela sorri e fala novamente: “Oi!”. Não a reconheço. Deve ter uns cinco anos a menos do que eu. Ela continua sorrindo e fala mais uma vez: “Oi!”. Sua roupa destoa de todas as pessoas, ou corpos, que vi pela casa. Calça jeans nada apertada contra o corpo. Todas as meninas, sem exceção, ou estavam de saia ou estavam de shorts. Camisa larga do tipo estampada, não dava para ver ao certo a estampa. Todas as meninas estavam de top ou camisetas decotadas. Ela desfaz o sorriso, levanta as sobrancelhas e diz: “Ok, agora você está me assustando!”. E depois volta a sorrir.
– Desculpe – eu digo e percebo o forte hálito de álcool que sai da minha boca.
– Vai beber essa vodka?
Não tenho mais certeza se irei. Pelo hálito, acho que já bebi tudo que devia naquele dia, mas minha boca estava muito seca. Abri a garrafa e dei um bom gole direto no gargalo. Fiz uma cara horrível, franzindo cada músculo do meu rosto. Devo ter envelhecido uns 30 anos naquele breve momento.
– É uma merda, né? – Pergunta ela.
– Ahn?
– Essa vodka! É uma merda, né?
– Deu para notar?
– Pela sua cara, sim! Mas nem precisava!
– Sério?
– Essas marcas vagabundas, eles compram apenas para misturar com refresco instantâneo.
– Claro! Por quê não piorar o que já é uma merda?
– Ou isso! Mas a ideia é fazer algo muito barato que os deixem bêbados rapidamente.
– Não sei se foi rápido, mas de fato funcionou. Inclusive comigo!
– Você não bebeu isto, pode ficar tranquilo.
– Menos mal – e passo a garrafa para ela, que dispensa instantaneamente.
– Não, obrigada!
– Você não quer?
– Claro que não! Ela é horrível!
– Então, por quê perguntou se iria beber?
– Perguntei em um tom desafiador mesmo. Meio como quem não acredita no que a pessoa vai fazer.
– Ah, mas que ótimo! – Um silêncio beira por alguns segundos até que o interrompo – Tem um cigarro?
– Ahan!
Ela me entrega um cigarro e uma caixa de fósforos para acender. Acendo. Dou uma boa tragada e me sento ao seu lado. O maldito gosto daquela merda de vodka não vai sair tão cedo da minha boca.