Papo de bar
Por um tempo, tive a oportunidade de
viajar pelo Brasil a trabalho. Pisei em quase todos os estados. Fui a capitais,
cidades do interior, pequenas cidades conhecidas e outras esquecidas pela
evolução da civilização ocidental. Uma das coisas que notei foi que,
independentemente de onde estivesse, sempre encontrava algum bar com
referências ao Rio de Janeiro. Bar Samba e Praia. Copacabana Bar. Malandragem
Carioca, petiscos e bebidas. Rio 40º e cerveja gelada. O curioso era que sempre
que pisava em um deles e abria a boca, um garçom me identificava:
- Você é carioca, né?
- Sim, sou. Percebeu pelo chiado na
pronúncia ou pelo sumiço da sua carteira?
Raramente entendiam a gracinha.
Comumente perguntavam o que achava da ambientação. Chão fingindo ser de pedra
portuguesa com desenho igual ao calçadão de Copacabana. Pandeiros, bandeiras de
times de futebol e chapéus brancos pendurados na parede. Fotos de sambistas
espalhadas por todos os cantos. O esforço para tentar parecer algo autenticamente
carioca era enorme. Ainda assim, passavam longe.
- Como assim, nada se parece com um
bar carioca?
Nenhum carioca gosta de ficar sentado
em uma mesa dentro de um recinto fechado com ar condicionado. Carioca gosta de
beber em pé. Se possível, usando um barril com um tampo de madeira como mesa.
Para ficar perfeito, tem de ser no meio da rua atrapalhando o trânsito.
Parece meio hipócrita falar de clichês
em outras cidades. Ainda mais vindo de uma pessoa que mora onde se tem um
shopping com uma réplica da Estátua da Liberdade. Ao menos, não temos ainda
franquias das lojas Havana. Ou, melhor ainda, não descobriram o shopping Barra
World no Recreio dos Bandeirantes. Daí, seríamos chacota nacional.
Voltando à moda carioca de se
frequentar bares, é preciso se lembrar da existência do ponto negativo nesse hábito
de ficar do lado de fora. Os ambulantes que tanto nos perturbam noite adentro.
No início, lá no século passado, só existiam dois tipos de ambulantes. Os
clássicos baleiros que, na maior parte das vezes, eram crianças. Apareciam nos
chamando de tio e repetindo a mesma frase:
- Vai uma bala aí, tio?
A outra categoria, a mais presente e
com raras chances de se extinguir, era dos vendedores de amendoim torrado. Talvez a maior afronta ao questionável rigor
de fiscalização da Vigilância Sanitária. Amostras de amendoins eram oferecidas
em um pedaço de papel pardo comprado em qualquer papelaria. Sempre repousadas
sobre uma mesa que, até o início da tarde, horário em que o movimento do bar é
escasso, servia de passarela para pombos. Talvez esse fosse o segredo do
tempero.
O equilíbrio entre o carioca boêmio à
beira da calçada e o ambulante sempre foi mantida por diversos anos. Comprava
quem queria. Quem não queria, bastava uma negativa para que o ambulante seguisse
sua procissão mercantil. Com o passar dos anos, o nicho de ambulante nas portas
dos bares foi ficando diversificado. Chegaram os vendedores de miçanga e
brincos com penas de pombo. Depois, anéis de arame “com um brinde grátis, madame”. A variedade culinária também foi
aumentando e se sofisticando. Brownies,
cupcakes, bolinhos space e brigadeiros gourmet. Por fim, surgiram os autores alternativos com suas obras
nunca compreendidas pela sociedade.
- Vai uma poesia aí, gente boa?
- Cara, eu não entendo de poesia.
- Poesia não se entende. Poesia só se
sente. Poesia seduz gente. Tanto a alma como a mente...
- Ah não começa, por favor...
- Para quem é impaciente, a poesia calmamente...
- Ok, eu compro.
- São quinze reais.
- Quinze reais por algumas folhas de
caderno com frases soltas amarradas por um barbante?
- Rústico sou, da simplicidade que
sobrou...
- Ah, me dá duas!
Não, o mercado que flerta com uma
Torre de Babel e passa por toda porta de bar cheio não me incomoda. O
desconforto surgiu quando a forma de se desvencilhar de algum deles, quando não
se tem interesse em comprar algo, começou a ficar cansativa. Nos padrões
básicos da sociedade, sempre me considerei uma pessoa educada. Dou bom dia ao
porteiro, cumprimento as pessoas quando chego em qualquer lugar, chamo os
garçons pelo nome e sempre espero a mulher gozar primeiro. No que diz respeito
a negar algo, uso como balizador a possibilidade de estar na companhia da minha
mãe na casa de uma amiga dela.
- Quer uma língua de gato da
Kopenhagen?
- Oh senhora, parecem apetitosos, mas
vou dispensar. – obviamente, se dependesse de mim, comeria a caixa inteira
sozinho.
Se, ao término da cena, a imagem da
minha mãe disparando um olhar repreendedor em minha direção não surgisse, era
sinal que neguei com educação. Infelizmente, mesmo como esse treinamento, ou
trauma se assim preferirem classificar, os ambulantes não se dão por
satisfeitos. A cada dia que se passa, ao invés deles se reinventarem com novos
produtos, os clientes que precisaram ser criativos com as desculpas.
- Repare que esta pulseira de couro
pode ser ajustada para caber perfeitamente no seu pulso...
- Eu entendi, mas não tenho
interesse...
- Tente colocar. Vai perceber que ela
combina...
- Prefiro não. Ela me traz recordações
da minha avó que morreu recentemente durante uma mal sucedida sessão de
sadomasoquismo.
Pouco importa se o produto
comercializado é de fato desejado por qualquer indivíduo na face da terra. Por
mais inútil que seja, o vendedor vai insistir. E, caso dispense, ele ficará
ofendido, questionará seu gosto e inteligência. Não adianta. Esses em especial
são os mais complicados de se desvencilhar.
- É que me chamo Fernando Francisco.
- Preste atenção, pois eu gravo seu
nome no arroz mesmo sendo composto.
- Muito obrigado. É impressionante seu
talento, mas dispenso.
- Então, é a oportunidade de ter...
- Eu sei, mas não posso.
- Ora, por que não?
- Porque... Porque... Porque eu tenho
o hábito de colocar as coisas no nariz. Daí, vou acabar perdendo ele.
- Colocar coisas no nariz? Quantos
anos você tem?
- Eu tenho 37. Que coisa não? Só não
fale alto, pois o casal da mesa ao lado está até agora procurando o isqueiro
deles. Imagine só onde ele...
- Você é estranho.
Se pudesse, voltaria a todas as
cidades que estive e venderia consultoria para os chamados bares temáticos
cariocas. Tiraria as mesas e colocaria os clientes na calçada e meio-fio.
Treinaria os garçons para demorarem com os pedidos, errarem na contagem dos
chopes e passarem a impressão que estão lhe prestando um favor. Contrataria
atores para se passarem por ambulantes. Chegariam cutucando, fingindo
intimidade e tentando disfarçar o evidente desconforto. Seriam inconvenientes e
tomariam o seu tempo com o mesmo talento que sua mãe quando entra em seu quarto.
Por fim, para completar a ambientação, deixaria uns taxistas à porta do
estabelecimento para negar todas as corridas.