Caipirinha do Tássio
Tudo começou de uma maneira inocente,
na época que a Flavia, esposa do Luciano, ainda trabalhava com ele no bar. O
nome oficial que constava no letreiro era Bar e Café Santa Efigênia, a
padroeira da mãe do Luciano. Todavia, era informalmente mais conhecido como “Vô
Fechar”, referência ao Luciano que virava e mexia gritava que ia fechar o bar,
mas os cliente nunca se levantavam e o funcionamento acabava indo sempre
madrugada a dentro.
Era um dia de pouco movimento, meio da
noite, pessoas voltando do trabalho e um clima frio nada convidativo para se
beber. Flavia estava sentada só numa das mesas do lado de fora fumando um
cigarro. Um fato inédito, pois nunca saía de trás do balcão. Era um acordo do
casal para evitar dor de cabeça com clientes que não sabiam como se comportar e
mexiam com funcionárias. Outro detalhe importante daquele dia era que excepcionalmente
a Flavia não estava de uniforme. Lá estava ela numa coincidência de fatos de
rara exceção quando o Tássio passou e viu a cena. Nada rogado e com uma autoestima
de dar inveja em competidor de halterofilismo, ele se aproximou puxando uma das
cadeiras.
- Olá! Posso me sentar? Meu nome é
Tássio, com t de trabalhador. Posso lhe pagar uma bebida? Meu amigo! Ei! Meu
amigo, vocês têm caipirinha? Me vê duas de melão com morango e cachaça. Isso
mesmo! Eu as duas frutas misturadas. Obrigado! E aí, gata, qual o seu nome?
Flavia à frente de Tássio e Luciano
atrás do balcão não conseguiram expressar reação. A sequência de perguntas e
pedidos sem aguardar respostas dos outros era a coisa mais decidida que tinham
visto na vida. Tássio perguntou o nome para Flavia mais duas vezes e somente aí
que conseguiu que ela se manifestasse. Logo em seguida, ela se virou para o
marido atrás do balcão que deu de ombros. Ora, o que podia dar errado? O bar
estava vazio e não precisavam tanto da ajuda dela. Caso o homem aprontasse
alguma, Luciano sairia de trás do balcão com o porrete que ali tinha escondido.
Enquanto as caipirinhas exóticas eram feitas, Tássio seguia com a metralhadora de
perguntas, afirmações e reações. Flavia começou a achar aquilo divertido e
ficou dando corda para o homem.
- Isso é muito bom! – Flavia exclamou
assim que deu o primeiro gole na caipirinha assim que servida pelo marido.
- Eu sabia que ia gostar. É a minha
favorita. Só vai beber isso pelo resto da sua vida. Ela é de matar – afirmou o
sempre confiante Tássio, sem saber que sua frase soaria como uma profecia
naquele momento.
Ele não era convencido à toa. Era
necessário reconhecer que tinha uma lábia sensacional. Tanto que Flavia topou
uma segunda rodada de caipirinhas. Enquanto eram preparadas pelo Luciano,
Tássio seguia falando sem parar. Num entendimento apressado, qualquer pessoa
diria que era um monólogo. Muito pelo contrário, ele roubava curtas respostas
da Flavia e dali já encaixava outro assunto. Sem se atentar ao que acontecia,
ela estava tomada pela conversa que tinha ido de horóscopo a sambas antigos, de
quadros feitos com tapete a como carros batidos na frente se parecem com rostos
de boxeadores ao final de uma luta.
Luciano surgiu com a segunda rodada.
Tássio, sem cerimônia, deu um longo gole e depois celebrou em voz alta o quanto
gostava daquele drink. Flavia, mais contida, deu um pequeno gole e em seguida
olhou franzida para o marido que retribuiu o mesmo olhar. Na dúvida, ela deu
mais um pequeno gole para confirmar o que tinha desconfiado no primeiro. Sim,
ela estava certa, o marido não tinha colocado álcool algum na sua bebida, era
literalmente um refresco de melão com morango. Antes de voltar para o balcão,
Luciano deu uma pisadela de olho marota para a esposa. Para bom entendedor,
meia palavra basta. Ou meio olho aberto, quem sabe?
O resto da noite seguiu com o papo
maroto do Tássio fluindo com a mesma agilidade que Luciano trazia mais caipirinhas.
Para o falante, bastante álcool. Para esposa, zero álcool. Ao final, seis caipirinhas
para cada um. A conta passou dos duzentos reais, mas mesmo assim Tássio fez
questão de pagar. Na despedida, sem perceber a lucidez de Flavia, ou notar a
sua total embriaguez, Tássio tentou uma última investida e, o que seria uma
aproximação à moça, virou uma longa cambaleada quase indo de rosto ao chão. Preferiu
então recuar da investida. Optou por dizer que estava fascinado pela
coincidência dos fatos:
- Veja só – ela falava com a mesma agilidade
do início, mas menos eloquência por conta da língua mole. – Na primeira vez que
piso neste bairro, me encontro com você. É muito destino para mim. Podemos nos
ver semana que vem?
Flavia achou que seria algo inofensivo
e topou. Marcou no mesmo bar como se fosse um local de encontro especial para
ela. Tássio, sem saber que ela trabalhava por lá e era esposa do dono, foi embora
vitorioso da sua conquista. Tanto que no dia marcado, lá estava ele enchendo a
cara de caipirinhas e Flavia enchendo a bexiga de refresco. Ao final,
empurraram a conta para cima de um cambaleante Tássio. Foram um total de seis
encontros seguindo essa rotina. No último, percebendo que a Flavia era carne de
pescoço, desistiu e se despediu com o velho papo de vamos ser apenas amigos. O
que ele não sabia era que tinha iniciado um dos maiores golpes já visto naquele
bairro.
Depois de uma longa experiência com um
confiante Tássio, Flavia e Luciano tinham a certeza que aquilo era aplicável a
qualquer trouxa. Combinaram que Flavia pararia de trabalhar no bar. Sua
frequência diminuiria para quatro vezes por semana apenas para não dar pinta e
assim poderia dar uma trégua para a mãe do Luciano que ficava em casa tomando
conta do filho do casal até tarde. A cena seria sempre a mesma, ela ficaria
reservada numa mesa esperando a aproximação do primeiro galanteador. Ela
pediria a famosa caipirinha do Tássio da casa e a vítima iria junto. Copo sem
álcool para ela e bastante para a vítima. No prolongar da noite, Luciano daria
o tradicional sinal do “vô fechar” e Flavia iniciaria a conversa de que bebeu
demais, precisava ir embora, não estava se sentindo bem e entubava a conta com
uma dezena de refrescos com preço de caipirinha no mané que marcava um segundo
encontro. Afinal, trouxa que é trouxa precisa cair duas vezes no mesmo conto do
vigário.
O empreendimento picareta ia de vento
em popa. Por semana, Flavia injetava quase mil reais na casa. Não suficiente, a
tal caipirinha do Tássio ficou famosa na região e era mais pedida que cerveja.
Nunca uma coincidência de fatos raros acompanhada de um cara decidido teve um
resultado tão próspero como aquele. Foram meses de sucesso sem que um homem
sequer desconfiasse. Flavia e Luciano conheciam bem as pessoas da região e não
marcariam bobeira de tentar aplicar um golpe em alguém de lá.
Determinado dia, Tássio deu as caras
no bar. Luciano o recebeu de braços abertos com a maior cara-de-pau possível,
apresentou-lhe o sucesso da casa e lhe ofereceu uma dose como agradecimento.
Ele dispensou. Disse que estava à procura da Flavia. Para ele, beber o drink
sem a companhia dela no bar seria sem graça. Enxergando a oportunidade, Luciano
contou que ela tinha passado cedo pelo bar dizendo que estava indo à casa de
uma amiga, mas que na volta passaria por lá para beber uma. Tássio se animou e
perguntou se ela demoraria.
- Acredito que não – respondeu o
Luciano. – Sente-se que já, já, ela aparece. Vai bebendo essa por conta da
casa.
Tássio aceitou e se sentou à espera de
Flavia. Nesse meio tempo, Luciano ligou para esposa, antecipou todo o golpe e
mandou que ela viesse para o bar em vinte minutos. Pontualmente ao pedido do
marido, Flavia apareceu no bar. Fingindo uma surpresa mais falsa que uma nota
de três reais, ela foi falar com um Tássio até então cabisbaixo que enrolava
aquele primeiro drink. Assim que se sentou à mesa, Flavia pediu uma rodada para
os dois. A cena começava mais uma vez igualmente à primeira de toda. Tássio,
agora animado, desandava a falar sem parar, Flavia ia dando corda para o
assunto e Luciano descia as caipirinhas cada vez numa velocidade maior. Era quase
uma celebração de aniversário do golpe. Lá estavam os golpistas, o bar, o drink
e o trouxa alfa. Tássio estava mais intenso que o normal e Flavia tinha notado,
mas a vontade de aplicar mais um golpe era maior. Já na madrugada, Luciano fez
o anúncio de sempre:
- Vô fechar!
- Ah, pode esperar – disse um enfático
Tássio. – Ainda estamos sóbrios e hoje eu só saio daqui bêbado.
- Tássio, menino – Flavia se espantou.
– Já bebemos umas dez caipirinhas. Não acha melhor...
- Você está bêbada? – Tássio interrompeu
a Flavia. – Eu não estou! Então vamos continuar mesmo sendo os únicos na casa.
- Sinto muito, casal vinte, mas
preciso fechar o bar...
- Vamos fazer o seguinte – Tássio interrompeu
o Luciano. –, traga mais uma rodada e depois pedimos a saideira. Prometo para
você que serão só mais duas rodadas.
- Ok – Flavia concordou. – Mais duas
apenas então.
- Não é possível, pessoal. Preciso fechar
mesmo.
- Ora, por que? – Flavia e Tássio
perguntaram juntos.
- Porque tenho que render a minha mãe
que está tomando conta do meu filho. Se eu tivesse uma esposa, ela poderia ir
para casa fazer isso para mim, né?
- Por isso? – Tássio desdenhou. – Vai lá,
libera a sua mãe e traz seu filho, que deve estar no décimo sono, no carro.
Quando chegar aqui, eu te prometo, não somente teremos matado as duas rodadas,
como estaremos com contas pagas prontos para ir embora.
- Sinto muito, mas não posso fazer
isso. Não vou deixar meu bar aberto...
- Só duas rodadas – Flavia interrompeu
o marido esbulhando os olhos como quem diz que está deixando algo passar. – Sou
cliente antiga de confiança. E além do mais, estamos aqui com o criador do seu
maior sucesso. Vai, não custa nada.
Luciano topou a ideia até porque
diversas vezes era ele mesmo quem ia render a mãe e a Flavia que ficava de
fechar o bar. Enquanto Luciano voltava para casa, Tássio foi para trás do
balcão fazer a primeira das duas últimas rodadas. Flavia sabia que seriam com
álcool dessa vez, mas não se preocupou. Afinal, duas rodadas de caipirinha
sequer chegariam perto de deixa-la tonta.
Quando finalmente retornou ao bar,
Luciano se deparou com um Tássio assustado à beira da calçada. Então largou o
carro de qualquer jeito no meio-fio com o filho dormindo no banco de trás e foi
em direção da entrada do bar. Foi ali que notou a ausência da Flavia. De
imediato, ele se voltou para a rua e perguntou ao Tássio pela Flavia. Ele
respondeu que ela foi para o banheiro passando muito mal e por isso estava ali
assustado procurando um táxi para levá-la ao hospital. Nesse momento, Luciano
respirou aliviado. O golpe acompanhado da desculpa de estar passando mal para
se desvencilhar do trouxa insistente era um dos combos mais frequentes na casa.
- Ih, cara, relaxa – disse o Luciano
tentando acalmar o Tássio. – Ela costuma passar mal mesmo. Sabe como é, né?
Bebe demais, não consegue acompanhar a outra pessoa e dá nisso. Vira e mexe me
dá dor de cabeça. Ela me dá mais trabalho que meu filho, acredita?
- Tem certeza? O táxi está ali
chegando.
- Pode ficar calmo. Já estou
acostumado. Deixa que eu levo ela para casa. Vamos lá dentro apenas acertar a
conta e vai poder ir para casa sossegado.
- Não precisa. Entre uma rodada ou outra
a Flavia pediu para que adiantássemos isso evitando que você resmungasse quando
chegasse. Tá lá pago na maquineta.
Luciano olhou para dentro do bar e viu
a maquineta do cartão de crédito com o comprovante pendurado. Em seguida pensou
no quanto sua esposa estava ficando mais calejada no golpe. Primeiro prolonga a
conta ao máximo, depois faz o cara pagar a conta antes mesmo do fim do golpe e,
por fim, faz a clássica cena do passar mal para não ter de rejeitar convites
para motel ou coisas do tipo. Totalmente aliviado e com as coisas dentro do
controle, Luciano reconforta de vez o Tássio.
- Então pode ficar tranquilo mesmo.
Deixa comigo que tomarei conta do meu filho dormindo no banco de trás e da
minha filha adulta postiça que às vezes vem me dar problema aqui no bar. Pode
pegar o táxi sem arrependimento.
Para a surpresa de Luciano, Tássio não
relutou um segundo. Muito pelo contrário. Antes mesmo que Luciano terminasse a
última frase, Tássio já estava entrando no táxi. De qualquer forma, para ele
foi até mais conveniente ficar livre mais rápido do trouxa alfa. Sem ter mais
com o que se preocupar, Luciano entrou no bar:
- VAMOS, QUERIDA! ELE JÁ FOI EMBORA! –
Luciano gritou enquanto manuseava a maquineta do cartão de crédito. – Ué, que
estranho.
Luciano não entendeu aquele
comprovante. A conta, pelos seus cálculos, deveria ter passado facilmente dos
trezentos reais. Ali constava um comprovante de apenas sessenta e oito. Ele resolveu ver no detalhe e percebeu que o
horário do pagamento era de quase uma hora atrás. Não, aquilo não era o
comprovante de pagamento do Tássio, era uma reimpressão do pagamento do último
cliente.
- Querida, parece que nós que caímos
num golpe. – Dizia o Luciano enquanto ia ao banheiro ao encontro da sua esposa.
– Um dia da caça outro do... FLAVIA! MEU DEUS!
Flavia estava deitada no chão,
desacordada e seminua. Tinha sido violentada por Tássio que colocou uma
substância dopante em sua caipirinha. Luciano tentou acordar a esposa. Não
adiantava, estava morta. Tássio a sufocou com as próprias mãos enquanto repetia
em voz alta que ela brincou com os sentimentos dele. Luciano ficou deitado no
chão ao lado da esposa vítima do homem que tudo iniciou, deu nome à bebida
destaque do bar e profetizou o que estava por vir. Debulhado em lágrimas ele
apenas lamentava que o mundo era injusto.