quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Um bloco uma caneta e o divã


Do êxtase à merda e vice-versa
 Tinha me fodido no primeiro final de semana do Rock in Rio 3. Achava que dava para ir para casa e voltar no dia seguinte, mas tudo que consegui foi me cansar mais ainda. A estrutura não era compatível com a grandiosidade do evento. Sair de lá era um martírio, chegar era uma batalha, tudo demorado e sofrido, muito engarrafamento, poucos ônibus e todos lotados. Ao final do show do Sting, no primeiro dia, não tinha ideia de como seria, então resolvemos ficar um pouco por lá bebendo para fazer hora e deixar o público dispersar. Não poderia ter sido pior. Tivemos de andar da Cidade do Rock até o Via Parque para conseguir um ônibus. Isso já era por volta de quase cinco da manhã. Estávamos bêbados e exaustos. Os passos eram lentos e penosos. Chegamos depois das seis, esperamos para pegar outro ônibus, fomos até o Terminal Alvorada, esperamos mais uma vez, pegamos um segundo ônibus, daí, depois da longa e vagarosa Estrada do Alto da Boa Vista, finalmente chegamos à Tijuca com o relógio quase batendo meio-dia.
Tivemos tempo apenas de tomar banho, mudar de roupa, comer algo e já voltar para a Cidade do Rock, pois REM e Foo Fighetrs nos aguardavam. Ou ao contrário. Ainda assim, só chegamos de noite. Não vimos os peitos murchos da Cassia Eller, nem a mala da Fernanda Abreu. Ignoramos o Barão para beber (eu sei, heresia minha), do almofadinha do Beck em diante vimos tudo. Alteramos, ao final do dia, a estratégia. Terminado o show, iríamos direto para casa. Não mudou muita coisa. Chegamos tão tarde quanto o dia anterior em casa, fizemos tudo correndo e, de qualquer forma, mais uma vez, não deu tempo. No domingo não chegamos a tempo de ver Pato Fu (que triste, não?), mas consegui jogar duas garrafas no Carlinhos Brown e, colado na grade, gritei algo quase ao seu pé do ouvido que ele, com certeza, escutou e nunca mais se esquecerá. Fora isso, vimos os demais shows. Ao final do dia, o consenso era único: foi uma maratona muito cansativa. Tomei a iniciativa e sacramentei que nos próximos dias não voltaria para casa. Daríamos um jeito, mas ficaríamos por lá. Levaríamos na mochila várias camisas para trocar e seria o suficiente. Os imbecis que me acompanhavam aprovaram a ideia de merda e assim seria no final de semana seguinte.
Era fato que isso daria errado, principalmente quando optamos em, além de usar essa estratégia, ir também na quinta-feira das boybands. A motivação era simples, estaria cheio de menininhas, faríamos a festa. Ledo engano. Não quando falo da quantidade de menininhas, isso foi um acerto. Parecia o encontro mundial de colegiais. O erro estava em achar que iríamos nos dar bem. Todas só davam atenção para o palco. Nenhuma estava no clima de pegação. Isso sem contar as que estavam acompanhadas da mamãe, madrinha, titia etc. A opção, como sempre, foi beber. Primeira noite de quatro seguidas e estávamos bêbados antes das 22 horas. Terminada a tortura de gritos, playbacks, infinitas trocas de roupas e coreografias, finalmente a Cidade do Rock estava vazia. E agora? Resolvemos nos juntar a alguns grupos que já faziam fila para o dia seguinte. Aparentemente se manter acordado bebendo com fãs de Iron, Sepultura e QOTSA não era uma boa ideia. Especialmente quando você já começa com várias doses de vantagem na largada. Obviamente antes do meio-dia estávamos desmaiados na calçada de cimento quente com sol sobre nossas cabeças. Acordamos com o tumulto da abertura dos portões. Nós deitados e vários trogloditas correndo ao nosso redor. Parecia que estávamos no meio do estouro de uma boiada. Não sabia se me encolhia, tentava desviar, me levantava, fingia de morto. Por fim, sobrevivemos, nos levantamos e entramos destruídos e ainda bêbados. Não estávamos prontos, mas era o que tinha de ser feito.
Com os shows da sexta foi mais fácil ver o dia passar. Muitas rodinhas, pula-pula, cantoria e bagunça. Em contrapartida, foi mais fácil ficar cansado, desidratado e com fome. Paramos na cerveja e resolvemos torrar uma grana em refrigerante e sanduíches. Isso por volta do final do show do Rob. Comemos como ogros, ficamos pesados e nos arrastávamos pela Cidade do Rock para o início do show do Iron. Ao término, o que mais temia aconteceu, precisava desesperadamente ir ao banheiro.
- Porra – disse o Leo. – Vai então, viado!
- Não tem como – respondi. – Não dá!
- Ah que fresco! Está com nojinho? Caga de pé sem encostar na privada.
- Não é esse o problema – expliquei. – Não tem condições para fazer.
- Relaxa – disse David. – Vou lá no Bob’s, pego uma porrada de guardanapo e você usa como papel higiênico.
- Caralho, seus merda – estava ficando enfezado literalmente. – Isso não resolve! Só sei cagar se tiver bidê, chuveirinho ou como tomar banho depois.
Se me recordo bem, eles ficaram rindo pelo chão por uns quinze minutos. Foi tempo de muitas pessoas terem ido embora e a Cidade do Rock ficar consideravelmente vazia. Nesse tempo a pressão estava maior e não teria como aguentar até chegar em casa, tão pouco ficar mais dois dias naquele estado. Resolvi bolar uma solução.
- Fiquem aí então – falei. – Vou ali comprar umas garrafas de água e dou meu jeito.
Eles riram mais ainda. Fui até o quiosque mais próximo e vi que estavam com uma queima de cervejas para fazer a troca do dia seguinte. O preço estava muito mais barato que a água. Não pensei muito e comprei cinco copos de cerveja. Passei por eles e, assim como vocês que não estão acreditando no que leem, eles não acreditavam no que viam. Mas o fato é que caguei e limpei a bunda com cerveja. Por conta disto, acredito que seja uma das poucas pessoas no mundo que bebeu Schincariol como deveria ser feito. Aquela merda tem de ser consumida pelo rabo. Sendo hoje, adoraria passar em uma blitz da Lei Seca só para testar o que aconteceria se peidasse no bafômetro. Acredito que os fiscais ficariam surpresos. Terminada a tarefa, notei que fiquei muito mais bêbado do que antes. Não sei se tinha alguma relação com a mucosa do reto absorvendo bebida alcoólica ou com a grande carga calórica que desperdicei, mas a realidade era que tinha ficado bêbado pelo cu. Saí do banheiro cambaleando e, com a ajuda deles, conseguimos sair da Cidade do Rock. Foi o tempo certo para deitar novamente naquela calçada dura e apagar. Lembro de alguns risos finais deles, ainda assim dormi como um bebê recém trocado pela mãe que passou lenço umedecido de cevada.
Acordei depois das dez da manhã. Falaram que me cocei a noite toda. Imagino que seja verdade, pois a combinação cerveja com bunda, calor e calça jeans não é muito convencional. Eles já estavam despertos e comendo uns biscoitos que, segundo me contaram, compraram de umas meninas que estavam na fila para o show de sábado. Peguei alguns, mal comi todos, já estava me coçando. Era desesperadora a coceira. Dava vontade de arrancar o cu fora. Levantei-me e saí do meio do grupo:
- Vai cagar novamente?
- Não – respondi. – Vou comer sua mãe.
- Não se esqueça de depois limpar o pau com guaraná.
Mandei se foder e fui atrás de um vendedor para comprar água. A ressaca era grande e ainda tinha a urgência de lavar uma bunda que foi lavada com cerveja. Acho que deu para entender. Depois de vinte minutos atrás de uma van de transmissão e três garrafas d’água, lá estava eu, novo e com a bundinha mais limpinha da Cidade do Rock. Reuni-me com eles e esperamos o abrir dos portões.
Não vou mentir ou querer bancar o durão. Por diversas vezes cogitamos ir embora e desistir do show daquele dia para descansar. Por sorte, ou infeliz coincidência, raramente cogitávamos isto ao mesmo tempo, então, quando um queria desistir, os demais convencia do contrário. Foi duro, mas entramos para o terceiro dia seguido e sexto de evento.
A programação do sábado era boa, mas ao mesmo tempo chata para quem estava no limite. David Matthews e Sherryl Crow criaram vários momentos soninho, Kid Abelha e Engenheiros do Hawaii criaram vários momentos para o suicídio. A solução era dar uma volta e tentar conhecer alguma gata.
Bruninha devia ser dois ou três anos mais velha do que eu na época. Provavelmente beirava os 25 anos. Tinha uma altura mediana, cabelos escuros lisos, pele bronzeada, olhos enormes de brilhantes e um sorriso que se assemelhava ao do gato do conto da Alice no País das Maravilhas. Dificilmente conseguiria se passar por normal, inclusive se esforçasse. Ela que puxou assunto comigo. Algo relacionado a estar dormindo de pé. De fato estava complicado permanecer acordado. Saímos da multidão e nos sentamos no chão, um com as costas apoiada na do outro. Parecia estranho conversar com alguém de costas para você, mas era confortável e, o fato de não olhar diretamente para ela, me dava mais coragem para falar besteira. Bruninha era muito interessante, tinha características que me fascinavam na época, dentre elas, ser mulher (obviamente), mais velha e falante (perdoem o pleonasmo), mas me dar atenção era a mais predominante da lista. Por mim, ignoraria totalmente os shows seguintes e ficaria de conversa com ela. Não queria mais sair de lá. A conversa fluía, ela entendia meu sarcasmo e eu acompanhava os deboches dela. Parecia que nos conhecíamos há anos. Queria muito beijá-la, mas por estar de costas não era possível e, além disto, estava suado e sem tomar um banho decente fazia dois dias. Continuamos conversando então.
- Acorda aí – disse Sergio me cutucando com os pés. – Acorda, cara!
- O que foi – perguntei, ainda sonado e deitado no chão. – Que foi?
- Está dormindo no chão! Cadê a moreninha?
Ela tinha ido embora. Peguei no sono no meio da conversa e ela foi embora. Fiquei ali na grama dormindo sonhando com o resto da nossa conversa.
- Peguei no sono.
- Estou vendo. Pegou ela pelo menos?
- Não. Peguei no sono.
- Você dormiu enquanto dava ideia na garota, seu merda?
- Estou cansado, porra!
- Ei, Leo – gritou o Sergio para o Leonardo que se aproximava. – Não é ele que tem aquela história de ter dormido no meio das preliminares com a namorada?
- Ele mesmo – concordou o Leonardo. – Por quê? Dormiu enquanto pegava a morena?
- Pior – respondeu o Sergio já rindo. – Dormiu antes de pegar. Enquanto dava ideia nela.
Eu sei, tinha me superado dessa vez. A história da namorada era verdadeira e agora essa. Para minha defesa, em ambos os casos estava bêbado e vindo de uma rotina cansativa. Ainda assim, dormi no meio da ação uma vez e, noutra, dormi enquanto batia o papo mais animado e entrosado da minha vida. Um merda sempre faz merda. Levantei-me e os acompanhei para o resto do dia.
Terminado o show do Neil Young, lá fomos para a calçada nos acomodar com outros dementes como nós. Eu sabia que dava para dormir mais uma noite na calçada, mas não suportaria mais uma manhã dormindo com sol forte e calçada quente. Foi quando avistei uma Blazer.
- Ei cara – falei com um homem encostado no carro. – É sua?
- Sim.
- Vai sair agora?
- Não, vou ficar para os shows de domingo.
- Cara, que ótimo. Preciso muito dormir.
- Ah, mas nem a porrada que vai dormir dentro do meu carro.
- Não. Não me entenda mal. Vou dormir debaixo do seu carro. Só preciso de sombra e a certeza de que não vai sair me arrastando por aí.
- Relaxa. Deita lá.
Comecei a me ajeitar para me enfiar sob o carro quando os meninos apareceram me chamando de doido por fazer aquilo. Expliquei meus motivos e eles argumentaram que debaixo do carro era praticamente terra, sequer tinha grama.
- Porra, pouco me importa. Estou com essa merda de calça há três dias. Trocamos de blusa após tomar um banho de gato com garrafa de água mineral. Acham mesmo que no último dia vou me importar em dormir na terra?
Deitei-me e dormi como um bebê guaxinim. As formigas que fizeram do meu corpo, principalmente o rosto, a sua Cidade do Rock não me deixaram desconfortável. O suor do calor que transformava a terra em um barro levemente fresco nem me abalou. Nada me incomodava. Era como dormir em casa. Fui de quase seis da manhã até duas da tarde. Acordei novo. Costas e pernas não doíam mais. Era possível finalmente, depois de tantos dias, suportar uma noite inteira de shows. Levantei-me tão empolgado que dei uma porrada com a cabeça no chassi do carro. Fez um galo que iria me incomodar o resto do domingo. Saí de debaixo do carro, vi os meninos suados, sofrendo no sol e eu com a pele praticamente imaculada de longas horas em uma sombra própria. Agradeci ao dono do carro que já estava acordado conversando com os amigos. Sacaneei os imbecis que ficaram no sol mais uma manhã, fui comprar algumas garrafas de água e repeti o ritual dos outros dias. Tirei a camisa, joguei água no peito, braços e axilas, sequei-me e troquei de camisa. Depois forcei o vômito até expulsar a última gota remanescente dentro de mim, fiz gargarejo com a água que restava para tirar o gosto ruim da boca e voltei. Comprei duas Cocas, um pacote de biscoito e lá estava preparado para o sétimo dia.
A última noite foi finalmente de diversão. Curti todos os shows do início ao fim, diferentemente dos que me acompanhavam que estavam mais mortos do que nunca. Não sei de onde tirei que seria uma boa ideia a maratona no formato que insistimos em manter, tampouco sei dizer por qual motivo não abortamos na primeira noite para refazer os planos. Talvez seja porque éramos muito novos e tudo era festa, ou apenas éramos imbecis mesmo, ou, a melhor das hipóteses, éramos jovens imbecis bêbados. De qualquer forma, minha relação de gratidão e amor ao Rock in Rio permaneceu inalterada. Continuo o mesmo menino que foi deixado na casa dos avós para que os pais pudessem ir à primeira edição e assistiu a tudo pela televisão boquiaberto. Permanece a magia do festival em que, ainda juvenil, tomei meu primeiro porre e perdi minha virgindade. Agora criara a marca de ser o festival no qual fiz a minha primeira maratona de shows, quatro dias diretos, “sem tirar”. Seria melhor se tivesse algum rastro da Bruninha, nenhum galo na cabeça ou mais shows aproveitados. No entanto, a experiência foi válida, pelo menos até a próxima versão.