sábado, 22 de outubro de 2016

Cai na real: Contos sobre a rotina para quem acabou de chegar

Conto anterior da coleção: Artimanhas

Uma história com conteúdo
Dificilmente não se cria a mesma imagem de policiais na cabeça. Principalmente quando se trata de alguém que consome muita informação vinda dos Estados Unidos. A imagem é sempre a mesma, dois policiais ligeiramente fora de forma dentro de uma patrulha, copos de isopor cheios até a boca de café e uma caixa com algumas rosquinhas dentro. De clichê, isso virou um tabu. Encontrar uma viatura por lá e a cena não ser igual a esta chega a ser frustrante. Imagino, inclusive, que isso deve ser algo ensinado nas academias de polícia. Por aqui, as coisas não são tão diferentes. O consumo de calorias é quase igual, apenas a forma em que elas se apresentam que é um pouco diferente.
Lá estava a viatura 687 do sexto batalhão da Tijuca na sua sétima hora de plantão. Como rotina, passavam sempre pela Rua Barão de Mesquita, uma longa rua que liga o Grajaú à Praça da Bandeira cortando o bairro da Tijuca. No trajeto, sempre paravam pela lanchonete Sorriso da Saens Peña, um antigo ponto comercial que precisava se reinventar a cada cinco anos. O procedimento era sempre o mesmo. Paravam e cumprimentavam o dono, seu Arnaldo, sessenta e seis anos de vida com trinta e dois de comércio. Depois, faziam perguntas corriqueiras sobre o dia, família, negócios e assim ia enrolando até o seu Arnaldo oferecer aos dois policiais um lanche. O roteiro era idêntico todos os dias, inclusive na parte em que eles relutavam duas vezes e acabavam aceitando na terceira tentativa do seu Arnaldo. Uma lata de refrigerante e dois salgados para cada um. Agradeciam, davam dois tapinhas no balcão saudando os funcionários e iam embora. Alguns metros à frente, na estreita e pouco movimentada Rua Pareto, eles paravam para comer o lanche.
- Estou preocupado com o Salgado – disse o policial sentado ao volante.
- Qual o problema? – perguntou o policial no banco do carona. – Comemos todos os dias e nunca passamos mal.
- Não estou falando desse salgado. É o major Salgado. Ele disse que quer ter uma conversa comigo ao final do plantão.
- Hum. Entendi. Quer catchup?
- Não. Você ouviu o que te falei?
- Uhum. Você acha que eu deveria ter um animal de estimação?
- O que?
- Um animal de estimação. Algo para me entreter nas folgas.
- Acabei de falar que estou preocupado com o major Salgado que me chamou para conversar e você quer saber sobre um cãozinho?
- Não necessariamente um cãozinho. A Telma acha que devo começar por algo menor. Ela acha que é muita responsabilidade para um iniciante como eu. Chegou a alugar um filme com aquela atriz americana. Esqueci o nome.
- Nome do filme ou da atriz.
- Da atriz. Ela fez aquele filme sobre concurso de miss. A Telma assiste uns dois filmes por dia. Acabo acompanhando com ela. Essa atriz ganhou um Oscar e logo depois o marido dela deu um pé na bunda dela.
- Julia Roberts.
- Não, não é a Julia Roberts.
- Tem razão. Ela nunca ganhou o Oscar.
- Ela já ganhou, sim.
- Tem razão. Aquele filme da linda mulher foi famoso mesmo.
- Ela não ganhou por aquele filme. Você entende alguma coisa de cinema?
- Não, não entendo de cinema. Entendo de segurança pública. Entendo que, quando o major diz que quer ter uma conversa séria com algum soldado, tem merda por vir.
- Sandra Bullock.
- O que?
- A atriz que estava falando. A que fez o filme sobre concurso de miss.
- Qual o seu problema, Almeida? Estou preocupado com a tal conversa... – o policial no banco do carona interrompe a fala do policial ao volante.
- O filme era Miss Simpatia. Não o que a Telma me colocou para ver, mas o que disse sobre concurso de miss. O que vi com a Telma não vou me lembrar do nome mesmo. Enfim, no filme, ela fazia uma mulher que bebia muito e foi internada em uma clínica dessas de tratamento. Qual o nome que dão hoje em dia?
- Alcoólicos anônimos? AA?
- Não! Tem um termo específico muito usado hoje em dia. É até nome de uma música daquela cantora que morreu de overdose recentemente.
- A Madonna?
- Madonna, Bastos? Madonna? Você quer matar a Madonna?
- Eu quero matar você, Almeida. Que papo é esse de filme, cantora, cãozinho?
- Eu estou tentando te contar uma história com conteúdo. É assim que se mantém um papo interessante. Você traz elementos para preencher a conversa e assim ela flui por mais tempo. Eu vi isso em um programa na GNT com a Telma. Você acredita que, quando bem feita, uma conversa sobre a chuva pode durar até três horas?
- Almeida, estou preocupado com você. Que papo é esse de assistir GNT? Isso é canal de mulher. Vai assistir Superbonita também?
- Amy! Lembrei. Amy alguma coisa. O sobrenome era complicado. Você tem mais guardanapos aí? Os meus acabaram. Acho que o grande segredo de uma lanchonete para obtenção de lucros é contenção de custos. Você sabia que guardanapos podem configurar quase dez por cento dos custos de uma lanchonete. Eu vi outro dia no Pequenas Empresas Grandes Negócios...
- Com a Telma. Já sei, Almeida!
- Isso. Estou com a mão toda melecada agora. Winehouse! Era esse o sobrenome. Amy Winehouse. O engraçado é que, em inglês, wine é vinho e house é casa. Casa do vinho. Winehouse. Casa do vinho. Winehouse.
- Casa do vinho, Almeida. O que tem de engraçado nisso?
- A mulher que tem de sobrenome casa do vinho morreu de um pileque.
- Muito engraçado, Almeida. Muito mesmo. Não vem com essa mão suja de gordura para cima de mim, não. Limpa aí na lateral do seu coturno.
- Eu queria mexer no celular para descobrir o tal nome da música.
- Para quê, Almeida?
- Porque a música tem o nome que quero lembrar.
- Eu estou me lixando para o nome, Almeida. Minha preocupação é o que o major Salgado quer falar comigo.
- Então, ela vai para a clínica...
- Quem vai para onde, Almeida?
- A Sandra Bullock. Ela vai para clínica porque bebe muito. O filme começa com ela estragando o casamento da irmã de tão bêbada que estava.
- Almeida, criatura do inferno, por que está falando ainda nisso?
- Eu quero explicar o que a Telma disse sobre ter um cãozinho.
- Ah, sim. Esqueci. Uma história profunda.
- Com conteúdo.
- Que seja. Vai beber tudo?
- Sim, mas pode beber um gole, só não pode matar. Onde estava mesmo?
- Na parte que demonstra total desinteresse pela minha aflição sobre ter sido chamado pelo major Salgado para conversar depois do plantão.
- Você já falou isso umas três vezes, Bastos. Como você é repetitivo.
- Ah, tá. Desculpa, né?
- Bem, o filme é dela na clínica... REHAB!
- Que susto, Bastos! O que houve?
- Rehab.
- Comida árabe?
- Não, Almeida. Almeida, você é muito ignorante. Rehab é o nome da música da Amy. Amy Winehouse.
- A casa de vinhos de que morreu bêbada?
- Isso! Rehab é o nome da música dela que também é muito usado para essas clínicas. No filme, a Sandra Bullock é levada para o Rehab.
- Você está muito estranho com esse vocabulário, Bastos.
- Disse o policial machão com nojo de mãos engorduradas.
- Não estaria com nojo se você não tivesse acabado com todos os guardanapos. Nunca vi uma pessoa gastar tanto guardanapo como você, Almeida. Cada vez que vai ao banheiro deve ser um rolo de papel higiênico.
- Eu não tenho culpa disso. O salgado é extremamente gorduroso. Não bastante, o seu Arnaldo é muito malandro. Ele age nas duas possibilidades de contenção de custos. Primeiro, fornece pouco guardanapo. Segundo, compra guardanapo de baixa qualidade. Olhe só isso! Não absorve quase nada. Ele precisa entender que, quando se reduz os custos de maneira grosseira como essa, a qualidade do serviço cai. E, assim, afasta a clientela, abalando a receita.
- Almeida, de onde você está tirando essas coisas? Você está me assustando.
- Bastos, se estivesse me deixando falar tranquilamente, o assunto ficaria mais objetivo.
- Você é muito cara-de-pau mesmo. Se dependesse de mim, estaríamos falando... – Bastos, o policial ao volante é interrompido pelo Almeida.
- Eu já sei o que vai falar. O major Salgado. Você precisa ser menos egocêntrico, Bastos. Nem sempre dá para falar sobre os seus problemas ou aflições. Eu também tenho as minhas.
- Almeida, você vai ter a cara-de-pau de dizer que sua aflição sobre ter um cãozinho ou não é maior que a minha?
- Eu já disse que não é sobre ter um cãozinho. É algo muito maior. É sobre responsabilidade. Por isto que estava querendo falar do filme.
- Então, está bem, Almeida. Fale do maldito filme em que a Julia Roberts vai para a casa de vinho.
- Impressionante, Bastos. Simplesmente impressionante. Você não prestou atenção a uma palavra sequer do que falei, não é mesmo?
- Então, fala, Almeida. Vai! Fala! Engole esse salgado e fala.
- Obrigado – o Almeida engole o salgado, dá um gole em seu refrigerante e prossegue. – Como dizia, a Sandra Bullock, não a Julia Roberts, vai para o Rehab...
- O tratamento que leva o nome da música da pinguça com nome de ironia.
- Respeite os mortos.
- PROSSIGA, ALMEIDA!
- Bem, ela vai para a... para a clínica. Lá tem um todo um tratamento sustentado em um programa. Nesse programa, eles precisam desenvolver o senso de responsabilidade. Para tal, começam por baixo. Eles começam cultivando uma samambaia.
- Olha que ótimo! Incrível, Almeida. Uma samambaia. Ela vai poder ouvir você falar o dia todo sobre suas histórias. Imagine ter uma samambaia que vai te ouvir falando sobre a chuva por quatro horas igual ao programa da GNT.
- Três horas, Bastos.
- Ora, Almeida, sabemos que você consegue melhorar esse tempo. Já consigo imaginar essa samambaia estimulando o melhor em você. Almeida nas olimpíadas representando o Brasil na categoria prolixo.
- Não vai ter samambaia, Bastos.
- Por que não, Almeida? Aposto que a Telma acha uma boa ideia.
- Claro que ela acha uma boa ideia. Tanto que ela me colocou para ver o filme no intuito de ajudar a me convencer.
- Viu? A Telma é incrível. Aposto que verão vários programas na Discovery sobre como criar samambaias. Quais assuntos elas mais gostam de ouvir. Que tipo de água para regar uma samambaia. E também... – o Almeida interrompe o Bastos.
- Pode parando. Não vai ter samambaia.
- Por que, Bastos? Estávamos tão próximos de encerrar esse assunto.
- Porque não existe interação com uma samambaia. Por mais que ela possa me ouvir, uma geladeira também pode. Eu preciso de algo que me proporcione interação também. Algo de baixa responsabilidade, mas com interação.
- Que tal um peixe?
- Um peixe, Bastos? Como se interage com um peixe? Já viu alguém fazendo cafuné em um peixe? Já viu alguém sentado no sofá vendo televisão com um aquário no colo?
- Justo. Que tal um papagaio?
- São muito perigosos.
- O QUE? De onde tirou que papagaios são perigosos, Almeida?
- Eu vi em um programa...
- Com a Telma.
- Exato! Aqueles programas policiais, sabe? Sempre tem uma história interessante. Certa vez, um crime aconteceu numa cidade. Condado de alguma coisa. Lá nos Estados Unidos as cidades se chamam condado alguma coisa. É engraçado. De qualquer forma, um homem apareceu morto. Uma coisa horrorosa. Sangue para todo o lado. A perícia suspeitava de uma luta brutal que ele travou com seu algoz.
- Algoz?
- É algoz!
- Você é uma caixa de surpresas mesmo, Almeida.
- Enfim... Esse refrigerante está sem gás. Como dizia, a perícia acreditou em uma luta brutal. Tinha sangue pela casa toda. A vítima estava cheia de feridas pelo corpo, principalmente no rosto. Quando estavam dando por concluídas as investigações, descobriram que o homem era um pervertido e tinha câmeras pela casa toda para filmar seus encontros.
- Vejam só! Está aí algo que não encontramos todos os dias.
- Aí que você se engana, Bastos. Mais de vinte por cento da população sexualmente ativa costuma filmar suas relações. Eu vi isso num programa com a Telma de madrugada no canal...
- O CRIME, ALMEIDA! O CRIME!
- Ok. O crime! Daí, encontraram as câmeras. Você acredita que foi o papagaio dele?
- Jesus!
- Pois escute. O papagaio fugiu da gaiola enquanto ele dormia e o atacou. Foi primeiro em um dos olhos. Praticamente arrancou o olho em uma bicada só. O homem não conseguiu fugir.
- Como não conseguiu fugir?
- Ele estava cego!
- De um olho apenas. E o outro?
- Ele usava óculos e, antes do ataque, o papagaio derrubou os óculos da mesa de cabeceira.
- Que demônio!
- Eu te disse. Desnorteado e sem enxergar, o homem foi presa fácil para o papagaio. O animal o comeu vivo praticamente. Está louco que vou criar um animal daquele tipo.
- Veja pelo lado positivo. Ele pode ser um bom animal de guarda para a sua casa.
- Animal de guarda? Você se esqueceu que moro na Pavuna? Aqueles viciados vão comer o papagaio vivo. Duas dentadas e pronto, nem sobram penas para contar história.
- É, Almeida. Voltamos ao cãozinho então.
- Pois é. Sempre que reflito sobre o assunto, acabo caindo no cãozinho. O problema é que a Telma considera muita responsabilidade. Ela não concorda e, por estar tão convicta disto, acabo concordando com ela.
- Deixe-me pensar aqui. Você quer um animal de estimação para te fazer companhia?
- Isso!
- Para fazer cafuné nele?
- Sim!
- Para assistir televisão com ele no colo?
- Exato!
- Já parou para pensar que a Telma pode estar com ciúmes?
- Sabe, Bastos? Preciso te falar uma coisa.
- Diga.
- Eu estaria preocupado se o major Salgado me chamasse para conversar.
- Não é mesmo, Almeida?

Próximo conto da coleção: Tráfico de órgãos