domingo, 14 de maio de 2017

A sarjeta do mundo

Caipirinha do Tássio
Tudo começou de uma maneira inocente, na época que a Flavia, esposa do Luciano, ainda trabalhava com ele no bar. O nome oficial que constava no letreiro era Bar e Café Santa Efigênia, a padroeira da mãe do Luciano. Todavia, era informalmente mais conhecido como “Vô Fechar”, referência ao Luciano que virava e mexia gritava que ia fechar o bar, mas os cliente nunca se levantavam e o funcionamento acabava indo sempre madrugada a dentro.
Era um dia de pouco movimento, meio da noite, pessoas voltando do trabalho e um clima frio nada convidativo para se beber. Flavia estava sentada só numa das mesas do lado de fora fumando um cigarro. Um fato inédito, pois nunca saía de trás do balcão. Era um acordo do casal para evitar dor de cabeça com clientes que não sabiam como se comportar e mexiam com funcionárias. Outro detalhe importante daquele dia era que excepcionalmente a Flavia não estava de uniforme. Lá estava ela numa coincidência de fatos de rara exceção quando o Tássio passou e viu a cena. Nada rogado e com uma autoestima de dar inveja em competidor de halterofilismo, ele se aproximou puxando uma das cadeiras.
- Olá! Posso me sentar? Meu nome é Tássio, com t de trabalhador. Posso lhe pagar uma bebida? Meu amigo! Ei! Meu amigo, vocês têm caipirinha? Me vê duas de melão com morango e cachaça. Isso mesmo! Eu as duas frutas misturadas. Obrigado! E aí, gata, qual o seu nome?
Flavia à frente de Tássio e Luciano atrás do balcão não conseguiram expressar reação. A sequência de perguntas e pedidos sem aguardar respostas dos outros era a coisa mais decidida que tinham visto na vida. Tássio perguntou o nome para Flavia mais duas vezes e somente aí que conseguiu que ela se manifestasse. Logo em seguida, ela se virou para o marido atrás do balcão que deu de ombros. Ora, o que podia dar errado? O bar estava vazio e não precisavam tanto da ajuda dela. Caso o homem aprontasse alguma, Luciano sairia de trás do balcão com o porrete que ali tinha escondido. Enquanto as caipirinhas exóticas eram feitas, Tássio seguia com a metralhadora de perguntas, afirmações e reações. Flavia começou a achar aquilo divertido e ficou dando corda para o homem.
- Isso é muito bom! – Flavia exclamou assim que deu o primeiro gole na caipirinha assim que servida pelo marido.
- Eu sabia que ia gostar. É a minha favorita. Só vai beber isso pelo resto da sua vida. Ela é de matar – afirmou o sempre confiante Tássio, sem saber que sua frase soaria como uma profecia naquele momento.
Ele não era convencido à toa. Era necessário reconhecer que tinha uma lábia sensacional. Tanto que Flavia topou uma segunda rodada de caipirinhas. Enquanto eram preparadas pelo Luciano, Tássio seguia falando sem parar. Num entendimento apressado, qualquer pessoa diria que era um monólogo. Muito pelo contrário, ele roubava curtas respostas da Flavia e dali já encaixava outro assunto. Sem se atentar ao que acontecia, ela estava tomada pela conversa que tinha ido de horóscopo a sambas antigos, de quadros feitos com tapete a como carros batidos na frente se parecem com rostos de boxeadores ao final de uma luta.
Luciano surgiu com a segunda rodada. Tássio, sem cerimônia, deu um longo gole e depois celebrou em voz alta o quanto gostava daquele drink. Flavia, mais contida, deu um pequeno gole e em seguida olhou franzida para o marido que retribuiu o mesmo olhar. Na dúvida, ela deu mais um pequeno gole para confirmar o que tinha desconfiado no primeiro. Sim, ela estava certa, o marido não tinha colocado álcool algum na sua bebida, era literalmente um refresco de melão com morango. Antes de voltar para o balcão, Luciano deu uma pisadela de olho marota para a esposa. Para bom entendedor, meia palavra basta. Ou meio olho aberto, quem sabe?
O resto da noite seguiu com o papo maroto do Tássio fluindo com a mesma agilidade que Luciano trazia mais caipirinhas. Para o falante, bastante álcool. Para esposa, zero álcool. Ao final, seis caipirinhas para cada um. A conta passou dos duzentos reais, mas mesmo assim Tássio fez questão de pagar. Na despedida, sem perceber a lucidez de Flavia, ou notar a sua total embriaguez, Tássio tentou uma última investida e, o que seria uma aproximação à moça, virou uma longa cambaleada quase indo de rosto ao chão. Preferiu então recuar da investida. Optou por dizer que estava fascinado pela coincidência dos fatos:
- Veja só – ela falava com a mesma agilidade do início, mas menos eloquência por conta da língua mole. – Na primeira vez que piso neste bairro, me encontro com você. É muito destino para mim. Podemos nos ver semana que vem?
Flavia achou que seria algo inofensivo e topou. Marcou no mesmo bar como se fosse um local de encontro especial para ela. Tássio, sem saber que ela trabalhava por lá e era esposa do dono, foi embora vitorioso da sua conquista. Tanto que no dia marcado, lá estava ele enchendo a cara de caipirinhas e Flavia enchendo a bexiga de refresco. Ao final, empurraram a conta para cima de um cambaleante Tássio. Foram um total de seis encontros seguindo essa rotina. No último, percebendo que a Flavia era carne de pescoço, desistiu e se despediu com o velho papo de vamos ser apenas amigos. O que ele não sabia era que tinha iniciado um dos maiores golpes já visto naquele bairro.
Depois de uma longa experiência com um confiante Tássio, Flavia e Luciano tinham a certeza que aquilo era aplicável a qualquer trouxa. Combinaram que Flavia pararia de trabalhar no bar. Sua frequência diminuiria para quatro vezes por semana apenas para não dar pinta e assim poderia dar uma trégua para a mãe do Luciano que ficava em casa tomando conta do filho do casal até tarde. A cena seria sempre a mesma, ela ficaria reservada numa mesa esperando a aproximação do primeiro galanteador. Ela pediria a famosa caipirinha do Tássio da casa e a vítima iria junto. Copo sem álcool para ela e bastante para a vítima. No prolongar da noite, Luciano daria o tradicional sinal do “vô fechar” e Flavia iniciaria a conversa de que bebeu demais, precisava ir embora, não estava se sentindo bem e entubava a conta com uma dezena de refrescos com preço de caipirinha no mané que marcava um segundo encontro. Afinal, trouxa que é trouxa precisa cair duas vezes no mesmo conto do vigário.
O empreendimento picareta ia de vento em popa. Por semana, Flavia injetava quase mil reais na casa. Não suficiente, a tal caipirinha do Tássio ficou famosa na região e era mais pedida que cerveja. Nunca uma coincidência de fatos raros acompanhada de um cara decidido teve um resultado tão próspero como aquele. Foram meses de sucesso sem que um homem sequer desconfiasse. Flavia e Luciano conheciam bem as pessoas da região e não marcariam bobeira de tentar aplicar um golpe em alguém de lá.
Determinado dia, Tássio deu as caras no bar. Luciano o recebeu de braços abertos com a maior cara-de-pau possível, apresentou-lhe o sucesso da casa e lhe ofereceu uma dose como agradecimento. Ele dispensou. Disse que estava à procura da Flavia. Para ele, beber o drink sem a companhia dela no bar seria sem graça. Enxergando a oportunidade, Luciano contou que ela tinha passado cedo pelo bar dizendo que estava indo à casa de uma amiga, mas que na volta passaria por lá para beber uma. Tássio se animou e perguntou se ela demoraria.
- Acredito que não – respondeu o Luciano. – Sente-se que já, já, ela aparece. Vai bebendo essa por conta da casa.
Tássio aceitou e se sentou à espera de Flavia. Nesse meio tempo, Luciano ligou para esposa, antecipou todo o golpe e mandou que ela viesse para o bar em vinte minutos. Pontualmente ao pedido do marido, Flavia apareceu no bar. Fingindo uma surpresa mais falsa que uma nota de três reais, ela foi falar com um Tássio até então cabisbaixo que enrolava aquele primeiro drink. Assim que se sentou à mesa, Flavia pediu uma rodada para os dois. A cena começava mais uma vez igualmente à primeira de toda. Tássio, agora animado, desandava a falar sem parar, Flavia ia dando corda para o assunto e Luciano descia as caipirinhas cada vez numa velocidade maior. Era quase uma celebração de aniversário do golpe. Lá estavam os golpistas, o bar, o drink e o trouxa alfa. Tássio estava mais intenso que o normal e Flavia tinha notado, mas a vontade de aplicar mais um golpe era maior. Já na madrugada, Luciano fez o anúncio de sempre:
- Vô fechar!
- Ah, pode esperar – disse um enfático Tássio. – Ainda estamos sóbrios e hoje eu só saio daqui bêbado.
- Tássio, menino – Flavia se espantou. – Já bebemos umas dez caipirinhas. Não acha melhor...
- Você está bêbada? – Tássio interrompeu a Flavia. – Eu não estou! Então vamos continuar mesmo sendo os únicos na casa.
- Sinto muito, casal vinte, mas preciso fechar o bar...
- Vamos fazer o seguinte – Tássio interrompeu o Luciano. –, traga mais uma rodada e depois pedimos a saideira. Prometo para você que serão só mais duas rodadas.
- Ok – Flavia concordou. – Mais duas apenas então.
- Não é possível, pessoal. Preciso fechar mesmo.
- Ora, por que? – Flavia e Tássio perguntaram juntos.
- Porque tenho que render a minha mãe que está tomando conta do meu filho. Se eu tivesse uma esposa, ela poderia ir para casa fazer isso para mim, né?
- Por isso? – Tássio desdenhou. – Vai lá, libera a sua mãe e traz seu filho, que deve estar no décimo sono, no carro. Quando chegar aqui, eu te prometo, não somente teremos matado as duas rodadas, como estaremos com contas pagas prontos para ir embora.
- Sinto muito, mas não posso fazer isso. Não vou deixar meu bar aberto...
- Só duas rodadas – Flavia interrompeu o marido esbulhando os olhos como quem diz que está deixando algo passar. – Sou cliente antiga de confiança. E além do mais, estamos aqui com o criador do seu maior sucesso. Vai, não custa nada.
Luciano topou a ideia até porque diversas vezes era ele mesmo quem ia render a mãe e a Flavia que ficava de fechar o bar. Enquanto Luciano voltava para casa, Tássio foi para trás do balcão fazer a primeira das duas últimas rodadas. Flavia sabia que seriam com álcool dessa vez, mas não se preocupou. Afinal, duas rodadas de caipirinha sequer chegariam perto de deixa-la tonta.
Quando finalmente retornou ao bar, Luciano se deparou com um Tássio assustado à beira da calçada. Então largou o carro de qualquer jeito no meio-fio com o filho dormindo no banco de trás e foi em direção da entrada do bar. Foi ali que notou a ausência da Flavia. De imediato, ele se voltou para a rua e perguntou ao Tássio pela Flavia. Ele respondeu que ela foi para o banheiro passando muito mal e por isso estava ali assustado procurando um táxi para levá-la ao hospital. Nesse momento, Luciano respirou aliviado. O golpe acompanhado da desculpa de estar passando mal para se desvencilhar do trouxa insistente era um dos combos mais frequentes na casa.
- Ih, cara, relaxa – disse o Luciano tentando acalmar o Tássio. – Ela costuma passar mal mesmo. Sabe como é, né? Bebe demais, não consegue acompanhar a outra pessoa e dá nisso. Vira e mexe me dá dor de cabeça. Ela me dá mais trabalho que meu filho, acredita?
- Tem certeza? O táxi está ali chegando.
- Pode ficar calmo. Já estou acostumado. Deixa que eu levo ela para casa. Vamos lá dentro apenas acertar a conta e vai poder ir para casa sossegado.
- Não precisa. Entre uma rodada ou outra a Flavia pediu para que adiantássemos isso evitando que você resmungasse quando chegasse. Tá lá pago na maquineta.
Luciano olhou para dentro do bar e viu a maquineta do cartão de crédito com o comprovante pendurado. Em seguida pensou no quanto sua esposa estava ficando mais calejada no golpe. Primeiro prolonga a conta ao máximo, depois faz o cara pagar a conta antes mesmo do fim do golpe e, por fim, faz a clássica cena do passar mal para não ter de rejeitar convites para motel ou coisas do tipo. Totalmente aliviado e com as coisas dentro do controle, Luciano reconforta de vez o Tássio.
- Então pode ficar tranquilo mesmo. Deixa comigo que tomarei conta do meu filho dormindo no banco de trás e da minha filha adulta postiça que às vezes vem me dar problema aqui no bar. Pode pegar o táxi sem arrependimento.
Para a surpresa de Luciano, Tássio não relutou um segundo. Muito pelo contrário. Antes mesmo que Luciano terminasse a última frase, Tássio já estava entrando no táxi. De qualquer forma, para ele foi até mais conveniente ficar livre mais rápido do trouxa alfa. Sem ter mais com o que se preocupar, Luciano entrou no bar:
- VAMOS, QUERIDA! ELE JÁ FOI EMBORA! – Luciano gritou enquanto manuseava a maquineta do cartão de crédito. – Ué, que estranho.
Luciano não entendeu aquele comprovante. A conta, pelos seus cálculos, deveria ter passado facilmente dos trezentos reais. Ali constava um comprovante de apenas sessenta e oito.  Ele resolveu ver no detalhe e percebeu que o horário do pagamento era de quase uma hora atrás. Não, aquilo não era o comprovante de pagamento do Tássio, era uma reimpressão do pagamento do último cliente.
- Querida, parece que nós que caímos num golpe. – Dizia o Luciano enquanto ia ao banheiro ao encontro da sua esposa. – Um dia da caça outro do... FLAVIA! MEU DEUS!
Flavia estava deitada no chão, desacordada e seminua. Tinha sido violentada por Tássio que colocou uma substância dopante em sua caipirinha. Luciano tentou acordar a esposa. Não adiantava, estava morta. Tássio a sufocou com as próprias mãos enquanto repetia em voz alta que ela brincou com os sentimentos dele. Luciano ficou deitado no chão ao lado da esposa vítima do homem que tudo iniciou, deu nome à bebida destaque do bar e profetizou o que estava por vir. Debulhado em lágrimas ele apenas lamentava que o mundo era injusto.