segunda-feira, 27 de março de 2017

A sarjeta do mundo

VÍTIMA
O artista Sidney Vaughn, conhecido como Sid V, estava curtindo o que considerava ser o auge da sua carreira. Sua fama era formada em partes pelo seu talento como cantor, que gerava shows históricos e discos memoráveis, e pela sua vida particular atribulada que frequentava as manchetes dos principais tabloides, na maioria das vezes por conta de festas de arromba na sua residência, tumultos em casas noturnas e romances breves com mulheres de fama igual à sua. Ele não somente acreditava estar no auge, como também tinha a certeza que seria incapaz de realizar qualquer feito que superasse as histórias inesquecíveis que protagonizou mundo a fora. Ledo engano. Para Sid V, nunca é o topo, o limite ou até mesmo o suficiente. Algo sempre pode ser superado. Esta história que vou contar talvez seja a situação mais improvável que ele conseguirá se meter, mesmo tendo pequena parcela de culpa. Fato esse que torna tudo ainda mais improvável, principalmente se considerarmos que sempre com ele é de autoria própria e única.
Sua presença em tribunais era mais que corriqueira. Tinha tempo que a cena deixou de ser sazonal. Todavia, ele sempre estava em tribunais de pequeno porte. Era apenas ele, um advogado, um juiz e uma sentença. Baderna, dirigir embriagado, destruição de quarto de hotel e, um dos casos mais recentes que já contei, quando foi flagrado desmaiado nu na companhia de uma mulher de menor importância no mundo do estrelato em um banheiro de uma casa noturna. Desta vez foi algo grandioso. Um enorme tribunal no condado de Ashby com juiz, equipe de advogados de defesa, equipe de procuradores do estado, dez membros da sociedade local escolhidos para cumprir a função de jurados, jornalistas e estudiosos na plateia como convidados, câmeras, taquígrafos e um mar de pessoas ao lado de fora.
- Senhor Vaugh, o senhor sabe o motivo de estar aqui? – perguntou o homem de terno escuro impecável à sua frente.
- Claro que sei – Sid V respondeu e em seguida disparou um olhar de deboche para os jurados. – O seu cliente tentou me matar.
- Por que diz isso, senhor Vaughn? – o homem emendou uma segunda pergunta à resposta de Sid V.
- Porque ele invadiu a minha casa com uma pistola em mãos e disparou diversos tiros em minha direção.
- Algum lhe acertou? – o homem prosseguiu com as perguntas.
- Não, até porque... – Sid V respondia quando foi interrompido pelo homem do terno impecável.
- Ahá! Então como pode me garantir que ele queria mesmo te matar?
- PROTESTO! – gritou uma mulher com um belo conjunto lilás sentada em uma bancada diferente ao do homem de terno impecável. – Todos sabemos bem...
- Negado – disse o juiz sem dar chances para que a mulher prosseguisse e, em seguida, se direcionado ao Sid V. – Responda a pergunta, por favor.
- Ora, porque todos os tiros vieram na minha direção e só não me acertaram porque me joguei atrás de um sofá. Aliás, um belo sofá de couro que tem muita história nele. Sabem quantas mulheres já se deitaram nuas naquele sofá? Sabe quantas pessoas importantes já desmaiaram bêbadas naquele sofá? Pois saibam que aquele sofá tem mais importância para o mundo artístico que aquela casa de show com péssima acústica que vocês insistem em manter nesta cidade. Eu exijo ser indenizado também pela enorme perda que foi ter de jogar aquele sofá fora.
- SENHOR VAUGHN – gritaram ao mesmo tempo o juiz, o homem de terno impecável e a mulher de conjunto lilás.
- Ora, mas que coisa – Sid V prosseguiu como a sua comum incapacidade de se calar. – Eu fico nervoso com isso tudo. Ainda mais quando tentam me censurar. Ninguém censura Sid V! Isso é um absurdo. Aquele descontrolado tentou me matar! Ninguém tem dúvida disso! E, ainda assim, eu quem estou sentado aqui como se fosse um criminoso, um marginal, um delinquente, um coisa-ruim. Eu já cometi muitos erros na vida, mas nunca a ponto de precisar ocupar este assento. Você quem deveria estar sentado aqui, seu débil mental! Aquele psicopata... Olha! Olha! Ele está rindo! Eu aqui sentado e ele ali rindo. Está tudo invertido.
O tal homem que Sid V se referia era o rapper Diggy Bass, tão famoso quanto o próprio Sid V, contudo ocupavam áreas diferentes. Enquanto um dominava o mercado do rock and roll, o outro era o rei do hip-hop. Conhecido por suas músicas polêmicas que falam de sexo, drogas e formas nada agradáveis de lidar com as mulheres, Diggy Bass vendia a imagem de um gangster, sempre acompanhado de um ou outro guarda-costas e ostentando uma vida de luxo sem restrições. Em determinado momento da carreira, ele assumiu um relacionamento com a atriz de cinema Jo Quin, mulher belíssima desejada por todo o mundo e que reforçava essa imagem a cada filme em que insistia na necessidade de uma cena de nudez ou erotismo leve. Foram chamados de o casal do século XXI. A vida sexual do casal era especulada semanalmente nos programas matinais e telejornais de notícias duvidosas. Formaram um casal tão impressionante e famoso pelo mundo que chegava a parecer uma marca, algo criado intencionalmente para gerar audiência e atrair as atenções das câmeras. Todas queriam ser Jo Quin e todos queriam ser Diggy Bass.
É fato conhecido que astros do rock não se dão muito bem com astros do hip-hop, entretanto, Sid V e Diggy Bass demonstravam publicamente uma relativa proximidade. Sid V foi visto algumas vezes em festas na casa de Diggy Bass ou no camarote VIP que ele mantinha na mais famosa casa noturna do estado. Já foram flagrados voltando juntos na mesma limusine. No casamento dos dois, chegaram a cogitar que ele seria um dos padrinhos. Contudo, no que foi divulgado como uma estratégia de marketing, no altar só estavam padrinhos negros como o noivo e madrinhas louras como a noiva.
A história do julgamento pode ser resumida pelas manchetes dos jornais em três dias seguidos. No primeiro dia, elas diziam que Sid V tinha sido visto entrando cedo pela manhã acompanhado de Jo Quin em sua casa de praia e só saíram de lá no início da madrugada seguinte. No segundo dia, as capas dos jornais estampavam que Diggy Bass, que estava em Londres para gravações do seu novo disco, cancelou sua agenda e estava voltando às pressas para casa. O terceiro e último dia era o fechamento da história com a polícia invadindo a casa de Sid V, onde foram escutados tiros logo após Diggy Bass invadi-la.
- Senhor Vaughn, não vou adverti-lo novamente – o juiz interrompeu a fala de Sid V mais uma vez. – Na próxima, mandarei lhe prender por desacato.
Com um olhar enfadonho, Sid V encarou os jurados como quem não acredita no que está acontecendo. Em seguida, direcionou seu olhar para a mulher do conjunto lilás que retribuiu com uma expressão pacífica. Ela pedia parcimônia ao astro. Em uma cena impressionante, ele acatou o pedido implícito e se acalmou. Após uma longa inspirada de ar, Sid V se direcionou para o juiz lhe pedindo desculpas e, em seguida, para o homem do terno elegante dizendo que poderia prosseguir.
- Senhor Vaughn – o homem terno elegante retomou a palavra. – você teve relações com a senhora Quin?
- Se você pretende associar a ação do seu cliente a um momento irracional de ciúmes dele, aconselho a ser mais preciso na sua pergunta. Não queremos que a minha resposta seja vaga, não é mesmo? O que considera como relação?
- Senhor Vaughn – o homem de terno elegante pareceu impaciente. –, quantos tipos de relações você conhece?
- Ah, meu senhor, se frequentasse as festas na minha casa, saberia que existem muitos tipos. Alguns, inclusive, que nem na parte mais perturbadora da bíblia foram previstos.
- Ok, senhor Vaughn! Ok! Vamos entrar nos detalhes se é isso que tanto deseja. – o homem de terno elegante fez uma pausa dramática olhando para os jurados. – Naquela manhã na sua casa de praia, você beijou a senhora Quin?
- Seja específico, por favor – Sid V demonstrava tranquilidade e um ar jocoso ao mesmo tempo. – Beijar é muito vago. De qual parte da senhora Quin está falando?
- EXCELÊNCIA! – gritou o homem do terno elegante demonstrando o fim de sua paciência. – ASSIM FICA DIFÍCIL...
- EXCELÊNCIA! – foi a vez da mulher no conjunto lilás gritar interrompendo o homem do terno elegante. – O senhor Vaughn tem toda a razão.
- Doutores – o juiz em um tom ameno tentou colocar panos quentes. – Por favor, vamos manter a tranquilidade nos trabalhos. Senhor Vaughn, apenas responda sim ou não à resposta.
- Excelência – Sid V, em um tom igualmente ameno, se dirigiu ao juiz. – Se o advogado deseja montar a cena para insinuar que seu cliente agiu tomado pelos ciúmes, que ele pergunte ao próprio quais a motivações. Só que este não é o caso. Este homem, contratado por aquele psicopata, está aqui por um único propósito. Todos nós sabemos que ele não tem como escapar. Mesmo assim, ele está usando este circo com o intuito de saciar a curiosidade mórbida de seu cliente. Tudo que eles querem é que eu detalhe o que aconteceu. Aquele homem é doente! Ele sabe o que aconteceu e ainda assim quer ouvir de mim. Ele precisa ser internado. Onde já se viu uma coisa dessas?
- RESPONDA, SEU VERME! – Diggy Bass se levantou e gritou indignado, não bastante com tudo que vinha acontecendo, mas também com o fato de Sid V estar roubando a cena mais uma vez. – RESPONDA! RESPONDA! VOCÊ ME TRAIU!
- Eu te traí? Você é mais louco do que eu imaginava. Como te traí? Eu nunca fui seu amigo. Nunca fomos amigos. Sempre fomos dois caras que frequentavam as mesmas festas e nada mais. Quantas vezes lhe confidenciei um segredo? Nenhuma! E ao contrário? Nenhuma também! Quantas vezes lhe pedi um favor? Quantas vezes você fez o mesmo? Nenhuma! Nunca! Tudo que sabe de mim é o que leu em jornais. Frequentávamos as mesmas festas, bebíamos na mesma conta e o máximo de proximidade que tínhamos era comentar um com ou outro sobre o rabo de alguma mulher ao nosso redor. Mais nada! Não pense que sou seu amigo. Tampouco exagere nessa avaliação para se fazer de vítima. Sabe muito bem que não sou seu amigo. Aliás, sabe muito bem que quase não tem amigos. Se pararmos para pensar, a única pessoa que pode ser considerada sua amiga é o Gardahall. O resto, ou é seu funcionário ou alguém com uma relação como a minha. E, não se esqueça que o Gardahall só é seu amigo porque você dá mesada para ele. Não, não pense que estou insinuando que ele é interesseiro. Muito pelo contrário! Ele é uma das poucas pessoas de bom coração dentre as que lhe cercam. O fato é que sem a mesada, ele seria obrigado a continuar lá no subúrbio de onde você saiu e abandonou seus amigos da época que não era famoso. Ele, sem sua mesada, seria obrigado a trabalhar como um desgraçado para manter as contas de casa em dia, com isso, sequer sobraria tempo para se encontrar com você e manter laços estreitos. Era isso que queria dizer, não pense que faço mal juízo dele.
- Senhor Vaughn – o juiz, agora em um tom firme, interrompeu a fala de Sid V. – estou por um triz para lhe prender por desacato. Responda a pergunta que o doutor lhe fez.
- Desculpe-me, excelência. Não era minha intenção desrespeitá-lo. Irei responder à pergunta, mas não a esse almofadinha. Responderei a quem de fato está a me perguntar. É com você mesmo que estou falando, Diggy Bass. Você quer saber o que de fato aconteceu, então se sente que direi detalhe por detalhe. Taquígrafo, por favor, não perca uma palavra, pois potencialmente a revista Penthouse vai precisar desse documento para publicar depois. – Sid V fez uma pausa, bebeu um pouco da água que estava à sua disposição e depois prosseguiu. – Sim, eu a beijei. Não foi imediatamente assim que chegamos à minha casa. Demorou um pouco. Abri uma garrafa de vinho branco e bebemos duas taças. Eu odeio vinho branco. Só bebi para acompanhar a Jo. Ela estava mais falante do que nunca. Ambos sabíamos o que estávamos fazendo por lá, mas, aparentemente, ela precisava desabafar um pouco. Claro que o tema era você, seu grande pedaço de merda ambulante. Você é o maior cagalhão que já pisou nessa Terra. Depois de externar o que tanto a afligia, Jo mudou de aparência. Ela demonstrou certa paz e, talvez, um total conforto na minha companhia. Ficamos próximos. Bem próximos. Era possível um sentir a respiração do outro. Encostei meu rosto ao dela e a beijei no encontro do seu maxilar com o pescoço. Ela se encolheu sem me afugentar. Fui percorrendo seu pescoço em direção à nuca enquanto ela ia se girando me oferecendo as costas. Eu a abracei por trás e, enquanto percorria o outro lado do pescoço, aproveitei para desabotoar sua blusa. Em seguida, abri seu sutiã. Lá estava ela. Jo Quin seminua como em vários filmes que já vi. O mundo conhece seus seios de cor. Poucos tiveram a oportunidade de vê-los ao vivo. Eu os vi. Eu os toquei. Eu os beijei. Está anotando taquígrafo? Por enquanto a resposta é sim para pescoço, nuca e seios. Enquanto tentava dar igual atenção aos dois com a minha boca, abri sua saia e deixei que a gravidade fizesse o resto. Ia descendo a minha boca por seu abdômen e minhas mãos, à frente do serviço, desciam com sua calcinha. Sentei aquele monumento de mulher na bancada de mármore da minha cozinha. Jo estava tão confortável com tudo aquilo que sequer reclamou a gélida peça de pedra sob ela. Seu olhar pedia o que já sabia o que ela queria. Ela também já sabia o que queria fazer desde o primeiro momento com ela. Era como um acordo intuitivo entre os dois. Sabe o que eu fiz, Diggy? Fiz aquilo que você nunca fez. Eu a chupei. Sim, cai de boca dela. Vai anotando, taquígrafo. Dois anos, quase três de casamento, e nunca chupou a própria esposa. O grande Diggy Bass. O fodão! O maior comedor da música negra da atualidade. Nunca chupou uma mulher. O cara tem a fama de maior comedor e ninguém contesta, pois sabe-se que é verdade. O que poucos sabem é que, igualmente em suas letras de música, na hora H, ele trata mulher como lixo. Tira a roupa, enfia o pau de qualquer jeito e, assim que satisfeito, vira as costas e vai embora. Deve existir uma horda de mulheres mundo a fora que só não está arrependida por ter dado para você, apenas porque você é quem você é. Fora isso, você é um merda que não respeita nenhuma delas. Trata todas como objeto e agora quer se fazer de vítima porque um cara que você conhece lhe traiu comendo sua esposa. Aliás, isso é o que você quer que as pessoas pensem. Na verdade, eu sei bem o que te motivou a ir até minha casa e tentar me matar. Você estava colérico porque eu não transei com ela. Eu apenas fiz o que nunca fez. Eu dei prazer para ela. Você sabe bem que eu a fiz...
- CHEGA! – Diggy Bass se levantou gritando e jogou seu copo de água na direção de Sid V.
Apesar de o copo não ter chegado perto de Sid V, o juiz precisou intervir. Ele ordenou que o rapper fosse imediatamente preso por desacato e que não participaria mais do julgamento até que fosse necessário seu testemunho. Era evidente que, durante o depoimento de Sid V, o juiz tinha perdido o controle do seu tribunal. Ele precisou ser contundente para que todas as partes entendessem que, ou as coisas andassem dentro da normalidade, ou mais medidas duras seriam tomadas. Todos entenderam o recado e o julgamento prosseguiu como se era esperado. Diggy Bass pegou mais de dez anos de cadeia por tentativa de homicídio. Seus discos ficaram mais valorizados depois disso. Pessoas que sequer sabiam do seu trabalho passaram a comprar seus álbuns para analisar as letras das suas músicas com o discurso de Sid V. Aliás, o discurso do Sid V foi um dos pontos altos dessa história. Foi a oportunidade de mostrar que ele era mais do que um rock star desmiolado famosos pela carreira e pelas atitudes inconsequentes na vida privada. Se antes ele achava que estava no auge, agora ele tinha certeza que chegara ao topo. Além de vender milhões de discos e construir uma imagem que beirava um estilo de vida, agora ele transparecia ser uma pessoa capaz de destruir qualquer situação opositora com argumentos ferinos. Tanto que, no dia seguinte, ele pediu para seu assessor comprar todos os tabloides na esperança de manchetes que idolatrassem seu novo lado, o intelectual. Depois de folhear todos eles, sua frustração era evidente. Ao contrário do que ele esperava, todos focavam em um único argumento, a confirmação de que de fato teve relações com a mulher mais desejada do mundo. É, ele chegara ao topo do topo, não foi como ele queria e, pela primeira vez, isso o incomodou.

Próximo conto da coleção em breve