Nunca
tive a pretensão de participar de um evento chique. Obviamente, isso era muito
mais uma triste constatação por conta do meu círculo de amigos que jamais
seriam capazes de produzir ou serem convidados para algo do tipo, mas, ainda
assim, o assunto não me agradava. Muitas regras, normas de conduta e bom
comportamento não foram e nunca serão o meu forte.
Estava
em um boteco árabe famoso do centro da cidade que fica escondido em uma rua
atrás do Teatro Municipal, era uma quarta-feira e já estávamos por volta da
décima rodada de chopes. O grupo era o mesmo e todos tinham acabado de sair do
trabalho. Aliás, todos trabalhavam no mesmo local, Central do Unibanco.
Uma das
vantagens de trabalhar no Unibanco era que o grupo tinha todo tipo de gente: roqueiro,
pagodeiro, alternativo, pobre, classe média, metido, viado, puta, maluco,
drogado. E mesmo com tanta miscigenação, todos se entendiam nos botecos do
centro da cidade. Era lá que encerrávamos o expediente todos os dias. Ninguém
ia pra casa sem dois chopes na cabeça pelo menos. Uma das pessoas que mais
destoava era Nina Salomé, uma mulher fina, sempre impecavelmente vestida e
penteada. Estávamos no final da década de 90 e ela já tinha mais de dez anos de
casa, pegou os anos dourados do antigo Nacional. Mulher bem casada que não
precisava trabalhar. Aliás, acredito que ela só trabalhava por lá como
experiência antropológica ou para contar para as amigas como é se socializar
com os populares.
No meio
daquela noite, meu celular toca, era Nina Salomé. Fiquei alguns segundos
olhando para a tela do aparelho tentando entender porque raios ela me ligaria
fora do expediente. A curiosidade foi maior que a brincadeira de adivinhar e
acabei atendendo.
Ela de
uma forma muito rápida disse que estava fazendo uma “pequena reunião de amigos”
no apartamento dela e gostaria que eu fosse. Quando perguntei por qual motivo
ela achava que aquilo fazia sentido, ela me deu várias respostas. Normalmente
quando alguém não tem uma resposta, ela inventa várias e deixa para que a
pessoa que perguntou se identificar melhor com uma delas e acabar aceitando.
Dentre as dadas por ela, gostei da que dizia que eu era um cara divertido e iria
entreter as pessoas. Claro que depois isso soou muito mais como um eufemismo
para ela me apresentar como o babuíno falante que ela conhece que faz várias gracinhas.
Achei ousadia dela em me convidar e acabei aceitando.
- Mas
você vai assim? – Perguntou Arnaldão, que era meu chefe.
- Claro
– respondi. – Acham que devo alugar um smoking?
- Não!
Mas tênis, calça jeans e camisa da Hering é sacanagem!
Ele
tinha razão, até os babuínos treinados do circo sabem se vestir melhor. Disse
que passaria em uma C&A perto da casa dela e compraria um blazer. Não seria
a melhor das cenas, mas mostraria um pouco de preocupação. Arnaldão não deixou,
me emprestou o paletó do terno dele. Ficou ridículo, uma merda esforçada.
Estava evidente que não era meu. Mangas ligeiramente curtas, largura muito
maior que a do meu corpo, que na época era saudável, e todo surrado. Adorei!
Depois
de encarar um ônibus, pois dinheiro para taxi era muito luxo, lá estava eu,
Visconde de Pirajá quase esquina com Joana Angélica. O porteiro simpaticamente
me anunciou pelo interfone e autorizou minha subida. Se aquela visão da minha
pessoa em um ônibus já era patética, imagine quando me olhei no espelho do
elevador. Diga-se de passagem, o elevador tinha muito mais requinte que todos
os melhores momentos da minha vida juntos.
Você
sabe que está em ambiente hostil simplesmente ao chegar. Nos eventos que estava
acostumado a ir a recepção era sempre calorosa. Um grita “chegou o viado”,
outro pergunta “trouxe a cerveja, filho da puta”, ou um mais acolhedor te chama
“vem aqui sentir meu peido que acabei de soltar”. Lá foi completamente
diferente. Cheguei, uma senhorinha que devia ser a copeira abriu a porta e
ninguém virou o rosto para saber quem acabara de chegar. Entrei procurando por
rostos conhecidos e apenas vi Nina ao fundo da sala que em um tom contido disse
“ah Rafael, que adorável a sua presença” e deu uma ligeira batida com a palma
da mão na perna. Que porra de recepção é essa? Adorável presença? Isso era
deboche? Deveria mandar ela à merda?
A sala
era maior que qualquer apartamento que estive na minha vida. Na minha
inocência, diria ser capaz de construir um shopping naquela sala de tão grande,
a qual não adiantava ser enorme, pois tinha uma quantidade mínima de móveis,
aumentando ainda mais a sua impressão de gigante. Fiquei então parado no meio
esperando Nina se aproximar de mim. Nesse meio tempo uma ou outra pessoa
reparou na minha presença e, pelos olhares, deveria dizer minha desprezível
presença. Nina me deu dois beijinhos e disse para se sentir em casa, em forma
de deboche disse que seria fácil. Ela riu, com certeza não entendeu, abraçou um
dos meus braços e me conduziu até três homens conversando próximo à janela.
-
Meninos, este é o Rafael – ela falou em inglês para eles que esticaram a mão
para me cumprimentar. – Ele trabalha comigo no Unibanco.
- Fala
aí, meninos – respondi também em inglês e nem um sorriso ganhei.
Os três
“meninos” tinham pouco mais de trinta, bebiam uísque e fumavam charuto.
Ofereceram os dois, aceitei apenas o uísque, mesmo sabendo que isto não ia dar
muito certo. O papo era sobre música, estúdio, músicos que não são
profissionais e outras coisas. Tentei acompanhar o assunto ao máximo, mesmo em
outra língua, e conforme o uísque ia descendo, o inglês virava russo e tudo
ficava mais confuso, mas também mais divertido. Comecei a concordar com o que
eles falavam usando randomicamente expressões básicas. Imagino que em algum
momento, um deles contou sobre a morte da mãe e respondi com um “that’s great, man”, ou comentaram como
racismo pode ser escroto e emendei um “let’s
do it too”.
No
decorrer da conversa uma coisa começou a me incomodar. Dois dos caras começavam
a se entreolhar, depois olhavam para o terceiro e ficavam me encarando como
esperando uma reação minha. Não estava entendendo ao certo o que estava
acontecendo. O tal terceiro cara usava uma bandana na cabeça, tinha um
cavanhaque sugestivo e rabo de cavalo. Comecei a ficar encucado. O álcool
acionou um alarme na minha cabeça, entrei em pânico, virei de costas para eles,
procurei visualmente pela Nina e, quando a vi, usei meu lado barítono:
- NINA,
PORRA – interrompi o pouco som de conversa da sala. – VOCÊ ESTÁ PENSANDO QUE
SOU VIADO E VEIO ME APRESENTAR SEUS AMIGOS GAYS?
Ela
elegantemente cobriu o rosto com as mãos e depois, enquanto andava em minha
direção, falou de maneira ampla, mas suavemente, para todos na sala que eu era
um brincalhão e estava pregando alguma peça. Sim, ela gosta de termos como
adorável e pregar peças, prefiro foda e sacaneando.
-
Rafael, meu querido, o que está acontecendo?
Não
bastasse estar em pânico e bêbado, ela ainda me chamava de Rafael. Ninguém no
Unibanco me chamava de Rafael, sempre foi Ferrara, Ferrarinha, Ferrarão, ou
qualquer derivação disto, mas nunca Rafael. Isso acabou me deixando mais tenso.
- Nina,
eles estão insinuando a bicha gringa do cavanhaque para cima de mim – disse para
ela e depois me virei de volta para eles. – I’m
sorry, guys, but no dick for me tonight!
-
Rafael – Nina me virou gentilmente para ela com a mão na minha cintura. – O que
está acontecendo?
-
Gente, por favor – um dos dois caras saiu do trio e veio falar conosco. – O que
é isso?
Esse
cara, depois durante o evento descobri que era o irmão da Nina, com muita calma
perguntou o que estava acontecendo. Descrevi o que tinha entendido daquela
troca de olhares sugestiva. Ele riu e explicou:
- Não,
cara! Estávamos surpresos que não tenha reconhecido ele ainda, só isso!
- E
deveria reconhecer? Quem é ele?
- É o
Michael Sembelo!
-
Michael Sembelo da música Maniac?
- Sim,
veio aqui para trabalhar uma música no meu estúdio.
Uma das
grandes vantagens de se estar bêbado é que você troca de humor com uma
facilidade impressionante. E ainda não sobra remorso algum do que havia feito
antes. Dei uma risada sincera e me virei para dito cujo (a pessoa, não o pau
dele):
- Maniac, man – disse apontando para ele e
depois segui fazendo uma dancinha e cantando ao mesmo tempo. – She´s a maniac, maaaaaaaaniac!
Desfeita
a confusão, Nina voltou para o grupo que dava atenção, os três voltaram a
conversar e eu fiquei ali ao lado fazendo a dancinha sozinho. A dança em questão,
para quem não conhece (ela foi sucesso por causa do filme Flashdance), consiste
em fingir uma espécie de corrida com o corpo todo encolhido sem sair do lugar.
A cena não podia ser mais patética. Três homens conversando tranquilamente e
junto deles um quarto jovem (sim, tinha vinte, quase vinte um anos) dançando
agitado sem música alguma, como se fosse a maneira irracional dele de interagir
com o grupo. Esporadicamente um olhava para mim e sorria. Quando calhava de ser
o Michael, eu retribuía o sorriso com “maniac,
man” e ele ria ainda mais.
Somem
os chopes que bebi no árabe com algumas doses de uísque, acrescentem a variação
de emoções por conta da confusão e vai entender como fiquei tão agitado. Já
estava com as mangas do blazer do Arnaldão arregaçadas. Eles não conseguiam
mais prolongar a conversar sem rir de mim, ou para mim, não importa. Até que,
para o alívio dos três, Nina interrompeu a conversa:
-
Meninos, a janta começará a ser servida – disse ela para depois com uma das
mãos no meu ombro falar. – Vamos, rapaz agitado, você precisa forrar um pouco o
estômago.
Fomos
todos para a mesa. Era uma mesa de respeito. Toda de vidro, comprida e com
muitas cadeiras, umas vinte e cinco ou pouco mais. Sentei entre o irmão da Nina
e o Michael, à minha frente uns três pratos empilhados, um dentro do outro, e
uma sequência de talheres de cada lado. Fudeu! Mal sei enrolar macarrão no
garfo, imagine lidar com tantos talheres, ou quem sabe acertar qual o propósito
de cada um. A animação sumiu e voltou o pânico. Na minha cabeça, não podia
fazer feio, mesmo sabendo que poucos minutos atrás estava dançando sem música
sozinho em um canto da sala.